02 Fevereiro 2018
Quase dois anos após a publicação do documento do Papa Francisco sobre a família, Amoris Laetitia, e especialmente sua abertura cautelosa à comunhão para divorciados e recasados, continua causando controvérsia nos círculos católicos, já que mais bispos têm divulgado orientações sobre sua interpretação e outros têm exigido que o pontífice explique seu significado definitivo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 01-02-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O documento, assinado por Francisco em março de 2016, foi resultado de um processo de três anos que incluiu dois sínodos episcopais, reunidos em Roma em 2014 e 2015, e duas consultas de fiéis ao redor do mundo.
O debate parecia ter abrandado quando Francisco pediu que uma carta particular enviada por ele a um grupo de bispos de Buenos Aires, na Argentina, sobre orientações dos prelados em relação a Amoris Laetitia, fosse postada no site do Vaticano e na Acta Apostolicae Sedis, o registro oficial de documentos do Vaticano. Essa carta corroborava um conjunto de orientações que permitam a comunhão para divorciados e recasados civilmente após um processo de discernimento com um pastor.
Tanto a carta do Papa como as orientações dos bispos são consideradas "magistério autêntico" por Francisco. Datada de 5 de setembro de 2016, a carta papal diz que o documento episcopal "explica com precisão o significado do capítulo VIII de Amoris Laetitita. Não há outra interpretação”.
O documento de Buenos Aires dizia que o caminho do discernimento proposto por Francisco "não necessariamente termina nos sacramentos", mas deve, antes de tudo, ajudar o casal a reconhecer a sua situação, compreender os ensinamentos da Igreja sobre a permanência do matrimônio e tomar medidas rumo a uma vida mais cristã.
"Quando possível", disseram, os casais divorciados e recasados devem ser incentivados a se abster de relações sexuais, o que lhes permite receber os sacramentos. No entanto, embora não haja "acesso irrestrito aos sacramentos", em algumas situações, após um minucioso processo de discernimento e avaliação da culpabilidade do indivíduo no fracasso do matrimônio sacramental, a exortação do Papa "abre a possibilidade” à recepção dos sacramentos.
No dia 31 de dezembro, três bispos do Cazaquistão - Tomash Peta, Arcebispo de Santa Maria, em Astana; Jan Pawel Lenga, Arcebispo-Bispo de Karaganda; e Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Santa Maria, em Astana - divulgaram um comunicado intitulado "Profissão das verdades imutáveis em relação ao matrimônio sacramental”.
Publicado em vários sites de notícias, o comunicado depois recebeu apoio de dois prelados italianos, o arcebispo Carlo Vigano, ex-representante papal nos Estados Unidos, e o arcebispo emérito Luigi Negri.
"Não é lícito (non licet) justificar, aprovar ou legitimar, seja direta ou indiretamente, o divórcio e uma relação sexual estável não conjugal através da disciplina sacramental da admissão dos chamados 'divorciados e recasados' à sagrada comunhão; neste caso, uma disciplina alheia à toda a tradição da fé católica e apostólica”, diz a declaração dos bispos cazaques.
Neste mês, o cardeal Wim Eijk, de Utrecht, na Holanda, pediu que Francisco emitisse um documento afirmando que o matrimônio é "único e indissolúvel" e também que o pontífice deve esclarecer se os católicos divorciados e recasados podem receber a comunhão ou não, porque "as pessoas estão confusas, e isso não é bom".
Em entrevista ao jornal holandês Trouw, Eijk disse que mesmo que Francisco nunca tenha se pronunciado, isso vai contra o ensinamento da Igreja, Amoris Laetitia "semeou a dúvida".
O religioso também lamentou o fato de que há muitas orientações explicando o documento, algumas em conflito entre si.
"O que é verdade no lugar A não pode de repente ser falso no lugar B", disse ele. "Em algum ponto, é bom ter clareza."
Eijk está se referindo, por exemplo, à orientação lançada mais recentemente, a dos bispos da região italiana de Piemonte tornaram público, em 29 de janeiro, que vê o assunto como uma "situação resolvida caso a caso".
Intitulado "O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado (Salmo 34), “Acompanhamento, discernimento e integração”, o documento de Piemonte funciona com base no argentino, e esses três elementos concretos "acompanhamento, discernimento e integração” foram retirados de Amoris Laetitia.
Concentrando a atenção, "desde o título", nos fiéis que vivem em situações "de não completa realização do sacramento do amor esponsal", as orientações "convidam a um estilo de proximidade e atenção a todas as famílias", revelando a "face do Senhor que se aproxima nas situações mais diversas da vida".
Chama cada diocese a ter um "espaço acolhedor", no qual cada situação possa ser avaliada, e cada sacerdote é chamado a acompanhar os casais que podem estar nessa situação através de um caminho de discernimento.
O documento faz a distinção entre aqueles que são apenas recasados no civil ou morando juntos e, neste caso, são chamados a ser acompanhados ao sacramento do matrimônio.
Em relação aos divorciados e recasados, os bispos citam Amoris Laetitia para argumentar que há uma "necessidade de afirmar que sua situação não é 'o ideal do Evangelho'" e, portanto, a integração deve ser feita "distinguindo adequadamente” dentre as diversas situações, "sem rotular ou aprisioná-los em 'afirmações rígidas demais'."
Embora represente os bispos da região, o documento é assinado pelo Arcebispo Cesare Nosiglia, de Turim.
De forma similar, a diocese de Braga, em Portugal, lançou seu próprio documento, um conjunto de diretrizes amplamente permissivo, no final de 2017, até mesmo sugerindo um cronograma para o caminho do discernimento: Do início do ano pastoral, em outubro-novembro, até a Páscoa, "talvez a Quinta-feira Santa seja um bom dia para aqueles a quem o discernimento assim rege receberem a comunhão eucarística."
No entanto, cada processo é individual e pode levar tempos diferentes para cada pessoa, esclarecem as orientações.
O documento de Braga reconhece que, às vezes, apesar dos esforços de um casal, permanecer juntos não é possível. Portanto, "embora mantenha constantemente o chamado à perfeição e peça uma resposta mais completa a Deus, a Igreja deve acompanhar com atenção e cuidado seus filhos mais fracos, que demonstram sinais de um amor conturbado e ferido, restaurando neles a esperança e a confiança".
A diocese está oportunizando que um recém-criado gabinete, que fornece informações e aconselhamento, determine se um primeiro casamento foi de fato válido. As recomendações que se seguem aplicam-se quase exclusivamente para aqueles cujo primeiro casamento não pode ser anulado, mas ainda querem "viver a fé cristã, com uma boa relação com Deus e a Igreja".
É para eles que se aplica a jornada de "discernimento pessoal e pastoral responsável", cujo objetivo é ajudar a se integrar mais ainda à vida da Igreja.
O documento diz que não cabe a um diretor espiritual decidir pelo casal sobre o acesso aos sacramentos. Em vez disso, o diretor espiritual deve garantir que o processo de discernimento tenha ocorrido corretamente e "reconhecer o papel da consciência das pessoas, pois 'somos chamados a criar consciência, não a fingir que a substituímos'", diz o documento, citando Amoris.
O documento traz sugestões práticas quanto à forma como o discernimento deve ser feito, como, por exemplo, fazer uma lista de "prós e contras" de ter acesso aos sacramentos, após um “processo racional", que deve incluir leitura, oração e direção espiritual. A "quantidade" do que está em cada coluna não é tão importante quanto seu "peso", diz o texto.
Apenas depois de ambas as listas terem sido feitas a pessoa pode, "com honestidade perante a Deus e com total liberdade”, decidir o que é mais próximo da vontade de Deus: "Acessar os sacramentos, ou não, ou deixar para mais tarde, porque há etapas que precisam ser cumpridas; caso contrário o discernimento deve continuar."
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Mais uma vez, os bispos ao redor do mundo divergem sobre 'Amoris' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU