15 Dezembro 2018
Com mais de 120 pesquisadores e líderes políticos, a jurista Stéphanie Hennette-Vauchez e o economista Thomas Piketty lançaram na segunda-feira “um apelo para transformar as instituições e as políticas europeias”. Pressionar por instituições mais democráticas e por impostos mais justos, esses projetos respondem às reivindicações levantadas há um mês pelos manifestantes franceses.
A entrevista é de Sonya Faure, publicada por Libération, 12-12-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Falar da Europa em plena crise dos coletes amarelos é uma heresia? Pelo contrário. Segundo a jurista Stéphanie Hennette-Vauchez e o economista Thomas Piketty, é no nível europeu que pode se construir equidade fiscal reivindicada hoje nas ruas e rodovias francesas. Com mais de 120 pesquisadores e líderes políticos, eles lançaram na segunda-feira um “apelo para transformar as instituições e as políticas europeias”. E lançaram um projeto de tratado europeu mais democrático (o Tdem), assim como uma proposta de um orçamento mais solidário – quatro vezes superior ao atual orçamento da UE. “Depois do Brexit e a eleição de governos antieuropeus chegando a mais países europeus, não é possível que ela continue como antes”, escreve-se no apelo. “Sem realizar”, sobretudo, “que seja precisamente a falha da ambição social que alimenta o sentimento de abandono”.
Nesse tratado Europeu revisto, que eles apresentaram ao Libération no ano passado, Hennette-Vauchez e Piketty criam nomeadamente uma Assembleia europeia soberana que terá três amplos poderes e, sobretudo, a última palavra sobre o voto do orçamento europeu. Ela será composta por 80% dos parlamentares nacionais. Essa é a verdadeira alavanca social do sistema. Além do orçamento, o projeto de Piketty e companhia pressiona para quatro grandes impostos europeus: sobre o lucro das grandes empresas, sobre os grandes rendimentos, os grandes patrimônios e sobre a emissão de carbono. Ele fixou três prioridades: a transição ecológica, a acolhida dos migrantes e a pesquisa e inovação. Enfim, novamente “bens comuns à escala da Europa”, como disse Stéphanie Hennette-Vauchez. Dez mil signatários já aderiram ao apelo.
Qual a visão de vocês sobre o movimento dos coletes amarelos?
Thomas Piketty — Os coletes amarelos apresentam uma questão central, que é da justiça fiscal. Uma parte da resposta deve ser feita a nível francês: Macron deve imediatamente restaurar o Imposto sobre as Fortunas (ISF) e dedicar essas receitas para compensar aqueles que são mais duramente afetados pelas taxas de carbono, que devem ser retomadas. Mas a resposta deve ser igualmente francesa. Nosso manifesto pela democratização da Europa é antes de tudo um manifesto pela justiça fiscal. O objetivo é de permitir a uma maioria da população implementar impostos justos na Europa, isso é, impostos orientados mais para a contribuição das grandes empresas que dos pequenos e médios empresários, das famílias de altos rendimentos e altos patrimônios que das categorias modestas e médias. E reforçar o imposto sobre a emissão de carbono para aqueles que pegam avião todo final de semana, não para quem não tem outra escolha que não seja tomar seu carro todas as manhãs! Nossas propostas são imperfeitas e devem ser melhoradas. Mas elas têm o mérito de existirem: não podemos nos contentar com todos os críticos e repetir que nada é possível na Europa.
O que pensa da resposta dada por Emmanuel Macron e pelo governo?
Piketty — Ele está totalmente deslocado e insuficiente. Ele não anunciou nada de concreto sobre o ISF e as taxas demandadas aos mais ricos, e é como se a questão do aquecimento climático e da taxa de carbono tenha sido o que disparou os protestos. Ele pensa em ganhar tempo, mas na realidade vai cair mais rápido.
A Europa está relativamente ausente das reivindicações dos coletes amarelos. Mesmo entendendo a vontade de se livrar da contribuição de 3%. Agir a nível europeu não é afastar mais a tomada de decisões dos cidadãos?
Stépanhie Hennette-Vauchez — A Europa não é um escalão de intervenção afastada das dificuldades econômicas e sociais encontradas hoje nos países-membros, bem pelo contrário. É a mesma, em matéria fiscal, é a escala mais pertinente para colocar fim à concorrência entre os Estados. O dumping fiscal que existe hoje no coração da Europa deixa todo o mundo sobre a base: a reforma que nós propomos permite justamente de realizar uma harmonização fiscal portadora de solidariedade intraeuropeia. Nossa ambição é de colocar a flexibilidade das regras estritas que caracterizam hoje a política orçamentária europeia. Nosso projeto prevê em particular reverter aos Estados a metade das receitas produzidas pelos quatro impostos que estamos propondo levantar. Será uma maneira para se colocar na obra de autênticos políticos de relance do investimento público e do acompanhamento da transição ecológica, sem que possa se opor à regra dos 3%.
Como deixar a democracia europeia mais direta?
Hennette-Vauchez — O Tdem não pretende acabar com a questão, evidente que outras vias de democratização não devem ser negligenciadas. O coração da nossa proposta, que consiste em criar uma Assembleia europeia composta em grande parte de parlamentares nacionais, não se opõe à tomada de consciência da mobilização cidadã e de outras formas de contra-peritagem. Pelo contrário, ele nos é importante por dar a esses últimos um ponto de apoio em um conjunto institucional onde hoje eles são impossibilitados ser entendidos. Por meio desse arranjo democrático, procuramos abrir uma brecha na qual as causas cívicas descartadas até agora, como vozes heterodoxas, até então marginalizadas, podem agora se insurgir. A Assembleia Europeia e os seus diferentes grupos políticos podem ser um aliado político essencial e uma alavanca para levar estas vozes ao coração do governo da União.
Com o seu orçamento europeu ideal, quais serão as despesas prioritárias?
Hennette-Vauchez — A ideia é dupla: de uma parte, permitir o renascimento do investimento público (cujo os cortes generalizados na Europa durante o período recente são dramáticos) todos permitindo o acompanhamento da transição ecológica. Os novos impostos que propomos levantar poderiam ser gastos em benefício dos Estados (50%), das universidades e da formação (25%), da acolhida de migrantes, da transição ecológica (25%). Isso feito, definimos os bens comuns autênticos em toda a Europa: o clima e a preservação do meio ambiente, o acolhimento digno das populações migrantes, mas também o conhecimento, a formação e a inovação, são as condições para um desenvolvimento europeu harmonioso nos próximos anos e décadas.
Os migrantes, a ecologia... essas não são precisamente as prioridades dos europeus, se acreditarmos no movimento dos coletes amarelos.
Hennette-Vauchez — Adotar um orçamento é fazer uma comunidade política. As orientações sobre nossas propostas de fazer isso são realistas: elas afirmam claramente que as problemáticas como ecologia ou migração só podem ser tratadas de maneira coletiva, europeia - e não Estado por Estado. Pelo contrário, ao deixar as populações pagarem os custos da transição ecológica sem dispositivos de acompanhamento e de compensação, ou ao deixar que acreditem que as migrações podem ser problemas ou dizem respeito apenas à Grécia ou à Itália, isso agravaria o abandono e a injustiça denunciados pelos coletes amarelos. Não devemos perder de vista os custos muito elevados de um status quo europeu.
Piketty — Eu recordo que uma parte desses novos impostos a nível europeu sobre os atores econômicos mais poderosos serão devolvidos aos estados (metade das receitas em nossa proposta orçamentária, mas poderia ser mais se a Assembleia assim decidir). Por exemplo, cada país pode usar esse dinheiro para reduzir os impostos sobre os mais pobres.
Precisamente, quais serão os novos tributos?
Piketty — O projeto prevê a adoção de quatro grandes impostos europeus agregados ao total de 4% do PIB europeu: um imposto sobre o lucro das grandes empresas, um imposto sobre os altos rendimentos (acima de 200 mil euros), um imposto sobre os grandes patrimônios (acima de 1 milhão de euros), e um imposto sobre a emissão de carbono (fixado inicialmente em 30 euros a tonelada, e aumentado regularmente). Lembramos que atualmente, a taxa nacional do imposto sobre o lucro das grandes empresas está na média de 22% na União Europeia, enquanto no início dos anos 1980 era 45%. E em 2018, a taxa marginal do imposto sobre o rendimento aplicado aos rendimentos mais elevados está em média de 40% na Europa, contra 65% em 1980.
Em seu projeto, a diferença entre as despesas arrecadadas e as receitas pagas para o mesmo país será limitada a 0,1% do seu PIB. Por quê?
Piketty — Esse limite de 0,1% poderia ser aumentado se houvesse um consenso, e isso é obviamente o que queremos. Mas isso não deve se tornar um obstáculo e uma desculpa para não fazer nada, porque a verdadeira questão está em outro lugar: é sobretudo reduzir as desigualdades nos diferentes países e investir no futuro de todos os europeus, começando naturalmente com o mais novo deles, sem favorecer um país em detrimento de outro. O fantasma da União transfere o bloqueio a todo pensamento europeu hoje, e é urgente sair disso. Acrescento que este cálculo exclui em nosso projeto os gastos e investimentos realizados em um país para atender a um objetivo de interesse comum que também beneficia todos os países, como o combate ao aquecimento global. Dado que financiará bens públicos europeus que beneficiarão de forma semelhante a todos os Estados-Membros, o orçamento de democratização conduzirá, de fato, a um efeito de convergência entre os Estados europeus.
Com o surgimento de partidos populistas e sentimentos antieuropeus, é provável que este projeto permaneça no estágio de boas intenções?
Hennette-Vauchez — O contexto é difícil, não importa quais projetos você pretenda. O nosso reconhece a atual dificuldade contextual, imaginando, em particular, um dispositivo que pode ser acionado por mais Estados - e não necessariamente 27.
Piketty — Eu não compartilho do seu pessimismo. É perfeitamente possível que a França e a Alemanha criem nos próximos meses uma Assembleia franco-alemã competente para adotar um imposto comum sobre os lucros das grandes empresas, um imposto comum sobre as emissões de carbono, incluindo o querosene, etc. Este projeto de justiça fiscal poderia envolver progressivamente todos os países. E se os governos não têm a sabedoria para fazê-lo a frio, então são as crises financeiras, sociais ou políticas que imporão uma reintegração das instituições europeias. Em qualquer caso, será necessário reconstruir. As saídas políticas exigirão lutas de raiva e poder. E você tem que se preparar desde agora.
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A resposta aos coletes amarelos deve ser também europeia. Entrevista com Thomas Piketty e Stéphanie Hennette-Vauchez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU