Por: Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco | 04 Outubro 2018
"De um lado, poderia-se inferir que a adesão bolsonarista tem algumas de suas raízes no próprio modelo de desenvolvimento lulista focado na agência individual e no consumo – e não na mudança estrutural dos bens públicos atrelada a um processo de mobilização coletiva. Esse argumento é legítimo, porém incompleto, já que nosso esforço aqui também foi mostrar que mesmo políticas liberais tinham potência política, além de que o ideal da felicidade era algo finalmente avistado no horizonte das pessoas de baixa renda." A análise é de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco.
Rosana Pinheiro-Machado | Foto: Ricardo Machado - IHU
Rosana Pinheiro-Machado é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutora em Antropologia Social pela mesma universidade. Foi professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford de 2013 a 2016; atualmente é professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM no PPG de Ciências Sociais e coordenadora e cofundadora da Escola de Governo Comum.
Lucia Scalco | Foto: UFRGS
Lucia Mury Scalco é graduada em Sociologia pela PUCRS, pós-graduada em Comunicação e Marketing pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (1999) mestra e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é coordenadora do GT Família Geração e Gênero do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo - CEGOV e pesquisadora da UFRGS.
Este artigo é uma versão resumida e adaptada do manuscrito do livro “From Hope to Hate: The Rise and Fall of Brazil’s emergence”.
Este ensaio traz uma reflexão preliminar de uma etnografia longitudinal que vem sendo realizada desde 2009 sobre consumo e política entre jovens do Morro da Cruz (aqui, “o Morro”), a maior periferia de Porto Alegre. Mesmo sem resultados teóricos ou empíricos conclusivos, consideramos de suma relevância apresentar este esboço de nossos dados durante o pleito eleitoral de 2018 para incentivar novos debates e reflexões a partir deste artigo. Nós viemos acompanhando grupos juvenis desde antes da polarização política que tomou conta do Brasil pós-2013 e pudemos observar as transformações pelas quais eles, suas famílias e seus entornos passaram de acordo com momentos chave da história recente do País, marcados, respectivamente, pela emergência e colapso do crescimento econômico. Essas fases do desenvolvimento nacional afetam não apenas as condições materiais da existência, mas igualmente o self individual, a capacidade de aspirar e as formas de fazer política e de compreender o mundo. Esperança e ódio, por fim, não são categorias totalizantes na perspectiva adotada aqui. São antes tendências que nos ajudam a pensar como a subjetividade política é moldada em contextos diferenciados. Havia ódio na esperança e parece haver esperança no ódio – e essa sutileza é, na verdade, central no argumento que traçaremos nas linhas que seguem.
A cidade de Porto Alegre e o Morro foram o berço e o exemplo para o mundo dos experimentos petistas do orçamento participativo (OP) desde 1990 na administração municipal de Olívio Dutra. Após anos de politização popular, seja via movimentos sociais seja via OP, o lulismo se caracterizou pelo fortalecimento do Estado-gestor, pela gradual desmobilização das bases e pela adoção de políticas liberais de transferência de renda, tendo como marco o Programa Bolsa Família (PBF) [1]. Nossa pesquisa no Morro apontou que essa transformação do cenário político econômico não provocou despolitização, mas certamente alterou a natureza contenciosa. Com a fragmentação do OP, os fóruns públicos de debate e tomada de decisão perderam importância. Logo, é fato que a inclusão financeira focada no indivíduo acarretou em enfraquecimento democrático. Todavia, o próprio ato do consumo, em uma sociedade profundamente desigual, se configurava um ato político de “insubordinação” – conforme iremos aprofundar adiante.
A inclusão financeira, especialmente via consumo, tornou-se um emblema nacional na era Lula. As pessoas de grupos de baixa renda desfrutaram pela primeira vez de várias oportunidades, incluindo ofertas de cartões de crédito, a possibilidade de comprar produtos manufaturados e/ou eletrônicos em várias parcelas e o acesso ao sistema bancário de crédito. O fato de que os pobres estavam andando de avião pela primeira vez ou comprando um novo celular foram celebrados como evidências da redução da desigualdade promovida pelas reformas do Partido dos Trabalhadores no século XXI. Vale lembrar que o Brasil não apenas resistiu à crise econômica internacional de 2008, mas também atingiu seu pico de crescimento econômico (7,5%) em 2010, reduzindo os impostos para produtos manufaturados e incentivando o consumo interno. O Brasil deixou a condição de “país do futuro” e acessou o privilegiado status de um país emergente no sistema internacional [2].
Neste contexto, as novas mudanças no acesso ao ensino superior, tais como cotas raciais e empréstimos financeiros para grupos de baixa renda, bem como novos direitos trabalhistas para trabalhadores domésticos visavam fortalecer os grupos menos favorecidos por meio de um novo idioma de direitos, reconhecimento e ação afirmativa. Houve uma nova construção nacional relacionada às ideias de "acesso" e "emergência". As classes emergentes inverteram os sentimentos de inferioridade e patriotismo pessimista em esperança positiva. A 'classe C' ou as chamadas 'novas classes médias' tornaram-se um fenômeno sociológico que foi sustentado por números impressionantes: entre 2003 e 2011, aproximadamente 40 milhões de pessoas se tornaram “classe média”. O que é importante notar para propósito deste ensaio é que o verbo “brilhar” foi amplamente empregado por acadêmicos e formuladores de políticas para descrever esse momento emergente marcado pela mobilidade social [3].
Esse momento nacional, que veio embrulhado de brilho e esperança, era marcado pela micropolítica do que nós chamamos de reivindicação ao “direito ao prazer”. Como também apontou a densa etnografia de Juliano Spyer [4] em um vilarejo na Bahia, a emergência econômica se caracterizava por um processo subjetivo profundo - que é também político - em que a histórica invisibilidade e humildade dos “subalternos” se transmutava em orgulho e autoestima tanto no nível individual, como de classe. Era o momento de as pessoas pobres “brilharem” pela primeira vez: “levantar a cabeça”, como dizia Marta (25 anos), nossa interlocutora de pesquisa, “trocar o elevador de serviço pelo social” (Beta, 19 anos), se achar “uma negona gostosa e linda” (Karla, 37 anos) ou vestir uma “capa de super-herói e dizer “eu tô podendo” quando se usava um boné de marca (Betinho, 17 anos). Vale lembrar que o PBF, ao repassar o benefício para mulheres diretamente, também empoderou-as e não é à toa que grande parte dessa narrativa de “brilho” era ressaltada por mulheres.
Desse modo, se a narrativa da pobreza é também construída sobre uma imagem da carência, da falta e de sujeitos “despossuídos”, é evidente que a posse de bens passa a ser um fenômeno fundamentalmente político no momento em que, como pontuou Kleinman [5] (sobre as classes emergentes na China), quebra o monopólio do privilégio das elites da aquisição de símbolos de status. Até 2014 mais ou menos, grande parte das falas de nossos interlocutores, especialmente os mais jovens, ressaltava justamente um aspecto de provocação de classe e raça: “Não é porque eu sou pobre que eu não posso usar coisa boa” como nos disse a camelô Maria (24) ou “eles [os brancos] terão que me engolir essa negona aqui, empregada doméstica, usando esse óculos Ray-ban no ônibus. Azar dos racistas que acharem que meu óculos é falsificado” (Karla).
A literatura de viés foucaultiano sobre subjetividade neoliberal estimulada pelo consumo, produtividade e competição, segundo Brown [6] e Dardot e Laval [7], provoca des-democratização e esvaziamento da ordem coletiva. Nossa pesquisa mostrou que isso, contudo, não implicava em despolitização, mas sim uma alteração na natureza política - agora contestatória, mais ambígua e vivida no plano individual. Logo, a inclusão financeira no mercado neoliberal, por ser um processo altamente contraditório, produzia seus efeitos políticos colaterais não esperados. O ápice dessa lógica desafiadora ocorria nos “rolezinhos” que os “bondes” (gangues juvenis) davam nos shopping centers na cidade. Nós acompanhamos alguns “rolês” dos jovens nos anos de 2011 e 2012 (os rolezinhos viraram um fenômeno nacional no final de 2013 e início de 2014). Eram atos concomitantemente de lazer e políticos, no sentido que a diversão também era investida de uma necessidade de se “arrumar bem”, “comprar à vista” e “entrar no shopping de cabeça erguida” para ser aceito nesses espaços que os jovens sabiam que não eram feitos para eles.
Como já analisado no clássico trabalho de Karl Polanyi, e atualizado no trabalho de Zhang [8] em contexto de países emergentes – a entrada de sujeitos na economia de mercado produz um duplo-movimento já que também resulta na produção de sujeitos mais demandantes, conscientes ou exigentes. No caso de nossos interlocutores, a inclusão financeira se revelava um processo altamente ambíguo. De um lado, havia um mercado – e agora também um governo – dizendo que todos podiam consumir. De outro, permanecia uma sociedade que escancarava que “não”, atualizando os marcadores simbólicos da diferença. Os meninos que nós acompanhávamos nos shoppings centers viviam essa tensão: o ato de consumir conspicuamente e ostentar marcas operava como um espelho de um mundo que – apesar de certas mudanças – mantinha-se profundamente segregado, violento, racista e desigual. Isso ocorria porque quanto mais eles usavam marcas para se afirmar, mais os olhos externos os classificavam como “pobres”, “favelados” ou “bandidos”. Nesse sentido, a política do consumo emergia justamente do desvelamento dessa contradição, do momento em que os jovens se davam conta dos limites da inclusão financeira.
Assim, os rolezinhos, que se tornaram fenômeno nacional, sinalizavam afronta e reivindicação ao direito à circulação nos espaços urbanos, ao mesmo tempo em que simplesmente expressavam o desejo juvenil de se divertir em um shopping center. Em 2014, quando nós fomos convidadas para falar sobre o fenômeno no debate público, nosso posicionamento era justamente de sempre levantar essa dupla constituição (contestação e lazer) dos rolezinhos para evitar romantização. Todavia, apesar de os rolezinhos não terem se constituído uma ação coletiva organizada antissistêmica, anticapitalista ou antirracista, nós notávamos que havia uma semente de mobilização e insurgência naqueles eventos no momento em que os shoppings fecharam as portas para eles e a imprensa do Brasil todo começou a discutir racismo, discriminação de classe e apartheid à brasileira. Os jovens que nós pesquisávamos sempre foram conscientes que seus corpos eram temidos e indesejáveis em diversos lugares da cidade, mas isso nunca havia ocorrido de forma tão escancarada. Essas negativas operavam como “um soco na cara”, como disse Betinho. Desmoronava-se toda a construção de uma nação que, nos últimos anos, tinha passado a mensagem de que os mais pobres estavam dentro do sistema. As portas fechadas dos shoppings, contudo, era uma forma literal de dizer que isso não era verdade. Não se pode esperar que a violência a que esses jovens foram submetidos – no shoppings centers e além deles – não fosse voltar a assombrar.
Depois de 2014, nós retomamos o trabalho de campo no Morro no final de 2016. Era o momento pós-ocupações secundaristas e estávamos intrigadas para entender se havia relação entre os rolezinhos e essa forma de mobilização emergente. Como pontuamos nos parágrafos anteriores, nós acreditávamos que os rolezinhos continham uma “semente de insurgência”, pois eram uma espécie de “rebelião primitiva” nos termos de Standing [9], marcada pela ambiguidade e que, portanto, poderiam pender à esquerda ou direita dependendo da correlação de forças no contexto e das oportunidades políticas. As ocupações secundaristas - a virada anticapitalista da juventude - eram a prova cabal desse nosso argumento. Ou não.
Em nossa primeira visita a uma escola do Morro em 2016, foi revelador descobrir que os meninos que veneravam marcas e davam “rolês” em shopping centers ignoravam por completo – quando não desprezavam como “coisa de vagabundo” – as ocupações secundaristas. Além disso, parece que o pêndulo das “rebeliões primitivas” pesava para o lado do conservadorismo: aproximadamente um terço dos alunos secundaristas demonstravam profundo interesse na figura do então pré-candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (do Partido Social Cristão), que tem defendido uma agenda conservadora de valores morais da tradição religiosa, bem como pautas punitivistas no combate à violência urbana e à corrupção. Já no ano de 2017, era raro conhecer um menino que não fosse admirador ou que não pensasse em votar no candidato, o qual se tornou um fenômeno, um símbolo totêmico de identificação juvenil masculina semelhante ao papel que a Nike ou Adidas, por exemplo, desempenhava em tempos de crescimento econômico e apologia governamental ao consumo. O que havia ocorrido entre 2014 e 2017 que provocara tamanha transformação na subjetividade juvenil masculina? O que fez com que jovens trocassem as marcas pela iconografia de um político? Em que medida a simbologia do “mito” (de Bolsomito, como é informalmente chamado) se diferenciava tanto de outros ícones juvenis?
O crescimento do Brasil baseado, entre outras coisas, no incentivo do consumo doméstico, se demonstrou insustentável no longo prazo. Em 2014, o País adentrou em uma das piores crises da história. Após dois anos de convulsões políticas e econômicas, o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a consequente agenda de austeridade adotada por Michel Temer culminou em sensação de desamparo social. Não só as pessoas deixaram de consumir como outrora, como também deixaram de receber diversos benefícios do governo federal. Em Porto Alegre, isso se somou à administração municipal de Marchezan Junior (2016-2020), um prefeito alinhado com um amplo espectro das novas e velhas direitas conservadoras e liberais. É importante também mencionar que, nesse contexto, a cidade ainda passou a enfrentar a pior crise de segurança pública de sua história: defasagem e precariedade policial de um lado, e guerras entre facções do tráfico de drogas de outro lado. O resultado de todo esse processo é a deterioração da vida cotidiana do Morro, marcada pelo aprofundamento da defasagem de bens públicos, cortes de benefícios sociais, violência urbana. Toda a narrativa acerca da emergência social e do direito a brilhar se esfacelou bruscamente em um contexto de cores bastante opacas. Isso afetou, é claro, a capacidade de aspirar dos sujeitos de camadas populares.
No meio de todo esse processo de liminaridade e crise social não foram os rolezeiros que transmutaram sua revolta na formação de novas subjetividades políticas contenciosas – como nós achávamos que poderia acontecer. Após as mobilizações das Jornadas de Junho de 2013, a crise se constituiu uma janela de oportunidades políticas para mobilização de muitos jovens secundaristas nos anos seguintes. Como mostra a pesquisa de Alegria [10] e de Campos, Medeiros e Ribeiro [11], uma das características das ocupações das escolas que se alastraram país afora foi o protagonismo político das meninas adolescentes. Além das ocupações em si, o Brasil pós-2013 se caracteriza pela multiplicação de coletivos negros, LGBTs e feministas, marcados pela lógica autonomista da descentralização e horizontalidade. Nos últimos anos, nas escolas do Morro, houve uma explosão de meninas que se declaram feministas. Isso não é apenas inédito como chega a ser revolucionário no sentido de rompimento de estruturas sociais e modelos hegemônicos de masculinidade que se perpetuavam na zona urbana periférica. De forma eloquente, muitas meninas vêm falando e disputando narrativas políticas no ambiente de sala de aula e fora dele. Até poucos anos atrás, o papel das meninas adolescentes – chamadas de “vedetes” que iam atrás dos rolezeiros ou funkeiros que ostentavam mais marcas – sempre fora secundário nas gangues, bondes ou rolês juvenis. É evidente que essa transformação produziu uma reação.
Nos debates que temos promovido nas escolas durante essa nova fase de nosso trabalho de campo desde dezembro de 2016, os meninos têm se demonstrado mais retraídos no debate político em sala de aula, enquanto as meninas, com argumentos articulados e com a voz entonada, criticam manifestações que consideram machistas de Jair Bolsonaro, por exemplo. Porém, quando nós realizamos grupo-focal só com meninos simpatizantes do candidato, eles se sentem à vontade para falar sobre suas razões de adesão ao “mito”. Uma dos fatores que nos parece decisivo para a formação de uma juventude bolsonarista é justamente essa perda de protagonismo social e a sensação de desestabilização da masculinidade hegemônica. Isso fica bastante evidente em nossas rodas de conversa mais descontraídas, quando os meninos recorrentemente chamam muitas meninas de “vagabundas” e “maconheiras”. Tal modo pejorativo não é nenhuma novidade na sociabilidade juvenil – a diferença é que agora muitas dessas meninas reivindicam um papel político e público de forma mais contundente.
Por outro lado, ainda que a questão de gênero seja decisiva, seria simplista o argumento de que a adesão bolsonarista seja pura e simplesmente uma reação à emergência das vozes feministas. Suas masculinidades são também desafiadas no dia a dia marcado pelo aprofundamento da crise de violência urbana de Porto Alegre. Todos os nossos interlocutores homens, adolescentes ou jovens adultos, ou sofreram tentativas ou já foram assaltados no transporte público na ida ou na volta da escola/trabalho. Marcelo (19), um dos adolescentes mais entusiasmados com a figura do Bolsonaro, narrou um assalto no qual teve uma arma apontada para a sua cabeça, implorou por sua vida e entregou o celular para o ladrão. Ele cedeu passivamente o único bem que detinha e que havia lhe custado meses de trabalho como aprendiz de padeiro – o que soava como profundamente injusto e revoltante. Mas além de entregar um objeto que adorava, Marcelo também se sentiu em uma situação de vulnerabilidade e humilhação.
Por meio de histórias como essa, a figura de Bolsonaro vinha à tona nas conversas. Quando o assunto era segurança pública, os jovens falavam do candidato com afinco e com conhecimento de pautas e propostas. Eles demonstravam raiva contra um sistema penal e prisional que consideravam frouxo e que ninguém respeitaria: “as leis são fracas e ninguém respeita”, “bandido sabe que nada vai lhe acontecer” – essas são algumas das frases repetidas com frequência. Na mesma linha temática, o tema mais forte entre os simpatizantes homens de Bolsonaro, do Morro, sejam eles jovens ou não, era a crença na liberalização do porte de armas. Esse é um tema que sempre despertava discussões calorosas entre aqueles que, de um lado, viam nas armas a possibilidade de se defender e, de outro, os poucos que acham que isso acarretaria uma guerra civil que se somaria à violência policial cotidiana. Entre os que defendiam o armamento da população, havia a ideia de que não seria um simples processo de liberalização – os indivíduos teriam que passar por testes psicológicos, por exemplo – mas que o fato de se saber que a população pode se defender inibiria a ação dos assaltantes. Vale lembrar, contudo, que essa questão não pode ser encarada como uma novidade, já que a simbologia das armas tem sido um tema central nos estudos sobre ethos masculino e na construção da figura do “super macho” das periferias onde a lógica do tráfico impera [12]. [Sobre a aparente contradição de meninos que sofrem violência policial e votam em Bolsonaro, leia este artigo, no qual Pinheiro-Machado e Scalco desenvolvem mais o tema].
A figura militar de Bolsonaro também despertava profunda admiração. Nenhum adolescente entrevistado defendeu a volta à ditadura, mas achavam importante os valores de “pulso”, “ordem”, “disciplina”, “mão forte” e “autoridade” neste momento de crise nacional. Enquanto todos os meninos se colocaram contra a tortura e a censura, sendo inclusive críticos da ação policial nas comunidades, eles viam na imagem do militar uma forma de “último recurso”, isto é, figurativamente, um pedido de socorro de jovens que já foram tomados pelo desalento. Este é o caso de Rique (21), apelidado de “nem-nem: nem estuda nem trabalha”. Ele passa o dia entre a casa e a Igreja Universal que frequenta. Deus e Bolsonaro, para ele, são duas formas de salvação de uma vida indigna. Luis (19, estudante de cursinho popular), que já foi assaltado no Centro da cidade, entende que o Morro tem muitas regras positivas que vêm de cima para baixo do tráfico, admira isso, pois se trata de uma região da cidade segura: “isso que o tráfico faz aqui, por exemplo, dizer isso é certo e isso é errado; é isso que Bolsonaro vai fazer no País”.
O que é interessante perceber é que essa ética do apelo à ordem, que parece tão pouco transgressor para uma vivência juvenil, na verdade vem embrulhada em um pacote estético de memes, piadas e uma gramática de internet que consegue atingir os jovens. Muitas das acusações frequentes de Bolsonaro – como a de que ele teria sido misógino por declarar que no quinto filho ele fraquejou e veio uma mulher – são entendidas como apenas uma brincadeira. Como também mostrou a pesquisa de Solano [13], Bolsonaro tem sido amplamente visto como um candidato “engraçado”, “muito inteligente”, mas também “honesto” e que tem coragem de “peitar a mídia” e “falar o que todo mundo pensa”. Além disso, é interessante observar como a ordem coabita com o desejo antissistêmico e transgressor juvenil, já que a ampla maioria dos jovens diziam que Bolsonaro era também “um voto de protesto contra tudo o que está aí”.
Nós temos interlocutores de pesquisa de diversas idades (embora nosso foco sejam os adolescentes) e dos mais variados pertencimentos. Após realizar dezenas de rodas de conversas, informais ou semiestruturadas, não conseguimos identificar um padrão ou um consenso de posições entre os adolescentes. Existem simpatizantes do Bolsonaro entre mulheres, meninos que pertencem a mundos completamente distintos, como o do Funk, do tráfico, da igreja ou da escola. Cada um desses grupos juvenis se apega a uma parte do repertório que, em comum, apenas passa pela figura de um homem que oferece uma solução radical à vida como ela é. Ademais, como a pesquisa de Bulgarelli [14], sobre conservadorismo e movimento LGBT, já vem apontando, é possível concluir que o alinhamento das pautas da polarização ideológica acirrada nas redes sociais não necessariamente se reflete na realidade empírica. Um exemplo disso foi quando os jovens bolsonaristas defenderam veementemente o acolhimento de refugiados africanos e haitianos contra duas pessoas que repudiavam Bolsonaro e achavam que imigrantes tiravam emprego dos brasileiros. [Sobre mulheres que votam em Bolsonaro, leia o artigo “Mulheres Pró-Bolsonaro”, de Pinheiro-Machado, no qual ela explora algumas dessas questões em camadas mais abastadas].
Nesse sentido, por estarmos fazendo campo em uma perspectiva longitudinal, o nosso achado mais importante é que esses jovens são muito mais flexíveis e abertos ao diálogo em profundidade do que se pode imaginar no senso comum midiático, que frequentemente recorre à categoria de “discurso do ódio”, a qual, em nosso entendimento, tem apenas valor político, mas não acadêmico. Em todos os nossos debates, quando os meninos foram expostos a argumentos e debates mais longos, houve mudança de posicionamento. Além disso, era comum que eles dissessem algo como “sou fã do cara, mas tenho medo dele, pois ele é extremista” e, então, mencionavam que tinham medo de ditadura, de castração química de estupradores e da própria personalidade “cabeça quente” do candidato. Nós também já nos deparamos com muitos meninos que em 2017 eram fãs do Bolsonaro e agora acham que ele não se sustenta em debates – uma espécie de modismo juvenil que vai perdendo a força.
Essa flexibilidade de diálogo e posicionamento, contudo, não é encontrada facilmente entre os jovens que já deixaram a adolescência. Conforme eles vão entrando no mercado de trabalho precário – para trabalhar de motoboy, motorista de uber, garçom e camelô –, bem como vão se tornando muito cedo “pais de família”, o discurso bolsonarista se torna muito mais rígido, violento e embrutecido ao ponto de nos sentirmos profundamente incomodadas no trabalho de campo, com maior dificuldade de relativização. Acreditamos que as razões para essa disjunção geracional seja diversa, mas principalmente reside em dois aspectos. Primeiro, o processo de amadurecimento e de desalento que vai tomando parte da vida profissional desses jovens adultos. Segundo, os adolescentes pós “Junho de 2013” são expostos a uma lógica mais democrática em relação à questões de gênero, raça e sexualidade, na mesma medida em que já são uma geração mais exposta ao debate político.
Sob o ponto de vista antropológico, procuramos situar os interlocutores de pesquisa como sujeitos cuja constituição do self é multifacetada e negociada conforme o contexto. Em tempos de crise política, isso nos ajuda a fugir da razão do senso comum polarizado que, comumente, parte do princípio que existe um campo homogêneo que, ao se identificar com Bolsonaro, é automaticamente fascista, de extrema direita, produz discurso do ódio e é avesso ao diálogo. Esse encapsulamento de identidades juvenis não é apenas reducionista sob o ponto de vista acadêmico, como também traz outras implicações negativas. Eticamente, a rotulação não deixa de ser uma forma de violência e uma irresponsabilidade, uma vez que muitas vezes estamos nos referindo a adolescentes em processo de formação política. Politicamente, acreditamos que se trata de um erro estratégico que perde a oportunidade não apenas de entender as razões do apelo conservador, mas também de dialogar e oferecer discursos alternativos. Se uma parte do self desses jovens nos mostra flexibilidade e adaptabilidade, é nisso que precisamos nos agarrar para uma aposta em uma sociedade democrática.
O objetivo deste breve ensaio foi mostrar como os respectivos momentos de crescimento e crise econômica brasileira moldaram diferentemente a subjetividade política de indivíduos de baixa renda. O lulismo foi uma período em que, nos termos de Appadurai, a capacidade de aspirar se alargava, já que agência do consumo reside justamente na possibilidade de abrir uma janela através da qual se imagina um mundo melhor. Parece-nos que, no caso estudado, o que se abriu foi uma brecha, mas uma brecha importante, é verdade, capaz de produzir orgulho e autoestima, especialmente entre os jovens que reivindicavam reconhecimento em um novo modelo de nação. Essa brecha de esperança também apontava para inclusão em uma economia de mercado que, assim como queria o dinheiro desses novos consumidores, também lhes fechava as portas – inclusive literalmente como ocorreu no caso dos rolezinhos. A brecha se fechou e trouxe a concretude e a revolta de se viver num mundo estruturalmente desigual e violento.
Esperança e ódio não são – e nunca foram – categorias excludentes, mas coabitam ganhando maior ou menor espaço conforme o contexto. Isso nos ajuda a compreender porque, no caso em questão, não se pode falar em uma “virada conservadora”. De um lado, poderia-se inferir que a adesão bolsonarista tem algumas de suas raízes no próprio modelo de desenvolvimento lulista focado na agência individual e no consumo – e não na mudança estrutural dos bens públicos atrelada a um processo de mobilização coletiva. Esse argumento é legítimo, porém incompleto, já que nosso esforço aqui também foi mostrar que mesmo políticas liberais tinham potência política, além de que o ideal da felicidade era algo finalmente avistado no horizonte das pessoas de baixa renda. De outro lado, também poderia-se inferir que o crescimento do “bolsomito” nas periferias é fruto do golpe de 2016. Este também é um argumento legítimo e incompleto, uma vez que o lulismo foi incapaz de promover transformações estruturais. Logo, a agenda de austeridade de Michel Temer mais aprofunda do que inaugura uma vida de exclusão. Por isso, temos preferido pensar em um continuum histórico em que a violência estrutural – o racismo, a discriminação de classe, o patriarcado ancorado na figura do super macho – e a presença da igreja, do tráfico e da polícia sempre foram os modelos preponderantes, juntamente, é claro, com práticas cotidianas de resistência, criatividade, amor e reciprocidade.
Notas:
[1] Ver, por exemplo, Singer, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] Oliven, Ruben George; PInheiro-Machado, Rosana. "From “country of the future” to emergent country: Popular consumption in Brazil." In Pertierra, Anna (ed). Consumer Culture in Latin America, Palgrave Macmillan, New York, 2012. 53-65.
[3] Neri, M. C. (2008) ‘A nova classe média.’ Rio de Janeiro: FGV/Ibre, CPS: 16.
[4] Spyer, J. (2017). Social Media in Emerging Brazil. London: UCL Press.
[5] Kleinman, A, et al. (2011). Deep China: The moral life of the person. Univ of California Press.
[6] Brown, W. (2005). "Edgework." Critical Essays on Knowledge and Politics. Princeton .
[7] Dardot, T, and C. Laval. (2014). The new way of the world: On neoliberal society. London: Verso Books.
[8] Zhang. Li. (2012) In search of Paradise: Middle-class living in a Chinese metropolis. New York: Cornell University Press.
[9] Standing, Guy. (2016). The precariat: The new dangerous class. London: Bloomsbury Publishing, 2016.
[10] Alegria, Paula. “Lute como uma mina”. Trabalho apresentado no Fazendo Gênero 11, Florianópolis, 2017.
[11] CAMPOS, Antonia; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio. Escola de Lutas. São Paulo, Ed. Veneta, 2016, 352p. ISBN: 978-85-63137-69-2.
[12] Zaluar, A. (1993): ‘Mulher de bandido: crônica de uma cidade menos musical.’ Estudos feministas 1.1 135. Fonseca, C. (2000). Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Universidade
[13] Solano, Esther. Crise da Democracia e Extremismo da Direita, Relatório da Fundação Friedrich Ebert Stiftung, 2018.
[14] BULGARELLI, Lucas. Um impeachment, algumas tretas e vários textões - Notas sobre o Movimento LGBT brasileiro pós 2010. In: GREEN, James et al. (org.). A História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda Editorial, 2018.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Da esperança ao ódio: Juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU