23 Mai 2020
Os arquivos do pontificado nos tempos da Segunda Guerra Mundial foram abertos apenas cinco dias antes de o coronavírus ter forçado o fechamento temporário do Vaticano.
A reportagem é de Nicolas Senèze, publicada em La Croix International, 22-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Arquivo Apostólico Vaticano finalmente abriu seus arquivos sobre o pontificado do Papa Pio XII (1939-1958) no dia 2 de março, mas apenas cinco dias depois foi forçado a fechar por causa da crise da Covid-19.
“A pandemia global deu mais tempo para pesquisas diárias mais meticulosas”, diz a historiadora Nina Valbousquet, em um fascinante artigo na revista online Entre-Temps.
Pesquisadora da École Française de Rome, ela é especialista em relações entre o judaísmo e a Igreja. Durante o confinamento, ela teve tempo para saber um pouco mais sobre como o Vaticano funcionou durante a Segunda Guerra Mundial.
Valbousquet descobriu que, na época, o Vaticano era tudo menos um bloco monolítico dominado pelo papa.
“A Igreja já era complexa e internacional”, diz Andrea Riccardi.
O historiador italiano e fundador da Comunidade de Santo Egídio avaliou suas próprias pesquisas iniciais sobre os arquivos da era Pio XII em um artigo na edição do dia 13 de maio no jornal Corriere della Sera, de Milão.
Valbousquet diz que se vê um bom exemplo da diversidade da Igreja, por exemplo, nos arquivos da nunciatura vaticana em Paris, que foram transferidos para Vichy.
É possível ver que o núncio da época, o arcebispo Valerio Valeri, percebeu a “brutalidade” do ajuntamento de judeus de Vel d’Hiv em Paris, em 1942, ao mesmo tempo em que lamentava o protesto muito “platônico” dos bispos franceses.
E há um relatório sobre a opinião pública na zona franca, em que o jesuíta Roger Braun disse que era “espantoso e quase um escândalo ver a hierarquia – e até mesmo Roma – permanecendo em silêncio”.
Por outro lado, há uma carta que um padre de Marselha enviou para Pierre Laval (chefe do governo de Vichy), com cópia para o núncio, em que ele expressava a sua indignação em termos antissemitas violentos pelo fato de o seu bispo ter sido criticado publicamente.
A diversidade dessa informação que vem de toda a Europa explica, sem dúvida, o que o historiador italiano Giovanni Miccoli havia chamado, ainda no ano 2000, de “dilemas” de Pio XII, assim como os seus “silêncios”.
Riccardi insiste que uma pluralidade de informações é crucial para entender o que realmente aconteceu. Ele ressalta que, desde o início da guerra, Pio XII estava preocupado com o fato de como o seu silêncio sobre a Polônia seria percebido.
“Durante a Segunda Guerra Mundial, a Igreja foi conquistada pelas divisões causadas pela propaganda de guerra na Polônia. Os nazistas apresentavam um papa alinhado com a Alemanha, gerando uma impressão de abandono pelos católicos poloneses”, diz Riccardi, enfatizando que o Vaticano não estava em uma posição forte na época.
“O poder da Igreja, portanto, era um mito. A Santa Sé nos anos 1940 era um punhado de homens cercados por nazistas”, afirma. “Você pode realmente se perguntar quanto espaço de manobra a Santa Sé tinha”, afirma Valbousquet, concordando. No entanto, ela diz que o Vaticano conseguiu compensar a sua fraqueza se tornando um “centro de informação”.
Os arquivos da delegação apostólica em Jerusalém mostram como a representação vaticana se tornou uma caixa de correio entre os judeus da Palestina e aqueles que permaneceram sob o comando do Reich.
“Eu fiquei impressionada com esse papel de intermediário que começou muito cedo, entre 1940 e 1941”, disse ela ao La Croix.
A historiadora também analisou a série de arquivos sobre “ajuda e assistência a refugiados em razão de raça ou religião”, iniciada sob Pio XI e que “cresceu consideravelmente sob o pontificado de Pio XII”.
Esse é um sinal de ação humanitária real, mesmo que o Vaticano não parecia querer abandonar a sua neutralidade.
Os arquivos sublinham como o Vaticano estava bem informado sobre a situação na Europa, embora nem todas as informações tenham sido necessariamente enviadas a Roma.
Por exemplo, o artigo de Riccardi no Corriere della Sera foi publicado ao lado de fotos encontradas na nunciatura apostólica na Suíça. Elas mostram judeus nus pouco antes de serem executados, com um olhar aterrorizado. Elas também mostram soldados alemães enterrando cadáveres.
“As notícias fluíam ao Vaticano, embora nem sempre fossem facilmente verificáveis. Não se pode afirmar que o papa não sabia dos massacres dos judeus, como os seus apologetas fazem às vezes”, diz Riccardi.
“No início da guerra, a Santa Sé considerou que cada lado tinha as suas falhas – tanto os nazistas quanto os comunistas”, diz Valbousquet.
“Pio XII dizia que não podia condenar os nazistas sem mencionar os bolcheviques”, acrescenta Riccardi.
“Mas ele também estava ciente de que, uma vez terminada a guerra, Hitler poria fim à Igreja. Assim, o papa, por exemplo, forçou os católicos estadunidenses a apoiarem a ajuda de Roosevelt aos soviéticos”, diz o historiador italiano.
“Olhando para os arquivos, podemos ver uma evolução: sentimos que, à medida que as informações chegavam, houve uma conscientização crescente, embora lenta”, insiste Valbousquet.
Ela espera retomar sua pesquisa no dia 1º de junho. Essa é a data em que o Arquivo Apostólico Vaticano reabrirá as suas portas – mas apenas para 15 pesquisadores.
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Historiadores relatam suas primeiras impressões sobre os arquivos de Pio XII - Instituto Humanitas Unisinos - IHU