17 Setembro 2020
Os poderosos gestos do Papa Francisco precisam urgentemente de uma linguagem teológica.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por La Croix International, 16-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o historiador, "Yves Congar, no Concílio Vaticano II (1962-1965), culpou Paulo VI por não articular uma teologia implícita em seus gestos e por não entender as consequências eclesiológicas das suas próprias intervenções. É verdade que não se pode separar a identidade jesuíta do papa atual do seu modo de exercer o papado. Mas também está claro que Francisco não pode lidar com a sinodalidade como se fosse um provincial dos jesuítas. Ele é o bispo de Roma".
"Uma teologia da sinodalidade - assevera Faggioli - precisaria de uma teologia da graça mais rahneriana. A graça certamente pode estar presente em discussões de estilo “parlamentar”. Ela não atua apenas ao fazer um discernimento inaciano totalmente desenvolvido".
Raramente um artigo jornalístico oferece uma radiografia de um momento particular de um pontificado, fornecendo tamanha profundidade e detalhamento a ponto de permanecer essencial para entender como um papa percebe o seu ministério na vida da Igreja.
Mas foi exatamente o que aconteceu em setembro de 2013, quando Antonio Spadaro, editor da revista La Civiltà Cattolica, publicou a sua reconhecida entrevista com o Papa Francisco.
Isso aconteceu novamente no início deste mês, quando o jesuíta italiano publicou outro artigo na venerável publicação, explicando o estilo de governo papal do seu coirmão.
O artigo mais recente é especialmente importante, por causa do que o papa jesuíta diz com suas próprias palavras.
O pontificado está longe de terminar, mas este é um delicado momento de passagem para entender que tipo de reforma Francisco pode realisticamente esperar alcançar dentro de um marco temporal que pode ser medido historicamente, e não em eras geológicas.
O artigo da La Civiltà Cattolica responde a uma série de ensaios publicados nos últimos meses – um deles de minha autoria – que analisaram as repercussões da interpretação papal do Sínodo de 2019 na exortação “Querida Amazônia”.
Eles apontaram para a lacuna entre as propostas de reforma institucional aprovadas pelo Sínodo (viri probati, ministérios para as mulheres) e a não recepção dessas propostas por Francisco em sua exortação pós-sinodal.
Spadaro e o papa apontam que a força motriz do pontificado não é a reforma institucional. Em vez disso, para Francisco – como um jesuíta – trata-se “acima de tudo de reformar as pessoas a partir de dentro”, assim como foi para o fundador da sua ordem, Santo Inácio de Loyola. O que importa é a perspectiva longa, e não o curto prazo.
Essa é uma boa notícia para aqueles que esperam que Francisco institua uma reforma imediata que enfrente o colapso eclesial em muitas Igrejas locais distantes de Roma.
Especialmente aquilo que Francisco fala sobre o Sínodo Amazônico – “em certo sentido, o Sínodo ainda não acabou” – confirma uma linha de interpretação da “Querida Amazônia” como um documento diferente das exortações pós-sinodais dos pontificados anteriores. Ela representa a continuação, não o encerramento do processo.
Por outro lado, algumas das declarações do papa que são reveladas pela primeira vez no artigo de Spadaro confirmam que há muita coisa em jogo quando se trata de implementar a sinodalidade.
Esse tem sido um tema importante do pontificado de Francisco desde o início e pode ser amplamente definido como o princípio de “dar a cada fiel uma palavra a dizer sobre o que ocorre na Igreja” ou, no latim do direito romano do primeiro milênio, “Quod omnes tangit ab omnibus tractari debet” (“Aquilo que concerne a todos deve ser aprovado por todos”).
A sinodalidade é um indicador importante de para onde o pontificado está indo. Até agora, houve diferentes fases nas palavras e atos de Francisco sobre a sua implementação.
Se analisarmos o que ele disse sobre sinodalidade, fica claro que na segunda parte do pontificado houve uma preocupação crescente com a necessidade de distinguir e separar os sínodos dos parlamentos, o que não parecia ser uma grande preocupação para as assembleias de 2014 e 2015 do Sínodo dos Bispos.
De fato, parece haver uma inconsistência na interpretação cautelosa do papa sobre a assembleia de 2019 como um consenso que carecia de discernimento. Na realidade, é assim que ele a descreve no artigo de Spadaro:
“Referindo-se ao Sínodo para a Amazônia, a respeito da ordenação sacerdotal de viri probati, Francisco escreve: ‘Houve uma discussão (...) uma discussão rica (...) uma discussão bem fundamentada, mas nenhum discernimento, que é algo diferente de chegar a um bom e justificado consenso ou a maiorias relativas’.”
Na verdade, as assembleias sinodais sobre o matrimônio e a família em 2014 e 2015 foram as reuniões verdadeiramente contenciosas, e não a assembleia de 2019 para a região amazônica.
Com a Amoris laetitia, Francisco confirmou as propostas votadas nas assembleias de 2014 e 2015, mas não fez o mesmo em relação à assembleia sinodal de 2019.
Isso se deveu àquilo que aconteceu durante a sessão de 2019 ou àquilo que aconteceu depois da Amoris laetitia?
Seria interessante ouvir o que os bispos e outros participantes do Sínodo Amazônico acham da afirmação do papa de que a experiência eclesial e espiritual carecia fundamentalmente de discernimento. Curiosamente, nenhum deles comentou até agora.
O recente artigo da La Civiltà Cattolica é importante por algumas razões principais. Em primeiro lugar, ele mostra a discrepância entre a decisão incrivelmente consequente de Francisco de ressuscitar a sinodalidade (inclusive renovando o Sínodo dos Bispos) e uma teologia da sinodalidade eclesial ainda não declarada e não expressada.
Mas há uma lacuna a ser preenchida entre os gestos sinodais muito poderosos e efetivos do papa e uma visão da sinodalidade que ainda precisa ser enunciada teologicamente – especialmente depois do seu fundamental, mas ainda bastante isolado, discurso sobre o 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos.
Este momento faz lembrar Yves Congar, que, no Concílio Vaticano II (1962-1965), culpou Paulo VI por não articular uma teologia implícita em seus gestos e por não entender as consequências eclesiológicas das suas próprias intervenções.
É verdade que não se pode separar a identidade jesuíta do papa atual do seu modo de exercer o papado.
Mas também está claro que Francisco não pode lidar com a sinodalidade como se fosse um provincial dos jesuítas. Ele é o bispo de Roma.
Também é verdade que o Sínodo não é um concílio geral ou ecumênico. Mas podemos nos perguntar o que teria acontecido com o Vaticano II se Paulo VI tivesse decidido discernir os votos finais dos Padres conciliares com os mesmos critérios usados por Francisco para decidir sobre o Sínodo.
A relação entre a sinodalidade eclesial e a visão de Francisco sobre o primado papal como uma intuição sobre a ausência ou presença de discernimento espiritual nas decisões sinodais precisa de uma eclesiologia que ainda não foi elaborada.
O mesmo é verdade para a dicotomia entre o Sínodo e um parlamento, como o papa delineou no artigo de Spadaro:
“Devemos entender que o Sínodo é mais do que um Parlamento; e, neste caso específico, não podia fugir dessa dinâmica. Sobre esse assunto, ele foi um Parlamento rico, produtivo e até necessário; mas não mais do que isso. Para mim, isso foi decisivo no discernimento final, quando pensei em como fazer a Exortação [“Querida Amazônia”].”
Uma teologia da sinodalidade precisaria de uma teologia da graça mais rahneriana. A graça certamente pode estar presente em discussões de estilo “parlamentar”. Ela não atua apenas ao fazer um discernimento inaciano totalmente desenvolvido.
A verdadeira reforma requer uma mudança profunda na espiritualidade e na mentalidade. Mas aqui a insistência de Francisco na natureza não estrutural da reforma real é útil apenas na medida em que não reduz a sinodalidade simplesmente a um estilo de fazer as coisas na Igreja.
A magistral explicação de John O’Malley sobre a importância do Vaticano II [“O que aconteceu no Vaticano II” (São Paulo: Loyola, 2014)] está ligada à questão do estilo, mas também à linguagem teológica e institucional.
A esse respeito, é importante que Francisco considere que o Sínodo de 2019 ainda está aberto. Por outro lado, a sinodalidade precisa de uma teologia do ministério, e, sobre essa questão específica, o papa já fez algumas escolhas na “Querida Amazônia”.
E não se trata apenas dos viri probati e das mulheres na Igreja – embora, como Michael Sean Winters observou recentemente, a questão das mulheres não pareça estar no radar de Francisco quando ele fala de sinodalidade.
As mudanças que este papa trouxe sobre a participação das mulheres nos momentos de tomada de decisão na vida da Igreja têm sido apenas sobre um novo estilo até agora. Elas não foram realmente relevantes ou consistentes.
O problema é que sinodalidade eclesial não pode ser apenas mais um nome para a colegialidade episcopal sob o controle do primado papal. A Igreja deve encontrar uma forma de preservar o primado papal e a apostolicidade, dando tempo e espaço para a sinodalidade.
Aqui, os limites do estado atual da teologia da sinodalidade no catolicismo são evidentes também no modo como a Igreja está enfrentando outras emergências.
Por exemplo, grande parte da resposta institucional à crise dos abusos sexuais tem sido dar mais responsabilidade à cúpula, e não realmente encontrar novos caminhos sinodais no nível das Igrejas locais.
O ponto mais delicado da visão de Francisco sobre a reforma da Igreja tem a ver com a sustentabilidade do plano em comparação com a situação eclesial atual. Não se trata apenas do colapso do modelo clerical, dada a falta de vocações. Em alguns países, isso também se encontra no nexo entre o escândalo dos abusos sexuais e a reforma da Igreja.
As recentes declarações de Francisco sobre o papel do discernimento no processo sinodal pelo primado papal provavelmente serão adotadas como ponto de discussão por bispos que se opõem ou são céticos em relação aos processos eclesiais iniciados em nível local e nacional.
Não é por acaso que esses processos foram iniciados em lugares que foram devastados pela crise de abusos – como a Alemanha, que atualmente realiza o “Caminho Sinodal”, e a Austrália, que planeja um Concílio Plenário de 2021-2022.
A sinodalidade exige que todas as vozes sejam ouvidas. Uma visão da sinodalidade que falhe no teste de reforma da Igreja à luz da crise dos abusos é muito problemática. É por isso que o futuro da sinodalidade eclesial está muito mais nas periferias do que na Sala Sinodal do Vaticano.
A questão é sobre que tipo de apoio Roma dará a essas experiências locais que agora estão se desenvolvendo. Sem o apoio do papa, esses processos sinodais locais provavelmente serão sufocados em seu nascimento.
Lidar com as dores de parto de uma sinodalidade emergente, é claro, não é um problema apenas para Francisco. É um problema para toda a Igreja.
Até a sua eleição para o papado, o tratamento ostensivo da Igreja institucional da sinodalidade era principalmente apenas uma paixão de alguns acadêmicos. Agora há uma lacuna a ser preenchida entre os gestos e a sua eclesiologia.
Até a próxima assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2022 – que será sobre a própria sinodalidade – há muito a ser feito.
Toda a Igreja é chamada a dar uma articulação teológica, magisterial e institucional aos poderosos gestos de Francisco. Caso contrário, a temporada sinodal que a Igreja Católica está experimentando pode acabar sendo muito curta.
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Sinodalidade na encruzilhada. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU