04 Junho 2020
No último domingo (31), as manifestações em favor da democracia e contra o presidente Jair Bolsonaro anunciaram um pouco do tom de insatisfação com o governo federal, ainda que este possua uma base aguerrida, mesmo que reduzida. O anúncio se tornou expressivo devido à união de torcidas organizadas de times de futebol rivais por uma única bandeira, em São Paulo.
Para Marcos Nobre, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse é um exemplo de como o campo democrático, formado por grupos de diferentes campos ideológicos, deve agir na defesa da democracia. “É uma coisa que anima e dá esperança”, afirma Nobre. Para ele, no entanto, as manifestações também assustaram devido à presença de símbolos autoritários entre aqueles que estavam no mesmo local em defesa do capitão reformado.
No cenário, Nobre defende que “é necessário manter a cabeça fria, não pode entrar em provocação, porque é o que eles querem. Esses fanáticos do bolsonarismo querem produzir o caos nas ruas para provocar o que eles chamam de uma intervenção das Forças Armadas. A gente deve ter cabeça fria para dar os passos que são necessários para um afastamento positivo, que signifique a repactuação das regras de convivência política, que foram perdidas nos últimos anos”.
Para atingir o que Nobre chama de repactuação das novas regras de convivência política, o professor defende alguns pontos. Entre eles, entender o que significa Bolsonaro ser um presidente antissistema e a necessidade de uma frente ampla pelo afastamento do presidente. “Se a gente não entender a complexidade que levou à eleição de Bolsonaro, a gente não vai entender como é possível afastá-lo”, considera. A sua análise está no e-book “Ponto-final”, lançado na última sexta-feira (29) pela Editora Todavia, e sobre o qual Nobre conversou com o Brasil de Fato.
A entrevista é de Caroline Oliveira, publicada por Brasil de Fato, 03-06-2020.
Professor, o senhor fala que o campo democrático também quer colocar um ponto final no Bolsonaro e no bolsonarismo, como os mesmos fazem. Como estabelecer o diálogo com a parcela da população que apoia medidas autoritárias?
A gente precisa primeiro saber qual é o tamanho dessa parcela. Nós temos dificuldades de saber isso porque não dá para comparar os dados de hoje com as pesquisas que eram feitas presencialmente. A gente sabe que, desde o início, o governo se estabilizou em um terço do eleitorado. Se a gente for olhar, no entanto, a gente vai ver que teve uma mudança de base, sem considerar esses problemas metodológicos que eu falei que tem: 11% deixaram a base do Bolsonaro e 11% entraram.
Pela análise dos dados, dá para ver que esses 11% [que entraram na base bolsonarista] estão muito ligados ao recebimento do auxílio emergencial. Então, é ilusório a gente pensar que a base de apoio ao Bolsonaro está igual. Tem mudanças. Eu acho que tende a encolher essa base. Por quê? Porque nem toda base de apoio do Bolsonaro desse um terço é autoritária. Tem uma parte que é e que provavelmente corresponde a algo como 12%, segundo o exercício feito pelo Datafolha em setembro de 2019. É para esse núcleo duro que ele fala. Mas isso também vai afastando progressivamente os outros 20% que estavam na base e que não concordam com esse tipo de radicalização autoritária.
Eu acho que ele tende a perder essa base. Mesmo que temporariamente ele consiga substituir uma parte da base tradicional dele por essa base que está recebendo auxílio emergencial, isso não vai durar.
Outro ponto é que a gente está vendo que antes existia um imobilismo dos três terços: um terço que aprova, outro que rejeita e um que nem aprova e nem rejeita. Foi assim uma constante até abril, a chegada da pandemia de verdade. E esses três terços tinham uma lógica muito perversa, porque cada terço falava para si mesmo e não buscava nem tirar a base do Bolsonaro, nem fazer aliança com o outro terço. E isso era um cenário muito favorável para o Bolsonaro, porque o que ele queria é justamente isso: com o um terço dele chegar à segunda vaga no segundo turno, demonizar quem quer que chegasse contra ele, para dizer que ele era a única alternativa, com isso conquistar a reeleição e implementar o autoritarismo no Brasil. Esse era o projeto.
O que a gente está vendo do outro lado é que esse imobilismo dos três terços está se mexendo. Tem duas tendências aí: uma é o aumento da rejeição e outra é a diminuição da base de apoio. Então está se vendo uma movimentação agora. Como essas forças vão conversar? Elas estão vendo que existe alguma coisa que é mais importante do que o que divide todo mundo, que é defender a democracia. Não que isso resolva a mágoa, os rancores e todas as coisas que aconteceram. Não resolve. Só vai resolver na conversa e na repactuação, porque esse negócio de fazer uma frente ampla para impedir o Bolsonaro não é uma coisa bonitinha, é negociação política dura.
Como o senhor observa as manifestações no último domingo (31) das torcidas organizadas autodenominadas como antifascista?
Primeiro, como corintiano, para mim foi uma alegria ver a torcida do meu time defendendo a democracia. Mas ainda mais bonito que isso foi a torcida do meu time se juntar à torcida do arquirrival para defender a democracia. Isso é um exemplo como poucos do que deve ser feito. É uma coisa que anima e dá esperança.
Agora, do outro lado, assusta, porque tem aquele símbolo neonazista ucraniano, gente que é instrutor de grupo paramilitar. Nós temos muita gente armada nessa base fanática de apoio ao Bolsonaro. É o tipo de confronto em que é necessário manter a cabeça fria, não pode entrar em provocação, porque é o que eles querem. Esses fanáticos do bolsonarismo querem produzir o caos nas ruas para provocar o que eles chamam de uma intervenção das Forças Armadas para restaurar a ordem, o que é totalmente ilegítimo do ponto de vista constitucional. A gente deve ter cabeça fria para dar os passos são necessários para um afastamento positivo, que signifique a repactuação das regras de convivência política, que foram perdidas nos últimos anos.
Essa base bolsonarista de que o senhor fala é justamente o que seria ali, numa comparação ao Congresso Nacional, o baixo clero do campo militar?
Exato, mas me preocupa menos as baixas patentes e os soldados das Forças Armadas, porque existe um princípio da hierarquia que é respeitado. O que me preocupa mais são as forças de segurança, nas quais a gente sabe que o bolsonarismo tem uma imensa penetração. A gente estava numa escalada perigosíssima que começou com um motim no Ceará, e a gente não fala mais do motim de lá, porque chegou a pandemia. Mas aquilo ali ameaçava se espalhar pelo País.
Quando a gente vê a ideia de motim, nas Forças Armadas não se encontra isso. Se tem um motim, será severamente punido. E, nas polícias, não foi punido. Muito pelo contrário, todas as vezes em que existe um motim, o Congresso Nacional anistia, aí mora o perigo.
Quando o senhor fala em entender a “normalidade da crise”, que eu entendi como a normalização do estado de crise de 2013, me vem muito à cabeça os conceitos de "democracia de baixa intensidade”, do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Quais chances os campos democráticos perderam em 2013? Onde se errou? O que significou 2013 na esteira da eleição de Bolsonaro, pensando nos conceitos acima?
2013 foi a nossa grande chance de dar um salto à frente em termos de aprofundamento da democracia, e nós perdemos isso. Basta comparar com o “Occupy Wall Street”, em 2011, nos Estados Unidos. Aquilo deu no Bernie Sanders [senador democrata dos Estados Unidos]. É como fazer com que uma energia social que foi desencadeada encontre um canal institucional para se expressar, que desembocou em Sanders. É uma coisa tão extraordinária o que aconteceu nos Estados Unidos para mostrar o que poderia ter acontecido aqui.
Agora, porque não aconteceu aqui? Porque o sistema político, em vez de ver em 2013 uma oportunidade para se reformar e repactuar a democracia brasileira, se blindou contra a sociedade. Realmente, cortou todos os canais, a possibilidade dessa energia entrar no sistema. Os partidos não se abriram, assim como as instituições, e essa energia estava ali solta na rua, esperando canalizações. Claro que, se a gente pensar na eleição da Marielle Franco, Taliria Petrone e Áurea Carolina, isso é uma energia que foi canalizada para dentro do sistema político, porque era um movimento de renovação que encontrou lugar para se expressar.
Mas você vai ter do outro lado. O Bolsonaro foi daqueles que entenderam o que aconteceu em 2013. Ele viu que aquela energia, que ninguém estava querendo canalizar... Pelo contrário, estavam se defendendo daquela energia, com algumas exceções. Ele falou: "Agora é a minha hora, eu vou canalizar essa energia com uma candidatura antissistema".
O senhor comenta no livro que alguns setores que se sentiam excluídos e que conseguiram entrar para a política não vão aceitar agora sair do poder tão facilmente. Como, então, fazer com que esse campo democrático volte ao poder mantendo esses setores que não vão aceitar sair? Como fazer essa negociação?
Não é fácil, não. O que eu tento mostrar no livro é a complexidade da eleição do Bolsonaro, no lugar de simplificar e dizer que foi somente o antipetismo. Não foi só isso, tem muito mais coisa. E, se a gente não entender a complexidade que levou à eleição de Bolsonaro, a gente não vai entender como é possível afastá-lo, porque a gente não vai ter ferramentas para fazer a negociação política que deve ser feita.
Dos setores que entraram no governo, o lavajatismo saiu, uma parte importante da coalizão de conveniência que elegeu Bolsonaro. Mas, se a gente tomar apenas o que eu acho que são hoje pilares importantes do governo Bolsonaro, o que eu chamo de partido militar e o voto evangélico, essas forças não sairão do governo humilhadas. De qualquer maneira, agronegócio, comércio, indústria nunca vão ser alijados do governo, podem haver correlações de forças. Mas os evangélicos e as Forças Armadas conseguiram chegar a um lugar de decisão que eles não tinham antes, do qual eles ficaram alijados muito tempo, como é o caso das Forças Armadas. Se for para tirar o Bolsonaro, será necessário negociar com eles.
A complexidade de construir um impeachment envolve a construção dessa frente ampla no lado da sociedade, que é complicada, e a negociação com quem está no poder e pode até estar disposta a negociar o afastamento de Bolsonaro desde que não seja humilhada, desde que tenha uma saída honrosa. Em um momento em que a ameaça da violência generalizada se mostra, imaginar que será possível fazer uma transição para afastar o perigo que representa o Bolsonaro sem negociar com as Forças Armadas é uma ilusão.
No livro, eu digo que, se as Forças Armadas e o voto evangélico puderem ser convencidos de que é possível afastar Bolsonaro sem impor uma derrota humilhante, vai ser possível essa transição. Agora, é claro que do lado da sociedade tem que haver algumas coisas básicas: seja qual for o governo e a posição das Forças Armadas e do voto evangélico no novo governo, não pode ser um governo de continuidade em relação ao de Bolsonaro.
Agora entra no cenário um ator que Bolsonaro negligenciava muito, que é o Centrão. Um impeachment terá de ser combinado entre gregos e troianos, na versão bolsonarista, entre Forças Armadas, evangélicos e Centrão?
Essa é uma questão-chave, como todas as outras. Mas aí nós estamos falando do novo tripé do governo Bolsonaro. Se a tendência que eu estou vendo se materializar, a base de apoio social do Bolsonaro vai se reduzir cada vez mais ao grupo de fanáticos, uma base social reduzida, mas aguerrida e violenta. A outra coisa é a coordenação de governo: cada vez mais fica claro que as Forças Armadas coordenam o governo de maneira transversal. Por outro lado, o Bolsonaro precisa de um seguro anti-impeachment no Congresso, principalmente na Câmara, aí ele faz uma negociação com o Centrão. Então esse é o tripé hoje.
Agora, também no centrão são muitos. A gente poderia discutir como dentro das Forças Armadas tem posições muito diferentes. O centrão também. Tem o centrão imediatista, que troca apoio por qualquer cargo em qualquer circunstância, que eu chamo de "Centrão Carcará"; e tem aquele Centrão que pensa um pouco mais longe e se questiona o porquê de aderir a um governo inviável.
Essa [primeira] parte do Centrão, que é o Carcará, é o que chega no momento dos abutres. Quando chega o Roberto Jefferson [ex-deputado federal e presidente nacional do PTB], é porque o governo já se inviabilizou. O Roberto Jefferson é o sinal de que todos os urubus podem vir porque a carniça está à disposição. No momento em que o governo Bolsonaro se inviabilizar, o Centrão Caracará vai abandonar o governo, do mesmo jeito que entrou.
Só retomando o trecho do livro em que o senhor fala do Centrão de Bolsonaro, que é: “O Centrão Bolsonaro é o Centrão carcará: pega, mata e come. Ou, na versão varanda gourmet do deputado Arthur Lira, candidato à sucessão de Rodrigo Maia na Presidência da Câmara, é o Centrão raiz".
É uma traição de tudo o que ele falou na campanha. Ele foi se refugiar nesse bastião de fanáticos para sobreviver, porque só eles vão aceitar esse tipo de estelionato eleitoral. Qualquer coisa que o chefe fizer eles vão achar que existe uma boa razão para fazer. Por isso que eu acho que tende também a perder base social, porque desse um terço da base de apoio, 20% era contra o sistema, o Centrão, esse tipo de toma lá da cá. Então não tem como ele sustentar o discurso que ele tinha antes, a não ser para essa base fanática.
No livro, o senhor fala que a configuração do Centrão mudou desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. O que mudou e no que o Centrão se transformou ao se aliar ao Bolsonaro?
Lá na Constituinte, o Centrão se formou para fazer frente à hegemonia progressista da Constituinte, porque tinha ali uma frente ampla progressista que estava dominando os trabalhos da Constituinte, o que em boa medida deu a cara da Constituição que nós temos. E o Centrão era a direita que se opunha justamente a essas pautas. Isso é uma oposição entre o progressismo e uma direita conservadora. Depois o Centrão desaparece enquanto organização desse tipo, e no lugar dele fica uma coisa que eu chamo de pemedebismo: essa organização em dois polos a partir do Plano Real, que tem PT de um lado, PSDB do outro e um mar de PMDBs no meio.
A proposta do Centrão é retomada por Eduardo Cunha quando se torna presidente da Câmara, em 2015. Primeiro, ele é tomado em um sentido original para se opor à esquerda, porque o que se considerava ali é que tinha se uma hegemonia da esquerda. Em um momento em a ex-presidente Dilma Rousseff estava mais fraca, o Eduardo Cunha estava jogando como se o PT tivesse levando o Brasil ao comunismo, o que antecipa bastante do Bolsonaro.
Então tem um sentido de retomar o nome Centrão porque é uma direita conservadora que quer se opor a uma esquerda. Mas tem um outro sentido que é o mais importante de todos, que é fugir da polícia: exigir do governo Dilma Rousseff que controlasse a Polícia Federal e a Operação Lava Jato.
A aproximação de Bolsonaro fica mais coerente quando a demissão de Moro é colocada no cenário?
Você tem razão que é mais coerente, porque a partir daí o que o Bolsonaro está dizendo que sabe que ficará mais fraco e, por isso, se desfaz daquilo que podia traí-lo, que é o caso do Moro, com mais popularidade e controle da Polícia Federal. O que o Bolsonaro disse para o Centrão é: "Vocês deixem comigo que a partir de agora a Polícia Federal está sobre o meu controle, não tem mais risco para vocês".
Ao mesmo tempo, a gente tem que ver com clareza que o governo Bolsonaro foi funcional para esse projeto do sistema político de autodefesa. Acabaram as operações da Lava Jato. É um jogo que ele ataca o sistema o tempo inteiro e ao mesmo tempo oferece tranquilidade ao sistema.
O senhor fala que "Bolsonaro é o presidente antissistema" e que se a gente não entender isso, a gente não vai entender como mudar a situação brasileira. Gostaria, então, que o senhor comentasse essa frase.
Isso é uma característica geral de líderes populistas, na última década, pelo mundo afora. Líderes populistas são contra o sistema e têm uma característica geral é que quando chegam ao poder, eles continuam atacando o sistema. Então, na verdade, eles são parasitas, porque o Estado continua funcionando e o presidente malhando os serviços públicos, dizendo que tudo é ineficiente, como se ele não fosse a pessoa que dirige o sistema.
Vamos pegar a característica do Bolsonaro, que é ser um líder populista autoritário: ele é alguém que identifica o sistema à democracia, esta à esquerda e esta, por sua vez, à Constituição de 88. O que eu proponho no livro é tentar pensar como Bolsonaro pensa.
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“Sem entender a eleição de Bolsonaro, não é possível afastá-lo”, afirma Marcos Nobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU