Por: Patricia Fachin e Ricardo Machado | 24 Julho 2018
Elaborar um projeto de Estado é a principal pauta política a ser discutida no Brasil daqui para frente, defende o cientista político Rudá Ricci na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line na semana passada, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no Campus Unisinos Porto Alegre. Na avaliação dele, “no Brasil nós nunca tivemos uma noção muito clara do papel do Estado”, e com exceção do governo Getúlio Vargas, do embate entre direita e esquerda nos anos 60 e do regime militar, nunca se discutiu a República no país. “O que estou tentando dizer é que, fora aqueles três períodos, não discutimos mais o Estado brasileiro, discutimos a desconstrução do Estado brasileiro e das políticas de proteção social”, resume. E adverte: “O Brasil é um dos países que tem o menor número de funcionários públicos por mil habitantes no mundo, um país que tem pouquíssimos cargos comissionados — 16% do total dos servidores públicos são comissionados; isso é nada. Mas em contrapartida existe uma elite no funcionalismo público, principalmente no Judiciário, que comanda a República brasileira junto com os deputados federais e que recebe como o topo da elite brasileira. Esses estão incluídos no 1% dos mais ricos do Brasil; isso é inadmissível em um país com alta desigualdade como o nosso. O fato é que precisamos rediscutir o Estado brasileiro, onde ele está, quais funcionários precisamos ter, quais os serviços que necessitamos, e parar com a terceirização, porque nenhum país consegue se desenvolver sem uma inteligência pública. Nós estamos destruindo a inteligência pública e jogando-a para as consultorias, para empresas que são trampolim na carreira individual das pessoas que prestam consultoria para o Estado”.
Crítico ao modo como os últimos presidentes conduziram o Estado brasileiro, Rudá Ricci avalia que na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso “se retomou um discurso de destruição do Estado Nacional”. Depois, nos governos petistas, “apesar da imagem de eles terem conseguido, de fato, alterar duas questões centrais, como o diálogo com as forças políticas sociais organizadas no Brasil para tentar reorganizar as políticas públicas — ou pelo menos convencer — e as políticas sociais de aumento da renda, ocorreram situações, na política, de muito retrocesso”. Segundo ele, as políticas públicas do lulismo tiveram como consequência “um conservadorismo e um hedonismo popular que não conhecíamos até então e, a partir daí, um ultraindividualismo que toma parte do país”. Esse individualismo, afirma, foi um dos motores das manifestações de Junho de 2013. “Nós estamos com a cabeça e com conceitos teóricos de análise do século XIX e XX e não estamos conseguindo entender o que é essa nova forma hiperindividualizada de adesão que se faz via mobilização, que é uma adesão provisória, e não uma adesão como antes, de filiação a um conceito ou organização; 2013 foi isso”, avalia.
Ricci aposta num modelo de Estado já sugerido por Boaventura de Sousa Santos, no qual o Estado é compreendido “como um movimento social”. “É a ideia de a sociedade civil, com suas diferenças e disputas, ingressar no Estado. Isso é o inverso da noção liberal do Estado ou a radicalização de uma visão liberal mais politizada do Estado”, explica.
A seguir, publicamos a primeira parte da entrevista concedida por Rudá Ricci à IHU On-Line, na qual ele reflete acerca do papel do Estado no Brasil, sobre o modo como os últimos governos se utilizaram do Estado para formular programas de governo que levaram ao desmantelamento de políticas públicas, e sobre as manifestações de Junho de 2013.
Amanhã, publicaremos a segunda parte da entrevista, na qual o cientista político reflete sobre o cenário eleitoral brasileiro e sobre a conjuntura política de Minas Gerais.
Rudá Ricci em entrevista no Campus da Unisinos,
em Porto Alegre | Foto: Ricardo Machado - IHU
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Quais são os temas centrais que deveriam estar em pauta da discussão eleitoral deste ano, pensando um projeto de país para o Brasil?
Rudá Ricci — A questão central, mas que, evidentemente, acredito que não entrará na pauta política pela polarização ideológica, é o projeto de Estado. No Brasil nós nunca tivemos uma noção muito clara do papel do Estado. Mas o Varguismo, o Getulismo, o embate da esquerda e da direita nos anos 1960 e o regime militar foram os três grandes períodos em que tivemos uma discussão sobre a República. A reflexão da Constituinte de 1987 foi muito fechada em cúpulas de organizações sociais e de representações de classe, e contou com a participação de algumas organizações religiosas — principalmente católicas — e juristas, mas ela não chegou a dominar o debate nacional, de fato, nos “grotões”.
Mas nesses três períodos que citei tivemos uma discussão muito importante sobre o Estado, porque isso mexia demais com a vida das pessoas. Discutiu-se a implantação da Carteira de Trabalho, criou-se a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. Mais tarde, nos anos 1960, criou-se a possibilidade da representação de sindicatos no meio rural, que era tardia e só nasceu em 1961. No regime militar se discutiu sobre o papel do Estado, a relação dele com as empresas, as empresas estratégicas. Em seguida tivemos um governo como o de [José] Sarney, que foi muito frágil e que fez a política de governo pelos “escaninhos” do Legislativo e com muitas ameaças de parte a parte. Por exemplo, o General Leônidas [Pires Gonçalves] na época criou ameaças com deputados que presidiam Comissões Técnicas da Constituinte para impor o papel do Exército como garantidor da segurança interna. Sarney fez uma série de intervenções: lembro que quando fiz parte da implantação do Plano Nacional de Reforma Agrária, ele fez intervenções por meio de alguns políticos para mudar completamente a lei e o percurso das políticas públicas.
A partir daí se tem a ascensão de uma visão ultraliberal que vem com [Fernando] Collor. Itamar [Franco] foi um interregno nessa história, mas, depois, com Fernando Henrique Cardoso se retomou um discurso de destruição do Estado Nacional. Posteriormente, com Lula e Dilma, apesar da imagem de eles terem conseguido, de fato, alterar duas questões centrais, como o diálogo com as forças políticas sociais organizadas no Brasil para tentar reorganizar as políticas públicas — ou pelo menos convencer — e as políticas sociais de aumento da renda, ocorreram situações, na política, de muito retrocesso. Destruímos, dentro do PT, todas aquelas inovações que se chamavam, até certo tempo, de “modo petista de governar”: o Orçamento Participativo, os Conselhos de Gestão Pública, a forma de gerir com transparência, a inversão de prioridades, as estruturas de controle de políticas públicas e não só conselhos, como a criação de comitês dos beneficiários de uma política para eles fiscalizarem a execução e a metodologia no emprego daquelas políticas, equipes avançadas de atendimento, com o Estado indo ao cidadão, como é o caso do Programa de Saúde da Família - PSF, entre outras.
Nós fomos retrocedendo no governo Lula, porque esse era um governo altamente centralizador e que induzia tanto o empresariado a fazer investimentos, como o consumo das classes trabalhadoras. Não se teve nesse período a emergência da Classe C. O conceito de Classe C é um conceito mercadológico de consumo; Classe C de Consumo é o conceito certo. A classe trabalhadora aumentou sua renda média, mas continuava, do ponto de vista sociológico, classe trabalhadora; não era, digamos, uma classe proprietária. O fato é que essa indução do consumo gerou um conservadorismo popular muito forte porque não fez a inclusão pelo direito. A inclusão foi feita pelo consumo e quando isso acontece é possível perceber que o prestígio pessoal se dá por aquilo que é consumido, ou seja, aquilo que se mostra para o vizinho ou a família no Natal, como a compra de um carro novo.
Desta forma, a pessoa tenta garantir o status que recebeu e por isso ingressa em cursos noturnos universitários para conseguir ter um título, fazer um concurso e continuar progredindo. Isso gerou um conservadorismo e um hedonismo popular que não conhecíamos até então e, a partir daí, um ultraindividualismo que toma parte do país. Com o governo Dilma Rousseff isso piorou. O que estou tentando dizer é que, fora aqueles três períodos, não discutimos mais o Estado brasileiro, discutimos a desconstrução do Estado brasileiro e das políticas de proteção social. Este é o grande tema no Brasil: para que serve o Estado? O Brasil é um dos países que tem o menor número de funcionários públicos por mil habitantes no mundo, um país que tem pouquíssimos cargos comissionados — 16% do total dos servidores públicos são comissionados; isso é nada. Mas em contrapartida existe uma elite no funcionalismo público, principalmente no Judiciário, que comanda a República brasileira junto com os deputados federais e que recebe como o topo da elite brasileira. Esses estão incluídos no 1% dos mais ricos do Brasil; isso é inadmissível em um país com alta desigualdade como o nosso. O fato é que precisamos rediscutir o Estado brasileiro, onde ele está, quais funcionários precisamos ter, quais os serviços que necessitamos, e parar com a terceirização, porque nenhum país consegue se desenvolver sem uma inteligência pública. Nós estamos destruindo a inteligência pública e jogando-a para as consultorias, para empresas que são trampolim na carreira individual das pessoas que prestam consultoria para o Estado.
IHU On-Line — O senhor está fazendo uma leitura crítica do tipo de intervenção estatal feito especialmente nos governos petistas. Entretanto, à época parecia haver um apoio grande de muitas instituições e intelectuais às políticas de Estado adotadas pelo governo Lula em várias áreas, como na área de educação, com os financiamentos favorecidos pelo Estado para o ingresso de estudantes nas universidades, na área de habitação com a formulação do Programa Minha Casa Minha Vida, na criação do Bolsa Família, na própria ideia de novo desenvolvimentismo, tendo o Estado como indutor de muitos investimentos econômicos, inclusive escolhendo quem seriam as empresas tidas como “campeões nacionais”, como foi o caso das empresas alimentícias etc. Que leitura faz, retrospectivamente, de como esse modelo estatal lulista foi compreendido à época? Durante o lulismo era feita essa leitura crítica acerca do modo como os governos petistas estavam estruturando o Estado ou não? Por que as críticas que o senhor aponta hoje eram tímidas naquela época?
Rudá Ricci — Existe uma diferença entre ter uma concepção de Estado e de Nação e ter uma concepção do papel do Estado para desenvolver certas políticas; é diferente. Uma questão é estrutural, isto é, nosso país se desenvolve a partir de que estruturas públicas? No Brasil o empresariado é absolutamente dependente do Estado brasileiro; não que em outros países ele seja muito autônomo, mas aqui é absolutamente dependente. Por exemplo, a imprensa brasileira não existe sem o Estado: ela não sobrevive da venda de produtos. A própria Rede Globo só existe porque foi criada pelo Estado militar com financiamento público e com uma intervenção junto à maior rede de televisão e telecomunicações dos Estados Unidos à época, que fez consultoria no Brasil porque o governo militar queria uma rede de comunicação de integração nacional.
Nós não tínhamos exatamente, no governo Lula, uma concepção estrutural do Estado e de organização da sociedade; tinha-se uma ideia de como se poderia fazer um arranjo, um pacto desenvolvimentista. Tratava-se de uma visão mais conjuntural, de momento, em função da entrada de recursos externos que estava ocorrendo naquele momento, em especial da China. Eu fazia parte da executiva nacional do Fórum Brasil de Orçamento e nós tivemos algumas conversas com membros do governo federal e com ministros, porque estávamos muitos preocupados com a forma como o orçamento público federal estava sendo enxugado dos recursos e investimentos dos municípios por meio da inanição do Fundo de Participação do Municípios - FPM, e concentrando na União entre 65% e 70% dos recursos públicos. O Fundo de Participação do Municípios alimenta 80% das cidades brasileiras; sem ele, os municípios entram em colapso. Mas o FPM foi enxugado durante o governo Lula, porque a maior fonte de recurso passou a ser o Imposto de Produtos Industriais - IPI. O IPI foi zerado no governo Lula para gerar emprego na indústria metalúrgica, e não foi apenas por causa disso, foi algo deliberado do governo. Conversamos muito com representantes do governo à época e o que se dizia era o seguinte: precisamos induzir os municípios a fazer convênios com as agências federais do Estado para que consigamos implantar programas de infraestrutura e políticas sociais no país inteiro. Nós ficamos horrorizados. Sabe qual foi a consequência disso? Sabe o que acontece hoje nos municípios? Vamos a qualquer prefeitura e ela está destruída: não existem mais pensadores e formuladores de políticas porque, por mais de uma década, técnicos foram contratados pela prefeitura para que pudessem entrar nos programas da internet do governo federal para conseguir políticas públicas para o município, mas só isso não bastava.
Por esse motivo que surgiu o Eduardo Cunha, porque os deputados federais, durante as gestões lulistas, passaram a ter um papel fundamental na negociação entre prefeito e ministério, e com isso ele ganhava do prefeito, mesmo sendo de partido adversário, um cabo eleitoral. É a partir disso que nasce o reinado dos deputados federais em todos os partidos políticos do país hoje. Quem manda são os deputados federais e não mais os militantes de base, os professores, os funcionários públicos.
Do ponto de vista de uma discussão sobre o Estado Nacional e o desenvolvimento estratégico e estrutural, o governo Lula não avançou em quase nada, pelo contrário, em algumas políticas públicas, como educação, foi um atraso estrondoso no Brasil.
IHU On-Line — Como essa desestruturação do Estado gera impactos na democracia como modelo político?
Rudá Ricci — O que um autor recente chama de “democracia monitória”, de monitoramento, alguns autores chamam de “democracia deliberativa”, mas acredito que essa concepção de “democracia monitória” tem um avanço, que é a ideia de que a sociedade civil continua exercendo sua cidadania e o controle sobre as políticas de Estado depois do período eleitoral. Então, ter câmaras de negociação temáticas cria uma politização da sociedade civil e cria também uma ideia que o Boaventura de Sousa Santos deu muito tempo atrás — foi poética, mas acredito ser interessante e vou explicar por que —, de construir um Estado como um novíssimo movimento social. Essa ideia do Estado como um movimento social é a ideia de a sociedade civil, com suas diferenças e disputas, ingressar no Estado. Isso é o inverso da noção liberal do Estado ou a radicalização de uma visão liberal mais politizada do Estado. Trata-se de ter o Estado sob o domínio da sociedade civil, com ela sendo cada vez mais politizada — poderia dizer até que isso parece muito com a lógica marxista clássica de ir diluindo a estrutura de Estado na medida em que a sociedade vai se auto-organizando. Isso tem a ver com a discussão sobre a política no século XXI, porque as redes sociais conformam essa possibilidade de insinuação sobre as estruturas públicas e de autogestão.
Desde a origem, antes da internet surgir, na época em que se falava de cibernética, era feita uma discussão — que continua até hoje — entre a ideia dessas estruturas da informática serem uma espécie de Big Brother controlando a todos nós e a ideia da autogestão e do autocontrole. O fenômeno da internet e dos computadores pessoais, nos anos 1990, foi dominado por ex-hippies — [Steve] Jobs era de uma comunidade hippie que chegou a falar da antipolítica. Então, essa tensão dentro das redes sociais sempre ocorreu e, talvez, aí esteja um desenho novo que Boaventura chamava de “Estado como novíssimo movimento social”. É uma hiperpolitização da sociedade controlando cada vez mais os Estados, as decisões, a fiscalização, o planejamento e a avaliação dos serviços públicos. A democracia avançaria um pouco mais nesse sentido que, de certa maneira, foi apontado pelo PT nos anos 1980 e 1990, mas do qual o partido recuou na metade dos anos 1990 e passou a ter uma visão mais empresarial da política, mais tecnicista e focalizada, portanto, mais pós-moderna. É isto que tem de relação direta hoje, no século XXI, entre democracia e uma visão de Estado: é um Estado mais poroso, disputado e mais contratualista.
IHU On-Line — Nessa perspectiva que o senhor aponta, o que seria um projeto de Estado para o Brasil? Alguns sociólogos defendem que o Estado deveria se preocupar com a questão social relacionada à educação e à segurança, sem ser ele próprio um promotor do crescimento econômico, enquanto outros argumentam que o Estado deve ter um papel central como motor de desenvolvimento da economia. Que linhas centrais deveriam estar presentes numa visão de Estado para o Brasil?
Rudá Ricci — Na área em que a população decidir. Quem decide isso? Os tecnocratas? Os liberais? Os empresários? Um intelectual como Jessé [de Souza]? É uma contradição teórica: como alguém diz que o Estado tem que ser democrático e tem que fazer isso sem consultar a população? O problema é que o Brasil é formado por elites, e mesmo aqueles autores que criticam a elitização do Brasil se consideram uma elite e não consultam ninguém, eles falam o que o Estado tem que ter.
Estamos tendo um debate hoje na, sociologia brasileira, de vaidades, ou seja, não se criticam exatamente teorias, se criticam pessoas. Eu estou falando do caminho inverso, de um projeto coletivo. Vamos lembrar que lá na origem o conceito de cidadania se divide entre o conceito dos gregos da antiguidade e dos romanos: os romanos priorizavam a concepção de direito civil e os gregos priorizavam a concepção de direito coletivo. Estou nesta fatia dos gregos que vai dar em socialistas etc. Além disso, temos a franja muito interessante de diálogo com autores que se dizem liberais, mas que têm uma concepção coletiva, como é o caso de Amartya Sen, economista e prêmio Nobel de 1990.
O que quero saber é: quem decide qual é a política de Estado? Qual elite? De qual universidade? De qual empresa? Nós perdemos a noção de democracia e de Estado no Brasil. Estado é um contrato, não é uma coisa, é um contrato da sociedade dizendo “é isso que nós queremos”. E o que as pesquisas indicam, que talvez fosse um caminho, é que o problema no Brasil é segurança e saúde, não é corrupção.
IHU On-Line — Uma agenda estatal coletiva iria por esta via, ou seja, investiria inicialmente em saúde e segurança?
Rudá Ricci — Se eu for pensar política pública, talvez, mas a questão é a seguinte: ao saber qual é o problema a ser resolvido, eu quero saber como se faz para resolvê-lo, e nós não discutimos o método. Como é possível perceber, estou defendendo uma concepção de democracia radicalizada e citei autores no campo de esquerda e vou ficar fazendo a crítica no campo de esquerda mais recente.
Vejamos, por exemplo, a política de educação de [Fernando] Haddad: foi o maior atraso da política educacional do final do regime militar até hoje, porque ele transformou aluno em número. A ideia de ter um sistema de avaliação externa que forma um ranking — embora tenham dito que não seria um ranking, todos sabiam que era —, é um artificialismo, porque o principal fator de desempenho escolar no Brasil hoje, segundo várias pesquisas do IBGE, é a mãe. Nesse sentido, as realidades são muito distintas, porque existe aquele estudante que tem uma mãe com baixa qualificação, que trabalha o dia inteiro e está sozinha, e um estudante de uma família que tem uma mãe com alta qualificação e que tem tempo para lidar com ele e dá muito carinho. Então, dadas essas realidades, não pode ter ranking em educação. Isso Paulo Freire e Anísio Teixeira já tinham nos ensinado, e não estou citando os dois à toa, porque o país com a melhor educação pública do mundo, a Finlândia, está apoiada em Paulo Freire e Anísio Teixeira.
O fato é que se faz uma reforma curricular sem discuti-la com a sociedade. É esse Estado que sou contra, porque ele impõe o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - Ideb e todas as escolas começam a trabalhar o currículo embutido nas questões do Ideb sem nunca ter discutido se as questões são corretas. O Estado impõe o Exame Nacional do Ensino Médio - Enem primeiro nas universidades federais e depois vai expandindo para as públicas, que são, normalmente, muito concorridas, e com isso os cursinhos pré-vestibular começam a fazer a preparação para o Enem. O mesmo acontece com o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - Enade: se formos para o interiorzão deste país, veremos que muitas faculdades particulares fazem cursinho para o Enade. Ou seja, isso é reforma curricular? Algum de nós da área da educação foi consultado sobre isso? Nenhum de nós.
No governo Dilma começaram a discutir a Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Segundo a legislação federal, é obrigado a ter consulta. A consulta foi feita e cerca de dois milhões de pessoas enviaram propostas de mudança da primeira versão. O que aconteceu no período final do governo Dilma? O governo começou a negociar com forças políticas do Congresso — os evangélicos — para tentar segurar Dilma no governo, e alteraram a BNCC. Depois disso, vários coordenadores pediram demissão. Em seguida ela caiu e a situação piorou ainda mais com o governo Temer. Ou seja, isso é projeto de Estado? Isso é projeto privatista, é projeto de um intelectual, no caso o Haddad, que decidiu o que é bom para o país em termos de educação. Temos que acabar com isso. Este país tem 200 milhões de habitantes e não é possível que seja formado por alguns iluminados.
O conceito de Estado é um conceito democrático de Estado. Evidentemente que temos de ter alguns projetos de desenvolvimento, não tenho dúvida nenhuma, como a questão da matriz energética e o acesso às novas tecnologias, que são fundamentais e isso é papel do Estado. Além disso, pesquisa e ensino são fundamentais no país, assim como a manutenção e a transparência do Sistema Único de Saúde - SUS. Entretanto, é preciso uma discussão pública para se decidir um projeto de Estado, e não um projeto de governo. O que nós temos no Brasil é projeto de governo, e não projeto de Estado, portanto, não é democrático. Essa é minha crítica maior.
IHU On-Line — Qual sua avaliação de Junho de 2013, cinco anos depois? Alguns avaliam que o espírito de Junho gerou outras mobilizações no país, como a recente greve dos caminhoneiros. Outros avaliam que aquelas manifestações representaram a insatisfação da população com o governo. Junho foi o último grito das ruas não escutado por Dilma e pelo PT?
Rudá Ricci — Em primeiro lugar, está ocorrendo um embate de interpretações sobre Junho de 2013. Vou usar o termo pós-moderno “narrativas” sobre 2013, porque agora na universidade tem que se falar que tudo é “narrativa”: se falarmos “café”, vão perguntar qual é a “narrativa” de café que se quer [risos]. Essa ideia de narrativa é uma visão antropológica da política, não é uma visão nossa, histórica, da sociologia da ciência e da política. Mas esse termo “colou” porque tem gente financiando isso: as fundações norte-americanas financiam essa visão pós-moderna da narrativa. De todo modo, está ocorrendo uma disputa sobre o que foi Junho de 2013, como nós tivemos sobre 1930. Boris Fausto, que veio do Partidão, o Partido Comunista, dizia que tínhamos feito uma revolução em 1930, porque ele estava dentro da visão etapista da Terceira Internacional Comunista. A ideia era mais ou menos a seguinte: nós tínhamos resquícios feudais no país e era preciso fazer uma revolução burguesa para instalar o capitalismo no Brasil. Nós nunca tivemos resquícios feudais no Brasil, mas eles achavam que sim. Com isso, Getúlio Vargas, quando domina a visão agrária-exportadora e impõe a industrialização, teria feito uma revolução. O livro “Revolução de 30”, de Boris Fausto, foi, durante muito tempo, a referência para entender 1930. E essa foi uma visão que veio pela esquerda, não é uma visão de direita.
Nos anos 1980 alguns autores, como Edgar Salvadori de Decca, principalmente de São Paulo e Rio de Janeiro, começaram a questionar essa visão, dizendo que não tivemos revolução nenhuma no país, nem mudanças estruturais. O que tivemos foi um rearranjo, um embate das classes dominantes dentro de uma visão de país em desenvolvimento. 2013 é a mesmíssima coisa. Estou dizendo que é a mesmíssima coisa porque é um debate sobre interpretação do que aconteceu na esquerda – a direita não participa desse debate, nem autores liberais e funcionalistas. É a esquerda que está debatendo, de novo, o que aconteceu.
A primeira narrativa – uma interpretação que vem do campo lulista – acredita que ali houve um artificialismo, financiado e promovido por agências norte-americanas e pelo empresariado brasileiro de direita, para quebrar a hegemonia do PT. Esse tipo de interpretação é, primeiro, paulista e, segundo, muito apressada. Trata-se de uma interpretação para não ter que admitir que o governo Dilma e o lulismo já tinham perdido as ruas. Trata-se de uma forma muito carregada emocionalmente, impactante e que facilita, na medida em que emociona e comove muitos militantes. O que aconteceu, afinal, foi não ter que refletir sobre os erros. Isso foi muito parecido com o que aconteceu em 1930 e depois de 1930, quando os comunistas entram no governo de Getúlio Vargas e no Estado Novo.
A outra possibilidade de interpretação do que aconteceu em 2013 é quase uma resposta geracional. Existem muitas pesquisas, das universidades públicas em especial, entre elas a UFBA, a UFMG e a USP, mostrando que 2013 foi uma manifestação da juventude que tinha no máximo até 35 anos, e uma fatia razoável era universitária. Os jovens que tinham 20 anos naquele momento estavam com 10 anos quando o PT assumiu o poder. Logo, só viram governos petistas. Se a juventude quer um espaço no mundo dos adultos, evidentemente que tudo aquilo que ocorria no mundo dos adultos tinha relação com o governo que era dominante, que dominava a política. Obviamente que tudo aquilo que a juventude não gostava, que era coisa de velho, era coisa do governo do PT, porque afinal era quem estava no poder, isto é, era a elite. Então, em primeiro lugar, precisamos entender que ali havia uma revolta geracional, que era mais do que natural. Eu fui adolescente e ficava irritado com o meu pai, com o Partido Comunista, porque acreditava que era uma coisa de velho; essa é a primeira questão.
A segunda questão é que temos uma sociedade formada por comunidades e coletivos muito fechados, ao contrário do que as teorias iniciais sugeriam, de que estava se criando uma rede mundial. Na verdade, a internet e as redes sociais criaram comunidades muito autocentradas. O que Durkheim chamou de “solidariedade mecânica”, outros autores chamam de “espelhamento”, ou seja, só nos reunimos na internet com pessoas que pensam como nós. Se a pessoa começa a xingar, a excluímos em dois segundos. Não queremos saber de conversar.
De 2003 a 2005, na primeira gestão do governo Lula, estava se desenhando qual seria a política nacional estratégica dele. Houve um debate dentro do governo e do PT muito forte, que presenciei de longe, mas fui acompanhando – no livro que escrevi sobre o lulismo trabalho um pouco mais essa questão –, acerca de um texto escrito por professores economistas liberais do Rio de Janeiro, da PUC-Rio e da FGV do Rio, que se chamava “Agenda perdida”. Esse texto, entre outras coisas, sugeria políticas focalizadas, e não políticas universais para a área social. Lembro muito bem que Maria da Conceição Tavares ficou horrorizada com isso, porque dizia que “política de esquerda é política universal”. Mas eles, como bons liberais e professores de microeconomia, argumentaram que não tínhamos que ter políticas amplas porque não se tinha dinheiro para isso e que o importante era fazer uma política equitativa. Ganhou essa versão e, ao ganhar, eles ingressaram quase todos no Ministério da Fazenda sob a batuta de [Antonio] Palocci. Esse embate continuou até a saída de Frei Betto e de quase todos os colaboradores vinculados à igreja católica e à Teologia da Libertação, como é o caso de Ivo Poletto. Frei Betto e Ivo Poletto fizeram uma crítica duríssima a Palocci e a essa visão liberal que destruía as políticas mais avançadas e estruturais junto às populações tradicionais e ao controle das políticas públicas. Além disso, eles criticaram a criação do Bolsa Família, especialmente porque o controle do programa deixou de ser dos beneficiários nos municípios e passou a ser dos prefeitos. A partir da criação das políticas focalizadas, a estrutura política de gestão do governo Lula de 2005 até 2010 passou a ser fragmentada por áreas de serviço público ou demandas sociais. Esse aspecto dividiu o movimento social.
O que é importante entendermos é que essa fragmentação, de certa maneira, criou o que alguns autores chamam de mesocorporativismo. Isto é, tem-se uma visão específica, particular, corporativa de uma demanda social vinculada a uma estrutura pública de discussão e elaboração daquela política pública de resposta. Isso alterou os movimentos sociais dos anos 1980 em duas situações muito nítidas.
A primeira é que eles não conversavam mais entre si, especializaram-se internamente, tanto que os fóruns nacionais foram acabando. O fórum do orçamento, do qual eu fazia parte, foi se esvaziando, porque o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST fazia parte do fórum, mas como tinha as suas preocupações com o Incra, não colocava mais ninguém a participar do fórum. Assim, a intersetorialidade sumiu das discussões dos movimentos sociais. Isso significa que eles deixaram de discutir o projeto nacional e passaram a discutir políticas específicas, temáticas. Ou seja, os movimentos sociais começaram a ficar com o mesmo desenho da estrutura burocrática pública do Estado brasileiro. Eles foram engolidos pelo Estado, quando queríamos que os movimentos sociais reorganizassem o Estado brasileiro, criassem canais comunicantes entre eles e o interior do Estado. Esse é um problema grave.
A segunda é que os movimentos sociais foram retirados da rua e colocados nas arenas federais superiores. Além disso, as grandes lideranças de referência passaram a ser técnicos. Nesse período ocorreu uma mudança fortíssima no perfil dos líderes dos movimentos sociais: inicialmente as lideranças eram mais carismáticas, tinham o poder da oratória, eram mais irônicas, e passaram para lideranças que falavam mais difícil, faziam um discurso acadêmico, às vezes jurídico; várias delas fizeram faculdade de Direito ou Economia e estavam cada vez mais distantes da base e da linguagem da base. Essa autonomização dos movimentos sociais frente à sua base explodiu em 2013, e é por isso que ninguém entendia.
Houve, inclusive, quem se perguntasse por que, no melhor momento do país, com a renda aumentando, as pessoas estavam saindo para a rua. Mas o fato é que essa é uma questão clássica: os grandes movimentos sociais ocorrem em uma situação de bonança. Quando está desempregada, a pessoa pensa duas vezes antes de se expor. Além disso, o Estado e as políticas de governo tinham se tornado muito autocráticas e avassaladoras sobre a sociedade brasileira. Como disse anteriormente, os prefeitos perderam o papel que tinham e dependiam do deputado federal. Sabe o que significa depender de deputado federal? O deputado federal fala o seguinte: vou trazer para a cidade uma estação de tratamento de esgoto, mas quero saber qual secretaria vou ganhar para fazer campanha para mim como deputado federal. Essa é a conversa rasgada e crua que nunca é divulgada, e essa era a conversa naquele período. Lembremos que de 2012 para 2013 já havia uma discussão na imprensa brasileira sobre o aumento da inflação e os primeiros cortes que o governo Dilma iria fazer. Em maio, um mês antes de Junho de 2013, surgiu um boato de que não se pagaria o Bolsa Família, e 920 mil beneficiários sacaram, em dois dias, todo o dinheiro da Caixa Econômica. Se justamente a base mais fiel ao lulismo achava que isso poderia ocorrer, é porque a situação já estava mal. Portanto, 2013 foi uma explosão muito emocional do hiperindividualismo que nasce nas redes sociais, principalmente envolvendo a juventude.
Escrevi um livro chamado “Nas Ruas - A Outra Política que Emergiu em Junho de 2013” [Ruddá Ricci e Patrick Arley. Letramento: 2014], no qual retrato que muitos participantes de Junho de 2013 chegavam na rua escrevendo o seu cartaz. Eles compravam uma cartolina na papelaria e escreviam sua demanda na hora. Entrevistei algumas pessoas e elas diziam: “Só vim aqui porque um amigo meu veio e está participando, porque se fosse partido, sindicato ou igreja, eu não viria. Mas como sei que meu amigo não vai me usar, é uma boa”. Então, essa era uma mobilização estilhaçada, que alguns autores chamam de “enxaminhamento”, ou seja, um enxame de abelhas que não se sabe de onde veio, que depois vai embora e não se sabe se vai voltar.
Surge uma nova configuração social a partir de 2013, que é esse hiperindividualismo e essa autonomia da decisão profunda, que alguns autores chamam de antipolítica, que é uma política diferente. No entanto, nós, com a cabeça no século XX, não conseguimos entender isso: queríamos saber qual era a agenda dos manifestantes, mas havia uma multiplicidade de agendas. Nós estamos com a cabeça e com conceitos teóricos de análise do século XIX e XX e não estamos conseguindo entender o que é essa nova forma hiperindividualizada de adesão que se faz via mobilização, que é uma adesão provisória, e não uma adesão como antes, de filiação a um conceito ou organização; 2013 foi isso. Aquilo não era movimento social, porque movimento social é mais perene, mas aquilo era mobilização social.
Para deixar mais claro, vou lembrar algumas diferenças que ocorreram nessas manifestações em diferentes estados. Primeiro, Porto Alegre e Rio de Janeiro têm as duas maiores federações anarquistas do Brasil ligadas à Federación Anarquista Uruguaya - fAu, hiperpolitizada, que vem do movimento operário no Uruguai. Até hoje existem lideranças do movimento operário anarquista no Uruguai muito fortes, e alguns deles, por incrível pareça, têm uma proximidade com uma visão religiosa — é a partir daí que vem José Mujica, que não é anarquista.
Em Porto Alegre e no Rio de Janeiro houve uma participação dos anarquistas muito importante nessas manifestações. No Rio de Janeiro eles foram essenciais e tinham, inclusive, técnicas de ocupação de rua. Em algumas manifestações, por exemplo, colocavam fogo em ônibus para atrair a Polícia Militar - PM e liberar o espaço do centro. Eles iam fazendo um rastilho e a PM despreparada ia acompanhando para ver onde estavam. Na verdade, isso era parte de uma tática para tirar a PM do centro onde estava tendo a manifestação; isso foi tudo elaborado e pensado.
No Rio de Janeiro e em Belo Horizonte os anarquistas e os autonomistas tiveram muito êxito. Os autonomistas, grande parte deles universitários, vinham da elaboração de [Antonio] Negri. Os autonomistas têm essa concepção de que não se ocupa um espaço público para então provocar uma negociação; é a ideia do Comum: se ocupa o espaço público para implantar a utopia naquele momento. A lógica é totalmente diferente.
De outro lado, em São Paulo e em Brasília ocorreram manifestações de direita. No restante dos estados as manifestações foram majoritariamente de esquerda. Em Belo Horizonte a manifestação foi totalmente de esquerda, tanto que as forças de esquerda se reuniam num Sindicato chamado Sind-Rede, e a primeira palavra de ordem da primeira grande manifestação foi “somos todos de esquerda”. No entanto, as pessoas não eram petistas ou ligadas a partidos, eram anarquistas e autonomistas. As forças partidárias de esquerda e organizadas em centrais sindicais, que não tinham essas organizações majoritárias, como, por exemplo, em São Paulo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo - Apeoesp, deram uma recuada. Eu mesmo não tinha ideia de que os anarquistas estavam tão organizados no Brasil, mas eles estavam.
Acredito que houve um estranhamento da esquerda. Se a direita foi tão mobilizada, por que no segundo semestre ela não apareceu? Por que quem apareceu foi o PT? Porque em outubro de 2013 o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, convocou uma reunião com duas secretarias de Justiça do Rio e de São Paulo e disse que iriam atacar os radicais. Depois ajudou a promover o treinamento da Polícia Federal e de várias PMs nos Estados Unidos, no campo de treinamento do Blackwater, que é um grupo de mercenários acusado do assassinato de famílias e civis. Por que, no final do ano, em dezembro, o governo Dilma publicou o manual da garantia da lei e da ordem? O que aconteceu foi uma caça avassaladora do governo federal e de alguns governos estaduais contra os líderes de 2013, e isso desmobilizou as manifestações. As pessoas esquecem, mas casas foram invadidas. Além do mais, no início daquele ano ocorreram os rolezinhos que foram tratados também como arrastão e terroristas. Garotos de 15 anos receberam multas de 100 mil reais, tiveram suas casas invadidas e celulares apreendidos. Sobraram só os Comitês da Copa em várias capitais, nos quais jovens estavam discutindo a Copa das Confederações, os desvios de recursos públicos, que hoje sabemos que ocorreram mesmo. Mas à época eles foram tratados como inimigos da pátria.
Não vi a direita no segundo semestre de 2013 e no primeiro semestre de 2014; vi um governo desesperado contra os manifestantes de 2013, atacando e desmobilizando. Quando a direita entra? No segundo semestre, no final da eleição. Vamos lembrar que o Movimento Brasil Livre - MBL é fundado em 2014. É naquele momento que ela percebe que o governo não tinha a rua a seu favor, porque até então quando se falava do impeachment de Lula, em 2005, o Lula dizia que sairia na rua junto com as manifestações. Aí o DEM e o PPS recuaram com medo das manifestações da CUT e do MST.
Em 2013 a direita teve o condão de dizer que o PT não estava na rua, e quem estava na rua era ela. Foi aí que começaram a surgir investimentos internacionais para financiar o MBL e outros movimentos, como é o caso do Atlas Network. Um artigo recém publicado pela PUC de Minas Gerais mostra a genealogia de todos esses investimentos para as organizações estudantis a partir de 2014. O que quero dizer é que em 2015 e 2016 aconteceram mobilizações de direita com a forma de 2013, mas era outra coisa, outro público, partidarizado. Matérias da Folha mostram que essas manifestações receberam investimento do PPS, do DEM, do PSDB e do PMDB.
O que é mais importante é que tanto as manifestações de 2013, quanto as de 2015 e 2016, culminaram no PMDB. Isso é o mais surpreendente. As manifestações não conseguiram ingressar no campo institucional, porque foram bloqueadas pelas grandes bancadas já estruturadas. Quem conseguiu foi quem tinha o controle das instituições, que é o MDB.
IHU On-Line – Nesta semana foram condenados mais de 20 jovens ligados a manifestações de Junho de 2013 pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Qual é o peso simbólico disso?
Rudá Ricci — A geração de Junho de 2013 foi destroçada politicamente. Vou exagerar um pouco, mas diria que se trata de algo muito parecido com a Guerra Civil Espanhola, em Barcelona: as forças de esquerda institucionalizadas vieram contra os anarquistas e não tiveram dó. No Brasil se fez um uso político para transformar os manifestantes de junho em terroristas.
O que estamos vendo agora compõe um cenário pior, porque não é só a condenação de 20 jovens de Junho de 2013, mas a condenação de qualquer tipo de espírito que vem dos anos 80, de mobilizações da sociedade civil para enquadrar políticas de Estado. Isso está no campo da prisão de Lula, da ameaça de qualquer candidato do PT que substitua o Lula. Citam o nome de Haddad e já começam a sair manchetes de recursos não declarados na campanha dele. Citam Jacques Wagner, e a Lava Jato vai para cima dele. Ou seja, há uma declarada decisão do poder Judiciário para cercar qualquer tipo de expressão pública da sociedade civil que tente de alguma maneira criar um equilíbrio de forças para abrir negociação com o Estado.
Aquele espírito dos anos 80, que vai até a Constituinte, está sendo profundamente atacado nos últimos dois anos e se inscreve num âmbito mais geral de ataque à sociedade civil. A judicialização está se impondo não apenas como demanda dos de baixo, mas como um modus operandi da sociedade civil poder acessar suas demandas. É um reenquadramento da sociedade civil dentro de uma lógica mais liberal, mais jurídica, mais burocratizada: não tem que ter rua e multidão; as pessoas coletam assinaturas, fazem um abaixo assinado e o poder Judiciário decide. Essa é a última fase da judicialização que estamos vivendo agora.
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A pauta do Brasil é rediscutir o Estado brasileiro. Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU