12 Novembro 2020
"Ayouni significa 'os meus olhos' em árabe, mas também é um termo carinhoso para dizer 'meu amor'. Os desaparecimentos forçados são o contrário do amor. São uma tática que visa despedaçar as famílias, fazer calar quem desaparece e as pessoas próximas, apagar as narrativas que não se enquadram na estrutura de poder dominante. Como diretora, descobri que os filmes desempenham um papel. Os filmes podem combater o esquecimento que é o objetivo dos desaparecimentos forçados, mantendo as pessoas visíveis e diante dos nossos olhos", escreve Yasmin Fedda, diretora síria que dirigiu o filme Ayouni, My Eyes, My Love, em artigo publicado por Internazionale, 10-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Collera e luce. Um prete nella rivoluzione siria
O principal desafio que tive que enfrentar como diretora é como representar a ausência, como mostrar alguém que não está presente. Comecei a fazer um documentário com um homem que depois desapareceu. Uma voz tão presente, forte e provocadora silenciou de repente. Por que isso aconteceu? O que isso significava? Que vestígios deixou para trás? Havia uma maneira de responder a essas perguntas em um filme? Em maio de 2013 estive na place Vendôme, em Paris. Um táxi parou e o padre Paolo Dall'Oglio, um sacerdote jesuíta, me fez embarcar rapidamente. Estávamos atrasados para sua entrevista de rádio, para divulgar o seu livro, Collera e luce. Um prete nella rivoluzione siria (Cólera e luz. Um padre na revolução síria, em tradução livre). Seu trabalho incansável em favor da Síria exigia que eu aproveitasse cada momento e oportunidade possível para passar um tempo com ele.
Eu conhecia o padre Paolo há quase vinte anos e tinha feito vários filmes com ele. Nascido em Roma, viveu trinta anos na Síria, onde criou uma comunidade extraordinária composta por monges de diversas confissões cristãs, dedicada ao diálogo entre as religiões, em particular entre muçulmanos e cristãos. Aberta a visitantes de todas as origens, de qualquer religião ou de nenhuma, a comunidade era um lugar onde as pessoas podiam parar, fazer um piquenique, discutir e fazer uma experiência de vida monástica e comunitária. Nos estúdios da Rádio Monte Carlo, em 2013, o padre Paolo estava furioso. Furioso com as atrocidades e violência do regime de Bashar al Assad contra seus cidadãos, mas também com a incapacidade da comunidade internacional de detê-lo e apoiar o movimento democrático de protesto. Ele advertia contra o risco de novos derramamentos de sangue e implorava aos ouvintes: “Não basta que as pessoas digam 'boa sorte'. Vir para nos salvar é o vosso dever moral como seres humanos”. Era o caro velho e exuberante Paolo. Bem, pensei. Vou fazer um filme sobre um padre na revolução síria. Este era o meu projeto.
O padre Paolo falava árabe perfeitamente, com um claro sotaque sírio. Seus posicionamentos o levaram à expulsão da Síria em 2012. Posteriormente, trabalhou incansavelmente em favor do país, levando suas ideias sobre o diálogo para outro nível. Ele até havia criado um programa na Orient TV, um canal de oposição, onde convidava os sírios para discutir temas como o papel da mídia, sectarismo, violência e as consequências das bombas. Paolo me disse: “Para mim, trabalhar na televisão é uma ferramenta de luta! Participar! Estar presente! Espero que funcione". Ele não conseguia ficar em silêncio. Alguns meses depois de nosso encontro em Paris, vi o padre Paolo nas imagens de um protesto noturno organizado pelo sindicato estudantil de Raqqa, no norte da Síria. Era 28 de julho de 2013, e os manifestantes gritavam slogans contra o regime. Padre Paolo havia sido apresentado como "um padre para todos os sírios". Seu discurso, no qual dizia “Espero que Raqqa se torne a primeira capital de uma Síria libertada, no aguardo da queda de Damasco em um futuro próximo”, foi saudado com uma salva de palmas.
Padre Paolo havia entrado ilegalmente naquela cidade do norte da Síria, que recentemente havia se libertado das forças do regime, mas estava sob a ameaça da ascensão do grupo Estado Islâmico (EI), que ainda não a havia feito sua capital. Os jihadistas do EI sequestraram jornalistas franceses e Paolo decidiu fazer todo o possível para negociar sua libertação. Em 29 de julho, ele foi a um encontro organizado com os sequestradores e nunca mais voltou. Ele também foi sequestrado, e muitos rumores circularam: que ele havia sido morto, mantido prisioneiro, trocado. Sete anos depois, ainda não temos informações confiáveis sobre seu destino. Ele desapareceu. Quando isso aconteceu, me senti confusa, com raiva, frustrada e triste. Eu não sabia o que fazer. Continuar filmando? Era possível negociar sua libertação? Eu poderia colocar ele ou outra pessoa em perigo continuando a filmar? Quais seriam as consequências de sua saída de cena para as lutas pelas quais se dedicou com tanta paixão? Foi um momento realmente doloroso para os familiares e amigos de Paolo, que por sua vez não sabiam o que fazer: denunciar ou ficar em silêncio? Foi um momento delicado e ninguém tinha uma resposta.
Com o passar do tempo, as perguntas permaneceram as mesmas. Encontrei outras pessoas cujos entes queridos desapareceram na Síria. Estive no Curdistão iraquiano, na Jordânia, no Líbano, na Turquia e em toda a Europa. Logo ficou claro o quão amplo era esse problema. Em 2020, pelo menos cem mil pessoas desapareceram pela força na Síria e o número continua a crescer. O regime sírio, cujo recurso frequente à tortura e à detenção arbitrária foi amplamente documentado, é responsável pela grande maioria dos casos. Grupos armados não estatais, como o EI, também cometeram esse crime, fazendo desaparecer pelo menos 8.300 pessoas.
Um desaparecimento forçado, de acordo com sua definição legal, ocorre quando uma pessoa é vista pela última vez enquanto se encontra sob a custódia de forças do Estado (ou grupos armados não estatais), que não admitem tê-la detido ou não revelam onde se encontra. As pessoas em maior risco são os defensores dos direitos humanos, parentes de outras pessoas desaparecidas, testemunhas e advogados. Como explica o ativista Shohini Shaudhuri, "como crime político, pode ser definido como a arte de fazer as pessoas desaparecerem em silêncio e apagando as provas".
Os desaparecimentos forçados foram uma constante em grande parte dos conflitos do século XX e uma tática regularmente usada pelos regimes autoritários. Durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha, cem mil pessoas desapareceram. Durante a guerra dos anos 1990 na Bósnia, oito mil. Na guerra civil do Sri Lanka quase cem mil. Durante o regime militar na Argentina trinta mil. Na guerra civil no Líbano 17 mil. Em casos raros, as pessoas desaparecidas reaparecem após anos de detenção. Em outros, quando há vontade política e ferramentas para isso, seus restos são posteriormente desenterrados e identificados. Mas em muitos casos o destino daqueles que desaparecem permanece desconhecido. Essa tática visa espalhar o terror e apagar histórias e experiências pessoais.
Num artigo sobre desaparecimentos forçados na Síria, Nadim Houry, da Human Rights Watch, relata a declaração de um desertor do regime sírio: "Prender uma pessoa limita sua capacidade de agir, mas fazê-la desaparecer paralisa uma família inteira, que dedicará todas suas energias para encontrá-la. É difícil encontrar uma ferramenta de controle mais eficaz”. É um crime que afeta sociedades inteiras, comunidades e famílias por gerações. Ecoa no tempo, criando uma ausência que permanece presente.
Cada um desses desaparecimentos é uma história individual. Foi o encontro com essas pessoas que me levou a fazer o filme Ayouni.
Eu tinha discos rígidos e fitas cheias de materiais filmados com o Padre Paolo desde o início dos anos 2000 até 2010 e durante aquela última viagem a Paris. Esses filmes de Paolo, acompanhados de sua voz, adquiriram um novo significado e um novo valor. Eram memórias e vestígios de uma pessoa que se recusava a ser apagada. Eles pediam para serem contados e mostrados no tempo presente. Poderia ter feito um filme "sobre Paolo". Mas, depois de conhecer sua irmã Machi, percebi que através dos outros teria podido entender o quanto presente fosse a sua ausência.
É a história mais longa, que conta como essa ausência foi tomando forma ao longo dos anos, e realmente nos conta algo sobre a pessoa e o crime de que foi vítima. Para o primeiro aniversário do desaparecimento do Padre Paolo, Machi me convidou a Roma para filmar um apelo dirigido aos seus sequestradores. O que me impressionou foi como essa situação não era apenas difícil e exaustiva (até eu estava nervosa durante as filmagens), mas também delicada. Machi falava com muito carinho de Paolo e brincava com seu irmão mais novo sobre o quanto o cobrariam, uma vez que fosse libertado, por terem sido obrigados a endereçar um apelo para sequestradores desconhecidos. “Vou deixá-lo roxo”, disse o irmão. Esse pequeno e fugaz momento foi revelador. Mesmo que ele não estivesse fisicamente conosco, todos nós sentimos a presença de Paolo de alguma forma, mesmo que ele tivesse sido tirado de nós. Em outubro, seis anos depois de filmar aquele momento, apresentei o filme em Florença, junto com Machi. Ela disse algo inesperado sobre o filme, ou seja, que os nossos corações devem continuar a sentir dor e raiva. As pessoas que não conhecem essas histórias devem sentir a dor dos outros, acrescentou, porque “com o passar do tempo essa dor vai diminuindo e há o risco, quando isso acontecer, que se comece a esquecer”. Essas histórias correm o risco de se perder no esquecimento. Sete anos são muito tempo. Nossas vidas continuam, a de Machi continua. Se voltasse, o Padre Paolo seria uma pessoa diferente por causa das violências ou isolamento sofridos. Mas corre-se o risco de esquecer não apenas as histórias individuais, a dor e a raiva pessoais, mas também as narrativas políticas coletivas vividas por pessoas desaparecidas e pelas suas famílias.
Noura Ghazi Safadi também me falou muitas vezes sobre esquecimento e memória, raiva e tristeza, individualidade e coletividade. Acompanhei sua história por vários anos enquanto ela lutava por respostas sobre o desaparecimento do marido. “Estou muito furiosa com ele!”, disse-me Noura com ternura, ao ver a versão final do Ayouni. Era a primeira vez que via o filme em que seu marido Bassel Safadi está sendo entrevistado pela repórter da BBC Jane Corbin.
Quando questionado se ele se sentia seguro, Bassel respondeu: "Estou bastante seguro". Os dois falavam sobre as provas em vídeo e materiais que ele ajudou a contrabandear para fora das áreas sitiadas, principalmente da cidade de Daraa, em 2011. Bassel contava que cinco pessoas de sua rede foram mortas e que "na Síria é mais é seguro ter uma arma com você do que uma câmera”. Menos de um ano depois, e na véspera de seu casamento, Bassel foi preso pelas forças do governo sírio. Ele desapareceu por oito meses antes de ser transferido para a prisão civil de Adra, onde Noura teve oportunidade de encontrá-lo. Eles decidiram se casar e ficaram famosos como "o casal da revolução síria". Noura mostrou-me o seu arquivo pessoal e aqueles de Bassel, que contêm momentos íntimos de sua relação, momentos fugazes de sua vida juntos.
O mais comovente para mim é o vídeo de uma conversa entre eles e um amigo. Sentados em um jardim, eles falaram sobre seus medos, mas também sobre suas esperanças para o futuro da Síria. Seus olhos arregalados carregavam todo o peso de um futuro desconhecido. Bassel permaneceu na prisão por três anos, a partir de 2012, e Noura conseguia visitá-lo regularmente. Até que em outubro de 2015 ela recebeu um telefonema. Em pânico, Bassel lhe contou que uma patrulha o mandou recolher suas coisas porque iam transferi-lo, mas ele não sabia para onde. Foi a última vez que Noura teve notícias dele. Dois anos depois, após uma busca incansável por informações, Noura soube pelos militares russos na Síria que Bassel havia sido morto alguns dias depois daquele telefonema. Ainda não recebeu a confirmação de como e quando ele foi morto e de onde seu corpo está. A burocracia estatal deu a ela pouquíssimas informações.
Bassel também desapareceu como morto. Eu conheci Bassel na Síria em 2010. Ele era um programador de código aberto, havia criado os primeiros laboratórios coletivos na Síria, Aikilab e Creative Commons Syria, e trabalhava com organizações como Wikipedia e Mozilla. Suas competências técnicas e as relações internacionais de que desfrutava faziam dele um intermediário fantástico. Ao contrário de Paolo, uma figura pública, Bassel trabalhava discretamente, nos bastidores. Cada um à sua maneira, Paolo e Bassel apoiavam a liberdade de expressão, de consciência e de informação. Ambos denunciaram as atrocidades do regime e apoiaram uma revolução pacífica.
Noura também se envolveu na revolução. Ela é uma advogada dos direitos humanos, que trata principalmente com presos políticos na Síria, especialmente aqueles que são feitos desaparecer. À sua maneira, como advogada, ela mantém vivo o espírito do trabalho de Bassel e Paolo, e de todas as pessoas que contribuíram para aquela que esperavam se tornasse uma sociedade melhor. Noura sabe muito bem o que é a dimensão individual e a dimensão coletiva. Enquanto eu a filmava, vi como ela usou sua dor pessoal para levar adiante uma luta coletiva. Ela foi uma das fundadoras do movimento Families for freedom, liderado por mulheres sírias, que luta pelas pessoas detidas e vítimas de desaparecimentos forçados na Síria e é conhecida por transformar um ônibus de Londres em um memorial.
Ela também criou o NoPhotoZone, um coletivo de ativistas não violentos, para apoiar suas famílias e aumentar a conscientização sobre o tema dos desaparecimentos forçados. Paolo e Bassel são apenas dois das pelo menos cem mil pessoas desaparecidas na Síria. O regime sírio ainda está de pé, embora enfraquecido por anos de guerra, por uma economia em ruínas e, mais recentemente, pela pandemia. Nesse contexto, o que essa forma de silenciar as vozes dos sírios significa para o futuro da Síria? Como será possível alcançar a justiça e estabelecer as responsabilidades? O ponto de partida do meu filme são as histórias de Paolo e Bassel. Quando comecei a filmar, não sabia aonde tudo isso me levaria. Eu estava filmando e pesquisando ao mesmo tempo. Eu encontrei muitas pessoas. Decidi incluir Noura e Machi no filme porque percebi que os desaparecimentos forçados não podem ser entendidos apenas através das vítimas diretas, mas é preciso considerar também pelo ponto de vista de suas famílias e dos amigos.
Quando comecei a rodar Ayouni, ainda não sabia que o filme não só falaria de responsabilidade, justiça e desaparecimentos, mas também, e sobretudo, de amor - amor pela Síria, pela justiça, pelos próprios irmãos, pelos próprios companheiros, pelo futuro - e da esperança a que as famílias se agarram. O filme tornou-se um importante documento de memória para ambas as famílias, um espaço onde Noura e Machi podem relembrar e compartilhar experiências e memórias com outras pessoas, uma oportunidade de sentir a sua dor e amor, e de reviver alguns momentos. com Paolo e Bassel. Ayouni significa "os meus olhos" em árabe, mas também é um termo carinhoso para dizer "meu amor". Os desaparecimentos forçados são o contrário do amor. São uma tática que visa despedaçar as famílias, fazer calar quem desaparece e as pessoas próximas, apagar as narrativas que não se enquadram na estrutura de poder dominante. Como diretora, descobri que os filmes desempenham um papel. Os filmes podem combater o esquecimento que é o objetivo dos desaparecimentos forçados, mantendo as pessoas visíveis e diante dos nossos olhos.
O filme Ayouni está disponível aqui.
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Paolo Dall'Oglio. Como manter viva a presença de pessoas desaparecidas na Síria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU