13 Mai 2019
Os bispos as acolheram. Sobreviventes de abuso clerical disseram que elas não foram longe o suficiente. Outros católicos viram-nas como um passo necessário, mas não o último.
A reportagem é de Brian Roewe, publicada por National Catholic Reporter, 10-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Essas foram as reações iniciais predominantes às novas normas emitidas na quinta-feira pelo Papa Francisco para enfrentar o abuso sexual clerical. Embora muitos tenham reconhecido que a carta apostólica “Vos estis lux mundi” (“Vós sois a luz do mundo”) levou a Igreja a avançar no enfrentamento a um escândalo que cerca a Igreja há mais de três décadas, atingindo um novo ápice no ano passado, restou uma sensação de que o documento não foi suficiente por si só e não conseguiu enfrentar algumas das principais causas da crise.
“Esse é um passo importante para os católicos em todo o mundo, particularmente para as vítimas e sobreviventes de abuso e suas famílias”, disse Kim Smolik, CEO da Leadership Dounty, em um comunicado. “Embora o documento ainda não aborde a amplitude da mudança de cultura necessária para enfrentar as causas-raiz das crises de abuso e as falhas das lideranças, ele fornece a base para que as Conferências Episcopais criem políticas significativas de responsabilização para suas regiões.”
A carta apostólica de Francisco, emitida motu proprio (por sua própria iniciativa), estabeleceu novas leis da Igreja relativas à denúncia de abuso sexual e má conduta e ao modo como as investigações são conduzidas.
Ela ordena novos procedimentos que exigem que todos os padres e membros de ordens religiosas denunciem casos de abuso sexual ou de seu encobrimento ao bispo ou superior. Estabelece proteções para aqueles que denunciam casos de abuso ou acobertamento, e bloqueia as tentativas de silenciar os acusadores de falar sobre suas acusações. Orienta os arcebispos a supervisionarem as investigações de outros bispos dentro de suas províncias eclesiásticas e define um prazo de 90 dias para que as denúncias sejam enviadas ao Vaticano para a determinação final. Embora incentive o envolvimento de leigos nessas investigações, não o obriga.
As novas normas entram em vigor no dia 1º de junho e orienta todas as dioceses em todo o mundo, dentro de um ano, a estabelecerem procedimentos de denúncia e investigação. Elas são o segundo conjunto de leis sobre abusos emitidas por Francisco desde que ele realizou uma cúpula inédita em fevereiro, quando líderes das Conferências Episcopais de todo o mundo foram ao Vaticano para abordar a questão do abuso sexual na Igreja Católica.
Em uma série de tuítes, o cardeal de Newark, Nova Jersey, Joseph Tobin, disse que, com essas últimas medidas, “o Papa Francisco nos lembra que ‘cuidar das pessoas’ deve ser uma consideração primária do bispo” e que ele “deixa claro que transparência e responsabilização são essenciais para a identidade e a missão da nossa Igreja”.
Embora reconhecendo alguns sinais de melhora, os sobreviventes de abuso e seus defensores disseram que as novas medidas não foram longe o suficiente. Especificamente, eles criticaram o documento por não criar uma política universal de tolerância zero para o abuso sexual infantil ou seu encobrimento – mantendo o processo de investigação internamente e não estabelecendo penas claras para aqueles que não denunciam o abuso ou se envolvem em seu encobrimento.
“A falta de políticas ou procedimentos nunca foi o principal problema no escândalo do abuso sexual clerical”, disse em um comunicado a Rede de Sobreviventes dos Abusados por Padres (SNAP, na sigla em inglês). “Pelo contrário, foi a falta de responsabilização para os hierarcas que ocultam crimes sexuais e o déficit de coragem e vontade de tomar medidas imediatas e decisivas contra aqueles que permitiram que esses crimes ocorressem.”
Peter Isley, um líder da SNAP de longa data e membro fundador do grupo global Ending Clergy Abuse, disse que a falta de qualquer política de tolerância zero era, talvez, a omissão mais gritante.
“Os bispos ao redor do mundo têm abusadores no ministério ou os colocaram de volta no ministério mesmo quando são considerados culpados. Não há nada nessa nova lei que os proíba de continuar fazendo isso”, disse ele em um comunicado em nome do Ending Clergy Abuse.
Sobre a questão da obrigatoriedade das denúncias, Isley criticou a falta de um requisito universal para levar todos os casos às autoridades civis locais. A carta apostólica declara que a denúncia às autoridades deve ser feita onde tais leis existam, mas não obriga as denúncias além disso. As autoridades da Igreja têm defendido essa determinação, apontando para as diferentes abordagens culturais para lidar com o abuso sexual.
Mas Isley disse que, se esse for o caso, o Vaticano deveria identificar esses países onde uma isenção da denúncia é necessária e, depois, tornar as denúncias obrigatórias para todos os demais.
“A Igreja deveria estabelecer a lei para a denúncia e justificar a exceção. Em vez disso, eles estão usando a exceção como um pretexto para não denunciar o abuso sexual às autoridades civis e manter os abusos secretos”, disse.
Em geral, ele disse que o novo conjunto de leis “parece ter sido projetado para não fazer nenhuma mudança significativa ou relevante no modo como os bispos e o Vaticano lidam com casos de crimes sexuais cometidos por padres contra crianças”.
A BishopAccountability.org, que rastreia a crise dos abusos clericais desde o início dos anos 2000, chamou a carta apostólica de “insuficiente” e apontou para o que considerou como “três fraquezas sérias”: a falta de penas declaradas para aqueles que não aderirem às normas; a falta de transparência obrigatória para o público; e a falta de uma exigência de remoção permanente do ministério para o clero abusador.
“Essa não é a ação ousada que é desesperadamente necessária. Uma lei sem penas absolutamente não é uma lei – é uma sugestão”, disse a organização com sede em Massachusetts em um comunicado.
Embora críticos em relação ao que falta, os sobreviventes de abuso e seus defensores também reconheceram algum progresso no documento. A SNAP chamou as denúncias obrigatórias de suspeitas de abuso ou de encobrimento de “uma coisa boa” e também reconheceu positivamente as proteções para os denunciantes, uma definição mais ampla de adultos vulneráveis e uma promessa do Vaticano de agir rapidamente nas investigações internas.
“Se for aplicado, não há dúvida de que o novo motu proprio, 'Vos estis lux mundi', melhorará o processamento interno das acusações por parte da Igreja”, disse a BishopAccountability.org, que também destacou as proteções aos denunciantes e os procedimentos específicos para denunciar a má conduta de um bispo. “Isso não é trivial – é um passo à frente.”
O Pe. Hans Zollner, presidente do Centro para a Proteção dos Menores da Universidade Gregoriana, em Roma, também caracterizou as novas regras como “um passo muito importante”, em entrevista à revista católica The Tablet, de Londres.
“Não é o fim da jornada, mas é uma melhoria enorme”, disse ele à The Tablet. “O documento aborda várias questões que persistem há muitos anos.”
Kim Daniels, diretora associada da Iniciativa sobre Pensamento Social Católico e Vida Pública na Universidade de Georgetown, expressou sentimentos semelhantes, dizendo no Twitter: “Este é apenas um passo em um esforço longo e há muito esperado, e ainda resta muito mais a ser feito”.
“Mas é isto: um forte passo à frente para a Igreja global e outro resultado concreto da reunião de fevereiro de 2019 sobre a proteção dos menores na Igreja”, disse ela.
O cardeal de Boston, Sean O’Malley, que preside a comissão papal contra o abuso sexual de menores por parte do clero, classificou as novas normas como “um meio para cumprir” o compromisso do papa em relação a “medidas concretas” tomadas no fim da cúpula de fevereiro.
Ele também citou a importância de que as disposições exijam que as supostas vítimas sejam informadas sobre as investigações e a definição ampliada de “pessoas vulneráveis”. Ele acrescentou que é significativo que a carta apostólica “inclua adultos que sofrem ofensas sexuais com violência violenta ou intimidação ou abuso de autoridade”.
“Durante o ano passado, ficou muito mais claro que as pessoas da Igreja e da nossa sociedade em geral demandam, com razão, uma ação substantiva de divulgação, transparência e responsabilização com relação a qualquer ocorrência de abuso sexual, intimidação ou encobrimento na vida da Igreja, e que todo o pessoal da Igreja, independentemente do ofício, esteja sujeito às mesmas políticas, procedimentos e sanções. 'Vos estis lux mundi' é uma resposta importante e substancial para essa demanda”, disse o cardeal de Boston.
A cúpula antiabuso do Vaticano ocorreu três meses depois que os bispos dos EUA fizeram uma pausa, a pedido da Santa Sé, em seus próprios esforços para desenvolver novas políticas e procedimentos sobre os abusos clericais, em particular o abuso ou a má conduta por parte de bispos à luz das revelações do ano passado de abuso infantil e relações inapropriadas com os seminaristas pelo agora ex-cardeal Theodore McCarrick. Em fevereiro, o ex-arcebispo de Washington foi removido do sacerdócio.
O caso McCarrick, junto com uma enxurrada de revelações sobre padres confiavelmente acusados e sobre investigações de procuradores-gerais, estimuladas por um grande júri da Pensilvânia, abalou a fé de muitos católicos, com muita raiva dirigida à inação e ao encobrimento por parte dos bispos. Uma pesquisa do Instituto Gallup de março apontou que 37% dos católicos norte-americanos disseram que os escândalos os levaram a questionar se deveriam permanecer na Igreja.
O cardeal Daniel DiNardo, presidente da Conferência dos Bispos dos EUA, disse em uma declaração na quinta-feira que a carta apostólica responsabilizará os bispos não apenas pelo abuso sexual de menores ou de adultos vulneráveis, mas também por “qualquer encobrimento de tais crimes”.
“O motu proprio mostra que o Papa Francisco espera um progresso rápido e abrangente”, disse DiNardo, arcebispo da Arquidiocese de Galveston-Houston. “Para a Igreja nos Estados Unidos, a tarefa à nossa frente agora é estabelecer o que for necessário para garantir a implementação efetiva do motu proprio.”
O presidente da Conferência dos Bispos dos EUA acrescentou que as comissões da conferência já começaram a preparar medidas de implementação que serão discutidas na sua reunião de junho em Baltimore.
O cardeal de Chicago, Blase Cupich, um dos principais proponentes do modelo metropolitano para a investigação das acusações contra bispos, disse que o documento papal “fornece uma estrutura” para que os bispos norte-americanos, em sua reunião anual, adotem medidas “que implementem a ordem executiva do papa e abordem a questão da responsabilização de todos na Igreja”.
A Leadership Roundtable, que promove a melhor gestão da Igreja através de uma rede de leigos, religiosos e clérigos, disse que acolheu a oportunidade de trabalhar com os bispos e outras lideranças da Igreja “para criar uma nova cultura de liderança e gestão para que as causas das crises possam ser enfrentadas pela saúde e missão de longo prazo da Igreja”.
Dias após o encerramento da cúpula antiabuso no Vaticano, a organização com sede em Washington emitiu suas próprias recomendações para lidar com o escândalo de abuso sexual e as falhas relacionadas das lideranças. Embora as novas leis do papa não tratem de todas as questões delineadas, a Leadership Roundtable disse que elas “vão além de qualquer lei anterior da Igreja em seu escopo de responsabilização e em seu alcance global”.
A Ir. Carmen Sammut, presidente cessante da União Internacional das Superioras Gerais e uma das religiosas que participaram na cúpula antiabuso no Vaticano, disse ao NCR que ela ainda não tinha tido a chance de estudar profundamente as novas regras e estava incerta sobre o que elas podem significar para as religiosas abusadas pelo clero. Mesmo assim, a superiora geral das Irmãs Missionárias de Nossa Senhora da África considerou positivamente a adoção do modelo metropolitano, assim como a indicação de que as denúncias devem ser recebidas com seriedade.
A carta “coloca mais responsabilidade sobre todos, no sentido de que devemos estar bem cientes do que está acontecendo e, então, ter a coragem de fazer algo a respeito”, disse ela ao NCR.
Na Índia, onde os católicos têm se recuperado da prisão de um bispo por supostamente estuprar uma freira, as diretrizes antiabuso papais foram recebidas com hesitação. Chhotebhai (um nome que significa “irmãozinho”), convocador do Fórum Católico Indiano, um grupo nacional de leigos, disse que, embora os católicos de todo o mundo devam acolher a carta apostólica, ele teme que ela não seja implementada estritamente, a menos que se altere a lei canônica.
“Se não for, ela continuará sendo uma exortação piedosa e permanecerá aberta a interpretações e possíveis não implementações”, disse ele.
A Leadership Conference of Women Religious (LCWR) dos EUA disse que estava “satisfeita” ao ver o papa apresentar ações concretas para denunciar os abusos e seus acobertamentos, e que planeja estudar o documento ainda mais.
O FutureChurch chamou a carta de “um enorme passo à frente na abordagem da crise de abuso sexual clerical e do seu encobrimento que vêm agitando a Igreja há décadas” e a leva a uma nova era de responsabilização. Mas eles também viram espaço para mais, especialmente em relação à inclusão de pessoas leigas no processo.
“Embora estejamos satisfeitos com a direção desse motu proprio, ele não vai suficientemente longe no fortalecimento da estrutura de responsabilização”, disse a codiretora da FutureChurch, Deborah Rose-Milavec, em um comunicado. “Essas novas normas continuam se baseando nos mesmos clérigos que encobriram crimes contra crianças; não conseguem incorporar pessoas leigas em todos os aspectos da supervisão; e não obrigam aqueles que têm autoridade a denunciar os crimes às autoridades civis.”
O arcebispo Paul Etienne, de Anchorage, no Alasca, que recentemente foi nomeado coadjutor da Arquidiocese de Seattle, escreveu em seu blog que estava satisfeito com a velocidade e a especificidade das normas.
“O motu proprio de hoje envia uma clara mensagem ao mundo, especialmente aos membros da Igreja, de que não importa o cargo na Igreja, todos serão responsabilizados por qualquer má conduta com menores ou adultos vulneráveis, assim como pela maneira como a Igreja (e os bispos especialmente) responde às vítimas”, escreveu Etienne.
O cardeal de Nova York, Timothy Dolan, disse que a carta apostólica do papa “mais uma vez mostra sua profunda preocupação pastoral de que o flagelo maligno do abuso sexual deva ser tratado com rapidez e seriedade, e mostra que ele ouviu atentamente as vozes do seu povo em todo o mundo”.
“Em suma, 'Vos estis lux mundi' é outro sinal do desejo do Santo Padre de instituir a reforma, promover a cura e garantir a justiça”, disse Dolan em um comunicado. “É um passo muito necessário e imensamente importante para a Igreja universal.”
John Gehrig, diretor do programa católico Faith in Public Life, adotou um tom otimista, chamando as novas medidas de “um grande avanço” ao colocarem uma instituição global na mesma página.
“Certamente, o fato de um transatlântico tão grande quanto a Igreja Católica estar indo na mesma direção para enfrentar o abuso clerical é uma vitória significativa”, escreveu ele no Twitter. “Apesar de um pequeno, mas intenso, movimento que tenta minar o seu papado, o Papa Francisco está tomando medidas decisivas e mantendo o rumo.”
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Reações às novas leis antiabuso da Igreja: um bom passo, mas é preciso mais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU