28 Junho 2018
Um novo site desafia a visão convencional sobre as grandes jornadas e revela a diversidade de seus desejos e perspectivas. Também provoca questão crucial: como regredimos tanto? Acesse Grafias de Junho.
O artigo é de Roberto Andrés, editor da revista Piseagrama, publicado por Outras Palavras, 26-06-2018.
Ainda hoje, muitos tratam as manifestações de junho de 2013 como um enigma a ser decifrado. A década anterior havia sido de crescimento econômico, a inflação ainda estava razoavelmente controlada, o salário mínimo havia crescido acima da média de preços, o Brasil do futebol realizava o sonho de abrigar outra Copa do Mundo. O que teria gerado, então, o maior ciclo de manifestações da história recente do país?
Boas explicações nunca faltaram. Ainda no calor das ruas, o livro Cidades Rebeldes trouxe uma série de artigos que demonstravam como a questão urbana havia sido abandonada na década anterior e como as opções feitas no período de crescimento geraram grandes problemas de mobilidade, moradia, espaços públicos, etc. Também naquele momento Marcos Nobre publicou Choque de Democracia, em que argumentava que o pacto político vigente desde a democratização, capitaneado por aquilo que o autor chama de pemedebismo, havia se tornado inviável, o que eclodira naquelas jornadas.
Incontáveis artigos de pessoas próximas ao campo autonomista do Movimento Passe Livre se dedicaram a demonstrar que aquelas manifestações não haviam sido “raio em céu azul”, vista a série intensa de mobilização em cidades brasileiras contra o aumento das tarifas de ônibus nos anos anteriores. Urbanistas passaram a demonstrar, com mais e mais dados, como o boom habitacional do período tinha resultado em aumento nos preços de imóveis e aluguéis e, assim, contribuído para aumentar o déficit de moradias.
Os ingressos dos estádios de futebol multiplicaram por cinco em uma década, a tarifa de ônibus e os alugueis cresceram muito acima da inflação, ficava evidente que as obras para a Copa não iam melhorar as cidades, a promessa de uma nova classe média já encurtava de horizonte, mas ainda assim uma certa abordagem insistiu em deslegitimar aqueles protestos, chegando a acusar ter havido “manipulação internacional”, seja lá o que isso for. Parecia difícil entender o paradoxo sintetizado por Paulo Arantes ao dizer que “a vida no Brasil melhorou muito nessas últimas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais.”
Foi para buscar contribuir com o debate e a memória acerca de 2013 que comecei a catalogar a produção gráfica de mensagens políticas daquelas jornadas. Afinal, os períodos insurgentes permitem aflorar em suas rachaduras demandas urgentes, questões recalcadas, utopias, contradições e provocações que dizem muito sobre o país e o mundo em que estão inseridos.
Nas manifestações de junho, houve quem exibisse um cartaz em que se lia É tanta coisa que não cabe no cartaz. De repente, todos tinham algum pitaco a dar sobre a esfera coletiva. Um país marcado pelo déficit democrático foi tomado por uma febre opinionística que se assemelharia a uma grande assembleia – destituinte. Reacendia-se a tocha da autenticidade gráfica engajada, através de centenas de milhares de cartazes precários – expressões individuais de anseios coletivos. Cartazes que certamente não serviram de escudos contra os tiros da polícia e desapareceram em meio ao gás lacrimogênio; mas que foram capturados pelas câmeras de centenas de fotógrafos, profissionais ou amadores.
Havia um Brasil em ebulição que buscava se expressar em mensagens provocativas (Enfia os vinte centavos no SUS), internacionalistas (Acabou a inércia, o Brasil vai virar Grécia), intrigantes (Chega de administrações pitorescas), libertárias (Acupuntura Livre), realistas (Quem precisa de cura é a BHTRANS), inspiradas (Que somente os beijos lhe tapem as bocas), reivindicatórias (Dilma, abaixa o preço do Mizuno), desbocadas (Pau no cú da Bancada Evangélica), estatísticas (+100 moradores de ruas mortos em dois anos), premonitórias (Cuidado! Hoje, conservadorismo. Amanhã, fascismo). O site Grafias de Junho, a ser lançado em 26 de junho debates em Belo Horizonte e São Paulo, se propõe a ser um acervo das fotografias das mensagens das ruas. Inicia-se com cerca de 1.300 fotografias que contém mais de 2.000 cartazes, todos eles com seus textos transcritos, além de informações sobre cidade, data e temática (mobilidade, copa, corrupção, saúde, educação, etc.). Assim, pesquisadores de diversas áreas podem utilizar essas informações para investigar o período, comparar a presença dos temas em diferentes cidades, a evolução das pautas ao longo dos protestos, etc.
A fim de ampliar o catálogo para cerca de 10.000 fotografias, desenvolver novas funcionalidades como filtros avançados e infográficos, e realizar uma exposição das grafias de junho em 2019, lançamos uma chamada para financiamento coletivo do projeto. Um chamado para compartilharmos a preservação dessa memória.
Dentre os milhares de cartazes de 2013 transcritos até o momento, uma das frases mais presentes, com pequenas variações, é Desculpe o transtorno, estamos reformando o país. O trocadilho caiu como uma luva para quem talvez estivesse pouco habituado a causar confusão nas ruas. De todo jeito, havia aí uma ideia de engajamento transformador, um otimismo baseado na ação coletiva, que contrasta muito com o Brasil atual. Contrasta, mais ainda, com as centenas de cartazes que surgiram na recente greve dos caminhoneiros, pedindo intervenção militar.
A passagem entre os ambientes que geraram as duas mensagens faz pensar. Há cinco anos, afirmava-se uma coletividade responsável em cartazes no meio da rua e hoje flerta-se com a solução autoritária. O problema que está por trás, a profunda crise do sistema político brasileiro, é o mesmo, mas em 2013 praticamente não havia pedidos de intervenção militar, ditaduras, tampouco discursos de ódio. Como saímos de um ponto e chegamos até o outro?
Com o fim da Copa das Confederações, as ruas deixaram de queimar, mas restaram muitas brasas. Sua substância era uma cidadania ativada, que havia transbordado a esquerda militante. Novos grupos se formaram, movimentos nasceram, pessoas começaram a se conectar. Foi preciso uma ação coordenada do andar de cima, um pacto entre partidos políticos de diversas matizes ideológicas com representantes do PIB, à base de muita repressão policial e terrorismo midiático, para restabelecer a ordem.
Quem se manteve nas ruas entre as jornadas de Junho e a Copa de 2014 conviveu rotineiramente com a ostensiva violência policial às manifestações seguida de criminalização pela imprensa, em uma sequencia acachapante. Foi preciso bater no lombo e na moral, criar personagens terríveis (lembram da Sininho na capa da Veja?), ressuscitar perigosos autores anarquistas, colocar algumas centenas de manifestantes na cadeia e divulgar aos quatro ventos para espalhar medo e minar subjetividades potencialmente insurgentes.
A operação abafa deu certo para que a Copa do Mundo ocorresse, mas gerou ao menos duas conseqüências marcantes: o recalque e adiamento da lida com os problemas crônicos do país que afloraram nas ruas de 2013 e que continuarão nos acompanhando por anos; e o esvaziamento das ruas pelas lutas sociais e pela cidadania progressista, deixando-as livres para que novos movimentos surgissem no vácuo. Movimentos que souberam capturar os signos de junho, seja na paródia com o MPL criada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), seja na utilização da hashtag mais popular nos cartazes das manifestações: #VemPraRua.
O restante da história conhecemos bem, de enorme contraste com o rio de otimismo que se lê nas imagens de junho. Tantos e tantos cartazes daquela época afirmaram que O Brasil vai ensinar o mundo, que Estamos vencendo, que Dias de Luta são Dias de glória, que Agora que o povo acordou o governo não vai mais dormir. Mas a sequencia de fatos foi outra: a revolução não ocorreu, a insurgência popular foi reprimida, as eleições de 2014 dividiram ao meio as pautas das ruas, um estelionato eleitoral foi seguido de um golpe baixo parlamentar, a restauração conservadora jogou para um passado distante o futuro vislumbrado naquelas jornadas.
Sim, em 2013 o aumento das tarifas foi revogado em mais de 100 cidades, mas a partir do ano seguinte tudo voltou a ser como antes e hoje tem ar vintage o cartaz que dizia R$2,80 É OPEN BAR. Quem pode foge para o carro particular, motocicleta ou Uber – de todo jeito, ficamos todos congestionados. Quem não pode se sacode no ônibus lotado e segue refém de meia dúzia de empresários, agora mirados pela Operação Lava Jato e protegidos por amigos no STF. Não tivemos melhorias nos serviços públicos e uma mal enjambrada PEC do Teto de Gastos ameaça a sustentação do patamar frágil ao qual havíamos chegado. Quem tem notícias dos trabalhadores que tinham suas barracas nos estádios ou dos moradores de comunidades que foram removidos para dar lugar a obras extravagantes?
Na batalha institucional, o 7 a 1 tem sido a norma. Mas de outro lado tivemos um salto na articulação das lutas sociais, na constituição de uma esfera pública e na ativação de uma cidadania que não aceita mais o modus operandi anterior. As ocupações secundaristas e a emergência da luta feminista são dois exemplos paradigmáticos de uma emergência social mais ampla. A força, pontual mas contundente, de candidaturas de mulheres negras, ativistas e movimentações cidadãs nas eleições de 2016 prenuncia uma primavera feminista, popular e periférica que pode já começar a dar as caras em 2018, com movimentações como a Ocupa Política.
Talvez chegue o momento em que perceberemos que, para consertar o país, o transtorno terá de durar mais do que alguns dias de fúria, que demandará trabalho de longo prazo, envolvimento cotidiano, paciência e muito senso de coletividade. Para quando esse dia chegar, o acervo de imagens daquele mês em que as vísceras do nosso arremedo de nação foram expostas no meio da rua poderá servir de mapa da extensa lista de insuficiências, contradições, desejos, utopias e recalques que constituem nossa cidadania, nosso país por se fazer.
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Para enxergar Junho de 2013 — agora em cartazes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU