20 Dezembro 2017
Assim como 2016 foi classificado por muitos observadores como um ano de surpresas - com a eleição de Donald Trump, a decisão da Inglaterra de sair da União Europeia e um referendo colombiano que rejeitou um acordo de paz -, 2017 pode ser visto como um ano de conexões, cheio de eventos e decisões que vão continuar tendo consequências para o futuro próximo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, nos dias 17 e 18-12-201. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
No caso do Papa Francisco, frequentemente descrito como um jogador de xadrez adiantado em algumas jogadas, 2017 não foi "só mais um ano".
Escolher as manchetes do papa dos últimos 12 meses não é tarefa fácil, mas pelo menos podemos identificar três grandes áreas em que Francisco foi especialmente ativo:
Embora não tenha dado muitos sinais de arrefecimento, este ano Francisco fez cortes em viagens internacionais, talvez por saber que não é fácil se preparar para cada viagem ao exterior. No ano passado ele fez seis viagens: Cuba e México; Grécia; Armênia; Polônia; Geórgia e Azerbaijão e Suécia. Em 2017, só saiu da Itália quatro vezes: Egito; Portugal; Colômbia; e Myanmar e Bangladesh.
Em três desses quatro casos, ele precisou medir as palavras e ações com muita cautela, sabendo que falar muito - ou muito pouco - poderia provocar aumento na violência contra os cristãos em um país de maioria muçulmana, no caso do Egito; prejudicar um acordo de paz fraco que punha fim a uma guerra civil de décadas, na Colômbia; ou ainda colocar em perigo uma minoria muçulmana perseguida, em Myanmar.
A viagem ao Egito aconteceu na última semana de abril e foi anunciada em março. Nesse meio tempo, ao celebrar a missa do domingo de ramos na Roma Praça São Pedro, terroristas mais uma vez lançaram uma sombra sobre a Semana Santa, desta vez com a explosão de bombas em duas igrejas cristãs coptas no Egito, que deixaram pelo menos 45 pessoas mortas e mais de 100 feridas.
Embora a visita de Francisco ao Egito tenha durado pouco mais de 24 horas, a breve viagem à sexta maior nação muçulmana do mundo e a maior no Oriente Médio foi arriscada, e, na época, descrita como uma das mais arriscadas de seu papado.
Ainda assim, o papa saiu de cabeça erguida. No primeiro dia, entregou a sua versão do famoso discurso de Regensburg do Papa Bento XVI, emitindo um chamado claro e poderoso a líderes religiosos - que, no contexto egípcio, inconfundivelmente significa que o islamismo persiste em primeiro lugar - para rejeitar a violência em nome de Deus.
"Vamos dizer 'Não!', novamente, com firmeza e clareza, a todas as formas de violência, vingança e ódio em nome da religião ou em nome de Deus", afirmou. "Juntos vamos afirmar a incompatibilidade da violência e da fé, da crença e do ódio."
No país do Oriente médio com a maior população cristã, o Papa também revitalizou os cristãos perseguidos do Egito, que representam cerca de 10% a 20% da população nacional.
A viagem de Francisco a Fátima, Portugal, a única com data definida no fim de 2016, foi muito mais fácil, em comparação. Apenas duas semanas após a viagem ao Egito, de 12 a 13 de maio, Francisco evitou quaisquer elementos políticos ao se direcionar direto a Fátima, para venerar a Virgem Maria.
Porém, apesar do tom espiritual do passeio, foi praticamente irrelevante.
As aparições de Nossa Senhora do Rosário fora da aldeia, para três pastorinhos analfabetos, em 1917, permanecem entre as aparições Marianas aprovadas mais amadas e mais controversas da Igreja Católica. Nas seis vezes em que apareceu, ela concedeu três "segredos" ou mensagens sobre o inferno, as duas guerras mundiais e o assassinato do Papa João Paulo II em 1981, que aconteceu na festa de Nossa Senhora de Fátima.
Francisco, que nunca foi de medir palavras para desafiar o próprio rebanho, durante a homilia da canonização de dois dos jovens pastores, advertiu às centenas de milhares de pessoas que estavam reunidas sobre ir para o inferno: "Nossa Senhora previu e nos avisou sobre isso, um estilo de vida ateu e profano a Deus em suas criaturas... Uma vida assim - frequentemente proposta e vivida - traz riscos de levar ao caminho do inferno."
O Papa Francisco falava da viagem à Colômbia quase desde o início do seu pontificado. Em cumprimento a uma promessa feita várias vezes, assim que foi assinado o acordo de paz entre o governo de Juan Manuel Santos e a maior guerrilha do país, conhecida como FARC, o Papa confirmou que a viagem aconteceria.
Quando a viagem se aproximada, um RP temia que a viagem do Papa à Colômbia, de 6 a 11 de setembro, não passasse de uma volta da vitória para o governo e seu controverso acordo de paz com os rebeldes marxistas do país, deixando para trás divisões mais profundas, em vez de buscar a reconciliação.
Mas no fim se o passeio pareceu uma volta da vitória para qualquer um, não era uma vitória de Santos, embora ele também tenha se saído muito bem, mas do povo colombiano.
O Papa visitou quatro cidades em cinco dias, onde milhões de pessoas surgiam para participar das missas que ele celebrou em Bogotá, Villavicencio e Medellín, sem contar na multidão de meio milhão em Cartagena, quase metade da população da cidade.
Ele pediu aos jovens que fossem professores em matéria de perdão. Ele lembrou as vítimas de violência e também aos abusadores que “Ódio leva ao ódio, morte leva a morte”, pediu que a vida humana fosse protegida em todas as fases, disse que era inaceitável que crianças tivesse sua infância roubada, denunciou o machismo latino-americano e lembrou os católicos da Colômbia, que representam mais de 70% da população, que Jesus exige muito mais do que simplesmente seguir um conjunto de regras e ficar paralisado por uma interpretação rigorosa da lei.
Mas, acima de tudo, o que os cinco dias de visita deixaram foi prova clara e tangível de que, apesar da divisão política que os acordos de paz geraram, a Colômbia é um país que pode ter paz.
Bogotá, cuja média de mortes violentas por dia é 3,4, não registrou nenhuma durante as primeiras 48 horas da visita, e o mesmo aconteceu nas outras cidades que ele visitou. A imprensa local noticiou isso como um milagre.
Outro fruto imediato da viagem foi que o famoso líder rebelde Rodrigo Londoño, comandante das FARC e anteriormente conhecido pelo apelido "Timochenko," enviou uma carta ao Pontífice, enquanto ele ainda estava na Colômbia: "Suas repetidas expressões sobre a infinita misericórdia de Deus me levam a pedir pelo seu perdão por quaisquer lágrimas ou dor que tenhamos causado ao povo da Colômbia."
Quando o papa viaja, a intenção é geralmente enviar uma mensagem de justiça, dignidade e paz, reforçando também as relações com os governos anfitriões. Neste sentido, a última viagem ao exterior de 2017 de Francisco foi mais campo minado do que corda bamba.
A decisão de ir para Myanmar e Bangladesh foi um pouco de última hora, porque a viagem inicialmente planejada, Índia e Bangladesh, não pôde acontecer. De acordo com o próprio pontífice, a "papelada" estava demorando demais. Voltando da viagem, ele disse a jornalistas que espera que logo seja possível fazer uma visita à Índia.
Grande parte da cobertura da viagem, que aconteceu de 27 de novembro a 2 de dezembro, reduziu-se ao dicionário: será que ele vai usar a palavra "Rohingya" ou não para se referir a uma minoria muçulmana atualmente perseguida que está fugindo de Myanmar para Bangladesh. Cerca de 625.000 pessoas fugiram de lá desde o final de agosto, e as Nações Unidas acusaram o governo da Birmânia de limpeza étnica.
O Papa tinha sido avisado pelos bispos locais para evitar o termo, pois temiam que as consequências poderiam ser protestos violentos nas ruas. Myanmar não reconhece os rohingya como cidadãos, apesar de estarem morando lá por gerações.
O Papa evitou a palavra até o dia 1º de dezembro, quando conheceu 16 refugiados rohingya em Bangladesh, durante um encontro inter-religioso. Depois de cumprimentar cada um deles, fez um discurso improvisado, no qual pediu desculpas pela “indiferença” do mundo ao seu sofrimento.
Além de seus apelos diretos e indiretos por estas e outras minorias perseguidas em Myanmar, como cristãos, que representam 6% da população, Francisco também lançou sua estratégia inter-religiosa, que gira em torno do combate à violência religiosa.
No topo da lista de viagens que não saíram estão o Sudão do Sul e o Congo. Apesar das intenções do Papa, as crises que estão atualmente decorrendo nesses países impossibilitaram. No entanto, ele tornou possível.
Desde o início, o Papa Francisco tem sido considerado "reformador" e, também desde o início, não ficou claro o que exatamente significa "reformar" no caso dele. É revitalizar a imagem pública de uma Igreja que estava emergindo de uma atmosfera de crise em março de 2013, mudando sua orientação política e teológica para o que alguns analistas chamam "conversão pastoral", ou ajustar aspectos básicos da limpeza do Vaticano?
É os três, algo mais ou nenhuma das anteriores? Na verdade, algumas versões de reforma mencionadas acima chegam a contar ou são desvios muito perigosos? Dependendo de como se responde a essas perguntas, as opiniões sobre o papel de reformador de Francisco podem ir desde um sucesso triunfante até um fracasso, pelo menos até agora.
De qualquer forma, 2017 foi mais um ano agitado em relação à reforma, e aqui vão alguns dos destaques.
Quando ele foi eleito papa, em 2013, Jorge Mario Bergoglio, da Argentina, sabia que uma das premissas do seu apoio era justamente seu grande conhecimento do quão disfuncional e lenta pode ser a burocracia do Vaticano e também do quão insular e política pode ser sua psicologia para os que não têm muita experiência na área.
Logo após sua eleição, ele criou um grupo de oito conselheiros cardeais para ajudá-lo com a reforma da Cúria Romana. Depois, acrescentou o Secretário de Estado, o cardeal italiano Pietro Parolin, para formar o que hoje se conhece como "C9". O representante estadunidense do órgão é o cardeal Sean O'Malley, que, até o momento, já se reuniu mais de 20 vezes.
Os prelados vêm de todos os continentes exceto a Antártica e têm uma gama diversificada de experiências pessoais, políticas e teológicas. Eles foram incumbidos de re-escrever a constituição do Vaticano e até agora não se sabe quando esse processo poderá se realizar.
No ano de 2017 houve progresso pelo menos em relação ao pessoal dos dois megadicastérios criados pelo papa no ano passado, por aconselhamento do C9. Um dedica-se ao Desenvolvimento Humano, liderado pelo Cardeal Peter Turkson, de Gana, e o outro a tudo o que é relacionado a família, leigos e vida, liderado pelo Cardeal estadunidense Kevin Farrell.
Outro movimento de pessoal que balançou as estruturas foi a decisão de Francisco de não prorrogar a liderança do cardeal alemão Gerhard Müller no gabinete doutrinal do Vaticano, preferindo promover o vice, o arcebispo jesuíta espanhol Luis Ladaria Ferrer.
Como Luis Ladaria é considerado tão conservador quanto Müller, teologicamente, a transição não foi vista em Roma como uma ampla declaração de ideologia por parte de Francisco, mas sim de lealdade. Müller, até certo ponto, identificava-se com a oposição ao documento controverso de Francisco sobre a família, Amoris Laetitia, e sua abertura cautelosa à comunhão para divorciados e recasados no civil, enquanto Ladaria ficou fora da briga.
Outro elemento da reorganização da Cúria Romana que ganhou apoio foi as mudanças nas visitas ad-limina, ou seja, a peregrinação quinquenal que bispos de todos os países fazem à cidade eterna. Agora, há uma reunião no final, com a presença de Francisco, os bispos visitantes e os líderes de grande parte dos gabinetes do Vaticano, e dizem, a respeito da primeira rodada dessas reuniões, que se houver conflito, Francisco raramente fica do lado dos seus líderes mais influentes de Roma e não do lado dos pastores de dioceses locais.
Globalmente, o Papa Francisco continuou sua busca por uma Igreja mais pastoral, o que é visível por algumas das suas nomeações episcopais, como a Cidade do México e Paris. O cardeal Carlos Aguiar Retes e o bispo Michel Aupetit substituíram o cardeal Norberto Rivera Carrera e o cardeal André Vingt-Trois, que haviam liderado suas dioceses por décadas.
Em relação à luta contra o abuso sexual clerical, a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores de Francisco está em um impasse atualmente, esperando que o Papa assine a nova lista de membros. A que estava em vigor teve um mandato de três anos, até 17 de dezembro.
Vendo que a crise de casos de abuso sexual clerical a menores é muitas vezes considerada a pior da Igreja desde a reforma protestante, muitos observadores dizem que a aparente letargia do Vaticano em fornecer os recursos e a assistência necessários à comissão é preocupante.
Além disso, Marie Collins, uma irlandesa vítima de abuso sexual, deixou a comissão em março devido a frustrações com a Cúria. O outro sobrevivente que fazia parte do grupo, o britânico Peter Saunders, tinha recebido uma licença em 2016 e, alguns dias antes de seu mandato terminar, anunciou sua renúncia formal.
O que também gerou controvérsia em 2017 foi o caso do cardeal australiano George Pell, que, no final de junho, foi acusado de "ofensas sexuais históricas" por promotores em seu país. George Pell negou as acusações veementemente e está atualmente em casa, ajudando em sua defesa, após Francisco ter concedido-lhe uma licença de seu cargo de líder da Secretaria de Economia do Vaticano.
Outro momento crítico de Francisco sobre a questão dos abusos sexuais virá em meados de janeiro, quando ele viaja para o Chile, antes de ir para o Peru. Sua controversa nomeação do bispo Juan Barros para a Diocese de Osorno, em 2015, apesar de ter feito apologia ao mais notório padre pedófilo do Chile, provocou grande controvérsia, que se agravou com um vídeo gravado na Praça de São Pedro, em outubro de 2015, em que Francisco é ouvido chamando os manifestantes contra Barros de "tolos" e sugerindo que tinham sido "liderados pelos esquerdistas intrometidos que orquestraram tudo isso".
Em sua visita ao Chile, Francisco sem dúvida vai ser pressionado para se responsabilizar pela forma como levou o caso Barros.
Quando Francisco foi eleito, em março de 2013, alguns cardeais saíram da Capela Sistina dizendo: "Chega de Calvi!", resumindo o que esperavam do novo papa. A referência era o banqueiro italiano Roberto Calvi, que tinha profundas ligações ao banco do Vaticano e que morreu em circunstâncias ainda misteriosas em 1982. Por isso, invocar seu nome era uma forma abreviada de dizer que a era dos escândalos financeiros do Vaticano havia acabado.
No início, o Papa Francisco criou três novos instrumentos para fazer uma revisão abrangente da gestão financeira do Vaticano, em busca de grande transparência e responsabilidade: Um Conselho de Economia, para definir as políticas de atuação; uma Secretaria de Economia, para implementá-las; e um Auditor Geral independente, para ter certeza que todos estavam agindo honestamente.
No final de 2017, no entanto, duas dessas três novas agências estavam desfalecidas, e o verdadeiro poder sobre as finanças havia retornado de forma constante para a Secretaria de Estado - ironicamente, o bastião da "velha guarda" do Vaticano, o qual as reformas deveriam enfraquecer .
George Pell está na Austrália, e seu retorno parece cada vez mais incerto, deixando a Secretaria sem a liderança de um cardeal. Enquanto isso, o Auditor Geral, o leigo italiano Libero Milone, encerrou sua atuação junto ao Vaticano em junho, sem qualquer explicação clara do porquê.
Em novembro, Milone foi acompanhado pelo diretor adjunto do banco do Vaticano, o leigo italiano Giulio Mattietti, que foi expulso do território físico da cidade-Estado do Vaticano sem a menor cerimônia, novamente sem qualquer explicação.
Em 2017, um grande julgamento do Vaticano por crimes financeiros também deixou muitos insatisfeitos, pois acabou com a condenação de um leigo italiano pelo desvio de $500.000 de fundos destinados a um hospital infantil patrocinado pelo papa para remodelar o apartamento de um cardeal do Vaticano, mas não houve nenhuma acusação - e nem investigação - do cardeal que se beneficiou com a despesa.
Tudo isso tem deixado alguns observadores preparados para declarar morta a reforma financeira já no início, o que quer dizer que se Francisco quer reavivá-la, talvez tenha trabalho para si em 2018.
O Papa Francisco também promoveu a tentativa de descentralização, cujo maior destaque foi suas alterações às leis que regem a tradução litúrgica, em setembro, cujo efeito em rede é que uma parte significativa do poder é afastada do Vaticano em direção às conferências episcopais locais.
Esta decisão colocou o Papa em uma oposição mais ou menos aberta com seu principal liturgista, o cardeal Robert Sarah, de Gana, já que o pontífice corrigiu o prelado depois de ele ter afirmado que Roma continuaria tendo a palavra final.
Embora alguns vejam o movimento como uma vitória dos católicos liberais, particularmente pensando nas traduções em alemão e italiano, o corte de Francisco na direção oposta, que aconteceu logo em seguida, em outra questão litúrgica contestada, ficando ao lado de seu antecessor, o Papa Bento XVI, por insistir que o termo adequado na missa é que Cristo morreu “por muitos”, e não a utilização de “por todos”.
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Papa Francisco em 2017: Andando na corda bamba por mais carimbos no passaporte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU