02 Dezembro 2019
Apesar das vozes começarem a subir contra o hiperconsumo da Black Friday e contra as consequências ecológicas da entrega a domicílio, o rolo compressor das ofertas promocionais continua a avançar, constata Philippe Moati, professor da Universidade Paris 7 e cofundador do Observatório Sociedade e Consumo (ObSoCo). O também criador do observatório da relação dos franceses com o preço, analisa os desvios de preços que não incluem mais os consumidores. Para ele, apenas uma resposta que agrupa vários atores e que ultrapassa as fronteiras pode conter a maré.
A entrevista é de Sandrine Foulon, publicada por Alternatives Économiques, 28-11-2019. A tradução é de André Langer.
Importada dos Estados Unidos, a Black Friday é um bom negócio para os consumidores?
É difícil obter números precisos sobre os negócios da Black Friday, que também se estendem por vários dias. Um pouco como os “3 J” das Galeries Lafayette, que, na verdade, duram 15 dias... Mas desde que foi introduzida na França pela Amazon em 2013, a Black Friday polariza muitas compras. De acordo com a nossa pesquisa realizada neste outono, 57% dos entrevistados estão se preparando para participar do evento. Alguns afirmam não comprar antes da Black Friday. 77% desses 57% de franceses declaram que aproveitam essas promoções para fazer parte ou todas as suas compras de Natal.
No entanto, mais de um em cada três consumidores entrevistados considera que a Black Friday é uma operação que leva ao superconsumo e 57% acreditam que é uma operação que leva à compra de produtos que não correspondem às suas necessidades. Atraídos por esses preços baixos, alguns compradores são mais motivados pela “utilidade da transação”, isto é, pelo sentimento de fazer um bom negócio, do que pela utilidade intrínseca dos produtos. Eles especulam e cedem a um impulso. Entre os consumidores cujo portfólio não é extensível e que aguardam este evento para comprar mais barato e aqueles que consomem em excesso, é impossível dizer se o volume de consumo aumenta. O que se sabe, no entanto, é que a parcela das compras a preços baixos está aumentando.
Os estabelecimentos que iniciaram esse movimento de descontos permanentes estão participando? É um modelo de negócio viável?
De qualquer forma, a maioria deles não tem escolha a não ser participar. E isso é verdade em geral na participação das promoções. Mesmo os estabelecimentos que nunca fizeram descontos acabaram por ceder. Durante vinte anos, a Darty construiu sua publicidade com base no conceito do “everyday low price” [“preço baixo diário”]. Não havia necessidade de fazer promoções, uma vez que a marca já se afirmava como a mais barata do mercado. Atualmente, os distribuidores pensam que, se não participarem da festa, é uma parcela de negócios que vai para os concorrentes. É uma máquina infernal e esse pacote promocional é irreversível. O Instituto Francês da Moda estima que, a partir de agora, mais de um produto em dois é vendido com descontos ou promoções neste setor.
Os consumidores, por outro lado, estão totalmente desorientados com as práticas de preços. Eles não entendem mais nada. Durante muito tempo, muitos deles estimavam que o preço refletia o valor de um produto, mais ou menos com base na quantidade de material e trabalho necessários para sua fabricação. Entende-se que o preço possa flutuar em torno do valor, dependendo, por exemplo, da relação entre oferta e procura ou da intensidade da concorrência, mas não de maneira exagerada.
Entramos na era das promoções, com descontos de 70% ou até 80% e uma crescente sofisticação das políticas de preços que, entre yield management [gestão da oferta] (1), tarifação dinâmica (2) e discriminação de preços (3), cria uma alta variabilidade dos preços ao longo do tempo, no espaço e de acordo com o perfil do consumidor. Voltamos aos pequenos comércios de antes das grandes lojas de departamento descritos por [Émile] Zola em que nenhum preço era exibido e o vendedor fixava seu preço “goela abaixo do cliente”, com base em sua avaliação da capacidade do cliente de comprar. Essa variabilidade prejudica a concepção que a maioria das pessoas tem dos preços. Eles perdem suas referências, desconfiam dos vendedores e se sentem enganados quando compram um produto sem desconto.
No entanto, vemos lojas como a Nature & Découvertes dizendo que recusam o princípio da Black Friday.
São lojas que já construíram sua imagem sobre um consumo responsável e ecológico. Mas, mesmo para elas, é difícil resistir à máquina infernal das ofertas promocionais. A Camif recusa a Black Friday e fecha simbolicamente seu sítio naquele dia. Mas se você navegar no sítio ao longo do ano, também verá que há promoções de 70%.
Associações, ONGs ou movimentos como o Extinction Rebellion estão pedindo o boicote à Black Friday e a gigantes como a Amazon. É uma maneira eficaz de combater o consumo excessivo e proteger o planeta?
Uma fração da população está começando a se distinguir e a rejeitar o consumo excessivo ligado à Black Friday e, mais geralmente, à cultura do hiperconsumo como um todo. Também vemos este movimento no tratamento da mídia que não fala mais dessa grande festa do consumo, mas que alerta para os perigos ligados ao meio ambiente. No entanto, os anti-Black Friday são apenas 7% no painel de pessoas que nós entrevistamos. A grande maioria tem a intenção de participar, mesmo que apenas por questões de poder de compra. Dificilmente podemos culpar as pessoas que querem tornar os presentes de Natal mais baratos.
Não acredito na eficácia do boicote. Faz muito tempo que sabemos que a Amazon não paga sua justa parte dos impostos, que não cria empregos de qualidade, ou mesmo os destrói, que o hiperconsumo que provoca é nocivo ao planeta... Quando você vende um livro a 3 euros com frete grátis, são práticas predatórias. Mas as pessoas continuam a recorrer aos serviços dessa plataforma de comércio eletrônico porque são muito competitivos. Na França, a Amazon não cessa de ganhar participação no mercado. A plataforma é a número um com 20% de participação no mercado, muito à frente da Cdiscount, número 2, com 8%. Nos Estados Unidos, é pior ainda: a Amazon ganhou 50% de participação no mercado. O eBay, o número 2, tem apenas 7%.
Como alguém pode responder a um gigante desses?
Não é tarde demais? A questão que se coloca com essas plataformas digitais, cujo modelo econômico ativa rendimentos crescentes na origem das dinâmicas cumulativas. Quanto mais esses gigantes crescem, mais eles melhoram sua competitividade e mais levam tudo em virtude do princípio do ‘the winner takes all’. Hoje, nenhum distribuidor convencional é capaz de se recuperar.
Existe um risco real de que os Gafa, especialmente a Amazon, Alibaba e o Google, tenham acesso aos mercados consumidores não apenas on-line. É urgente organizar uma resposta através de uma política industrial a nível nacional e europeu. Isso significa que indústrias, distribuidores, banqueiros, especialistas digitais concordam em agir conjuntamente. Diante da velocidade do movimento das plataformas comerciais, estou surpreso com a falta de reação dos poderes públicos.
No nível nacional, o legislador pode delimitar a prática das promoções?
É complicado. A lei da modernização da economia de 2008 reformou o regime das promoções. Elas são possíveis durante o ano todo e livremente, desde que não sejam chamadas de “liquidações” e não vendam abaixo do limite de revenda com prejuízo.
Isso não impede tentativas de regulação. No tocante aos alimentos, a Lei Egalim, por exemplo, limitou o nível das reduções promocionais em 34%. Concretamente, os distribuidores não podem mais fazer o segundo pacote de biscoitos a 50%, por exemplo. Mas muito rapidamente, a lei foi ignorada. Você tem uma garrafa de champanhe de qualidade e outra de qualidade inferior em oferta.
Reinventam-se os prêmios, oferecem-se bônus de compra e, sobretudo, a escalada promocional se volta para produtos não cobertos pela lei, como os produtos de higiene-beleza, de bazar... A criatividade nas ofertas promocionais é ilimitada. A partir da pressão da Comissão Europeia, as coisas poderiam avançar pelo lado do preço de referência, o famoso preço barrado, que hoje pode ser fantasioso. Se você quer um gendarme ou um árbitro dessas práticas, deve pensar mais uma vez em alianças que vão além do nível nacional.
Delphine Batho apresentou uma emenda à lei da economia circular que deverá ser discutida a partir de 9 de dezembro para proibir as campanhas promocionais da Black Friday. O prefeito de Paris, por sua vez, quer criar um imposto ecológico sobre as entregas a domicílio do tipo Amazon e limitar os horários de entrega em determinados bairros. Essas soluções serão suficientes para conter a maré?
Diante da lógica infernal das promoções, é bom que o poder público tente desempenhar o papel de árbitro. Agora, não tenho certeza de que proibir a Black Friday, se for legalmente viável, não levará os atores a inventar outra “máquina”. O problema das entregas é de outra natureza. Uma solução sustentável para esse problema exige repensar completamente a logística urbana.
1. Yield management: política de preços, generalizada no setor das companhias aéreas ou da hotelaria, que consiste em otimizar os lugares disponíveis e aumentar os rendimentos.
2. Tarifação dinâmica: política de preços que consiste em fazer variar os preços de acordo com a demanda.
3. Discriminação de preços: estratégia que consiste em modular os preços de acordo com as características supostamente conhecidas do comprador.
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Black Friday: “As promoções são irreversíveis”. Entrevista com Philippe Moati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU