09 Agosto 2019
"A política precisa de uma fé. Não uma determinada fé religiosa - que pertence à espiritualidade pessoal e não à "polis", a casa de todos - mas uma fé na humanidade e nas suas possibilidades de convivência justa. Aquele que não acredita nessa possibilidade dos seres humanos ficará entre eles, na melhor das hipóteses, como domador da fera humana, e sempre teremos a infelicidade política que já conhecemos."
Reproduzimos aqui o editorial do jornal Il Foglio, n. 463, mensal de alguns cristãos de Turim, junho/julho-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Foligno, em um comício de Salvini para o segundo turno, alguns garotos traziam em suas camisetas brancas os dizeres: “Se você se afogar, também te salvaremos”. Ou seja: nós não excluímos você que exclui. É a revolução moral, humana: aquela de que precisamos. Em Cremona, na noite de 3 de junho, ainda melhor. Um garoto mostra um lenço sob o palco de Salvini: "Ame seu vizinho". Militantes da Lega Nord bateram nele, com empurrões e bofetadas. Ao episódio teriam assistido alguns homens da Digos (polícia) locais, que identificaram o jovem, mas não os agressores: na confusão geral identificaram ele, mas não aqueles que o espancaram. O agredido foi visitado pelo pessoal de uma ambulância do 118 presente nos jardins da Piazza Roma, e confirmou a existência de alguns hematomas. A delegacia de Cremona abriu uma investigação, ele tem 90 dias para denunciar as lesões sofridas. Salvini do palco zomba dele: “Deixe-o em paz, pobrezinho, se não houver um comunista, não nos divertimos. Sinto simpatia por aqueles que em pleno 2019 ainda circulam com a bandeira vermelha e a foice e o martelo.
Em Milão, existe o Museu de Ciência e Tecnologia, onde se estudam os dinossauros.” De fato, para Salvini, amar o próximo é um grave ato arcaico-comunista. Ele sabe o que é o rosário, mas não o evangelho. Para o sistema seletivo, amar qualquer um que você encontra no caminho da vida, é uma culpa, é um crime a combater! Um jovem como esse com o lenço evangélico, não beija os crucifixos de lata, mas ama os crucificados pelo sistema.
Perguntamo-nos: que cristianismo é usado na política pela direita nacional-soberanista-anti-internacionalista-antisolidária, até os limites racistas e persecutórios, ferozes e desumanos? Aqui está o ponto, que toca o valor próprio da política tanto quanto a autenticidade do cristianismo. Está em andamento desde o Concílio, hoje encarnado no Papa Francisco (mais do que nos papas anteriores), uma revisão de magnitude milenar: o cristianismo histórico é confrontado com o evangelho de Cristo.
Esse confronto toca e abala muitas coisas do cristianismo instituído. Não admira que haja uma violenta oposição, inclusive política e complotista contra Francisco, contra a revisão evangélica do cristianismo (veja-se os cardeais "tridentinos" que condenam Francisco por heresia). Não admira que a competição política seja fortalecida pelas tradições devocionais mais estouvadas, e se revista de sagrado, abusando de Jesus e de sua mãe (é mais fácil). Isso já aconteceu muitas vezes, e até por figuras mais altas que um "capitão", demagogo sem escrúpulos.
Onde a secularização mais dissolveu o cristianismo, ou seja, aquele cristianismo identificado em um sistema sociocultural, há mais possibilidades de redescobrir o evangelho de Jesus, no caminho espiritual plural da humanidade. A Igreja dos crentes no evangelho de Jesus hoje deve aceitar esse desafio, o mesmo que foi posto a Jesus pelas multidões, pelas autoridades e, por fim, por Judas: "Ou você serve a causa política nacional, e se torna um Davi libertador, ou o poder político e religioso aliados te eliminarão, porque o teu evangelho dos pobres, dos excluídos, dos irregulares e dos estrangeiros, é perigoso para os interesses fortes, para a continuidade daqueles que contam, para a segurança”. Tratava-se daquela mesma segurança assegurada ao povo pelo Grande Inquisidor, que de fato condena Jesus e a sua liberdade. Na política, Jesus apenas contestou o poder daqueles que oprimem e enganam os mais necessitados, e aos discípulos dá como única regra "política" o servir e não dominar: "Não assim entre vós” (em Mateus 20, Marcos 10 e Lucas 22). O "viver para os outros", que ele testemunhou até o fim, é também a alma de uma política mais humana, do conviver, não esmagar, do compartilhar, não surrupiar. Já o maná no deserto era distribuído com a regra "ninguém sem, ninguém com demais". São questões candentes, que também poderiam estar relacionadas ao tema que talvez venha a ser um Sínodo: "Fé e política". Não é um tema eclesiástico, mas humano, portanto, propriamente político.
A política precisa de uma fé. Não uma determinada fé religiosa - que pertence à espiritualidade pessoal e não à "polis", a casa de todos - mas uma fé na humanidade e nas suas possibilidades de convivência justa. Aquele que não acredita nessa possibilidade dos seres humanos ficará entre eles, na melhor das hipóteses, como domador da fera humana, e sempre teremos a infelicidade política que já conhecemos. Nos piores casos, será um comandante que promete tudo para ter obediência, e merecerá resistência civil não-violenta, se ainda tivermos uma alma livre.
Por outro lado, aquele que tem apreço pela humanidade de todos, capaz, embora com dificuldade, de "grandeza" e não apenas de "miséria", de paz e justiça, pode trabalhar, com o esforço necessário, na construir uma convivência serena, produtora de qualidade humana. O realismo político é aquele que vê os atrasos, os vícios, mas também os desejos qualificantes e os impulsos para o bem, presentes juntos em nossa comum humanidade.
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“‘Fé e política’. Não é um tema eclesiástico, mas humano, portanto, propriamente político” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU