03 Julho 2020
“A história da América Latina nos traz ensinamentos. Após as crises econômicas, chegam profundas convulsões políticas que muitas vezes comprometem suas frágeis democracias”, escreve Sergio Pascual, membro do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica, em artigo publicado por La Vanguardia, 02-07-2020. A tradução é do Cepat.
A América Latina é, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a região mais desigual do mundo. Três em cada dez latino-americanos são pobres e, nos últimos anos, a pobreza extrema não parou de crescer. Nesse contexto, no final de 2019, a região convulsionava politicamente. Somente no último trimestre do ano, as revoltas populares fizeram balançar os governos do Chile, Equador e Colômbia. A Argentina viveu uma reviravolta eleitoral e na Bolívia foi interrompida a ordem constitucional.
E ainda estava por vir o coronavírus e seu brutal choque econômico. O que poderia esperar a região nos próximos anos? Sua história recente nos lembra que, em todas as ocasiões, as oscilações sociopolíticas foram precedidas por fortes tensões econômicas. Vez após vez, suas escassamente resilientes instituições balançaram frente a choques econômicos que as transformaram integralmente em sucessivos ciclos de golpes de estado e reformas constitucionais.
Há apenas 50 anos, em 1973, um embargo ao petróleo impactou a economia global. Os estados latino-americanos tiveram que se endividar para responder com recursos públicos à contração súbita de suas exportações e à fuga de capitais. Quando, poucos anos mais tarde, o secretário do Tesouro do México, Jesús Silva-Herzog Flores, anunciou que o país não seria mais capaz de pagar sua dívida, a América Latina devia 315 bilhões de dólares, 50% do PIB da época.
As forças armadas do Brasil, Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e Chile asseguraram que a crise da dívida não se resolveria redistribuindo a riqueza. Colocariam em marcha um novo paradigma socioeconômico, reaganomics ou neoliberalismo: fim da proteção da indústria nacional, privatização do setor público e um firme compromisso com a exportação de seus produtos agrícolas e petrolíferos.
Suas consequências também são conhecidas. O neoliberalismo desmantelou o frágil tecido produtivo e debilitou as insuficientes provisões dos mais pobres. Por duas décadas, a desigualdade aumentou. Na América Latina, a renda dos trabalhadores perdeu 17% de seu peso no PIB, entre 1980 e 2004. O número de pobres passou de 126 milhões, em 1980, para 225 milhões, em 2002.
Nesse novo contexto de alto conflito social e dependência do petróleo, com um barril caindo de 104 dólares, em 1980, para 18 dólares, em 1997, e com uma crise do sudeste asiático que afastava de novo os investidores dos países em desenvolvimento, a América Latina não pôde enfrentar seus novos empréstimos e foi para a próxima fase. U m novo paradigma emergia no horizonte.
O primeiro país a ver cambalear sua organização social e política foi a Venezuela, que se convulsionou durante os anos 1990: da comoção do caracazo, em 1992, às eleições que levaram Hugo Chávez ao poder, em 1999. Em um Peru destruído pela guerra civil, Fujimori daria um autogolpe, em 1992. A Colômbia vivia seus anos mais sangrentos do conflito interno. O Equador se afundou em instabilidade com 5 presidentes, em 5 anos, entre 1996 e 2001. Pouco tempo depois, Rafael Correa triunfou nas eleições. Na Bolívia, seriam as guerras da água e do gás, do início dos anos 2000, que abririam as portas para Evo Morales. A Argentina estremeceu o mundo, em 2001, com o corralito, seus 4,8 milhões de desempregados e uma dívida pública de 132 bilhões de dólares. Não demoraria chegar Nestor Kirchner.
A constante se mantinha. A um choque externo, seguia uma profunda transformação das estruturas de governança na região.
Durante a década seguinte, enquanto a economia respirou ao ritmo da bonança agroexportadora e petrolífera na região, os governos progressistas melhoraram as condições de vida da maioria, sem a necessidade de diminuir a renda das classes altas. Havia benefícios para todos.
Quando em 2008 veio a crise seguinte e o preço do petróleo voltou a cair de 105 dólares para os 67, o carrossel da instabilidade política se pôs em marcha de novo. Nova crise, nova divisão de custos. Como após a crise do petróleo de 1973, não demoraram chegar os golpes de Estado na região, desta vez, atualizados em uma modalidade branda ou de lawfare. “Prevenia-se” assim uma repartição dos custos da crise que, sem dúvida, os governos progressistas seriam tentados a colocar sobre os ombros dos mais poderosos. Com a destituição de Lugo no Paraguai, em 2012, o impeachment de Dilma Rousseff, em 2015, o kirchnerismo perderia as eleições naquele mesmo ano, e na Venezuela, após a morte de Chávez, em 2013, a instabilidade tem sido constante.
A história da América Latina nos traz ensinamentos. Após as crises econômicas, chegam profundas convulsões políticas que muitas vezes comprometem suas frágeis democracias. As oscilações do preço do petróleo, em uma economia aberta e exposta como poucas outras a choques externos, demonstram ser um indicador excelente destas convulsões.
O que esperar então do contexto pós-coronavírus? Em abril deste ano, o preço do barril despencou para 14 dólares, 75% abaixo do seu valor, em abril de 2019. Alguns dias antes, em 23 de março, a diretora geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, alertava que desde que começou a nova crise da COVID-19, 77,4 bilhões de euros haviam saído dos países emergentes. O Banco Mundial previu uma contração de 4,6% do PIB regional.
E nada parece indicar que a solidariedade inter-regional e a defesa dos direitos humanos e da democracia estejam no horizonte imediato. Em vez disso, alguns indícios deveriam nos fazer ativar os alarmes.
Em El Salvador, em 26 de abril, Bukele autorizou as forças de segurança a usar a “força letal” para combater a violência. Na Colômbia, a Controladoria Geral da República realiza dezenas de processos disciplinares contra 14 províncias e 55 municípios por suposta corrupção na compra de material hospitalar e kits de alimentação.
No Brasil de Bolsonaro, a situação já é um desastre sanitário absoluto. O acúmulo nas funerárias obrigou a escavação de valas comuns, como a da cidade de Manaus, um espaço em pleno Amazonas para o qual já começaram a chegar os caixões. O país ultrapassou as 1.000 mortes diárias.
No Chile, na noite de 27 de abril, um grupo de 20 moradores que protestavam contra as violações aos Direitos Humanos pelo corpo dos Carabineiros foi baleado por um veículo sem registro, deixando mais de dez pessoas feridas.
No Equador, o New York Times denunciava, em 23 de abril, a deficiente contagem sistemática de mortos que poderia ser 15 vezes superior a oficial. A informação também é uma vítima do coronavírus. E ainda não impactou o continente o tsunami da crise econômica em toda a sua extensão.
Deste lado do Atlântico, não podemos deixar de observar com preocupação uma história que ameaça se repetir. Da nossa singular e privilegiada torre de vigia, fortificada em séculos de intercâmbios desiguais, somos obrigados a responder o pedido de ajuda que já levantam as economias e os povos latino-americanos.
Nossa defesa dos direitos humanos e o apoio ao desenvolvimento de democracias plenas na América Latina exigem da Espanha um claro compromisso com a defesa das condições materiais concretas que as fazem possíveis. Suas demandas de sul golpeado são muito semelhantes às nossas demandas na União Europeia. É o tempo de que a voz do sul da Europa se una com as vozes do sul da América Latina, exigindo uma moratória sobre dívidas impagáveis, contraídas em defesa da vida e da dignidade de nossos povos.
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América Latina: democracias no desfiladeiro. Artigo de Sergio Pascual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU