19 Fevereiro 2017
“A democracia é impossível sem Diálogo, e a reconstrução nacional requer um esforço de todos, também dos milhões que ontem foram chavistas, inocente e esperançosamente. O Papa convida para o necessário espírito de Diálogo e cabe aos bispos na Venezuela, que vivem a realidade, acompanhar a população em seu sofrimento de condições desumanas, exigir responsabilidades, denunciar as armadilhas do “diálogo” e construir pontes”, escreve Luis Ugalde, teólogo jesuíta venezuelano e ex-Reitor da Universidade Católica Andrés Bello, em artigo publicado por CPAL Social, 15-02-2017. A tradução é de André Langer.
A psicologia de derrotados parece apoderar-se de alguns líderes da oposição que, incapazes de assumir as próprias responsabilidades no desastre reinante, procuram bodes expiatórios sobre os quais descarregar suas culpas. Para alguns, esse bode expiatório da fome e da ditadura na Venezuela é nada mais nada menos que o Papa Francisco e seu perverso desejo de salvar o regime comunista. Ao menos é isso que escrevem.
Podemos entender que o regime procure culpar por seu estrepitoso fracasso o império, a oligarquia capitalista, o golpe econômico e, agora, a Igreja venezuelana, a qual acusa de ter-se transformado em vulgar partido político de oposição. O governo não gosta da Igreja e não escolheu o Vaticano entre os seus amigos “facilitadores” do diálogo; os democratas, ao contrário, não confiavam nas pessoas nomeadas unilateralmente pelo governo e propunham outros, entre eles algum representante do Vaticano. Meses depois, apertado pela situação e pelos protestos, o governo disse sim ao representante pontifício e preparou-se para manipular a cena do mal chamado “diálogo”.
Faltou aos democratas unidade e clareza sobre quem, para que e como dialogar para resgatar os direitos humanos e a Constituição. Também na facilitação da Igreja faltou acordo e precisão, mas isso foi logo corrigido, e o secretário de Estado do Vaticano enviou uma contundente carta denunciando o governo por descumprir os quatro pontos chaves do primeiro encontro, e, por isso, o representante pontifício não voltou. Vozes do regime responderam iradamente a esta carta e a resposta oficial – que não foi publicada – foi grosseira.
Mas, astuciosamente, o regime decidiu não enfrentar a Igreja, mas tentou dividi-la entre o bom Papa e a má Conferência Episcopal. Segundo eles, a Conferência Episcopal, com seu duríssimo documento crítico (13-01-2017) sobre a realidade nacional, demonstra sua rebeldia contra o Papa, ao passo que o governo devotamente o apoia promovendo o diálogo cristão que ele recomenda. Assim mesmo, dirão que a insolente carta de “um tal Parolin” (cardeal secretário do Estado vaticano) é uma coisa e o Papa outra. A manobra divisionista é grosseira, mas torpemente alguns opositores a fazem sua, mudando os papéis: o Papa é o mau e os bispos os bons. Há duas Igrejas.
Entendemos que o regime procure a divisão da Igreja, mas a verdade é que não há carta do secretário de Estado vaticano sem acordo com o Episcopado venezuelano e, muito menos, sem apoio do Papa. “Divide e reina” é o jogo que o regime quer, e promove atos de agressão contra pessoas e templos representativos do catolicismo venezuelano. Mas é incompreensível que haja opositores que se tornam porta-vozes dessa manobra governamental e alinhem seus canhões verbais contra o Papa “comunista”. Chegam, inclusive, a apresentar as coisas como se a eliminação do revogatório presidencial (decisão muito anterior a todo “diálogo”) fosse culpa do Papa. Até a OEA estaria paralisada por causa do Papa!
A verdade dos fatos é outra: o regime, antes do “diálogo”, decidiu eliminar o revogatório, suspender as eleições para governadores em 2016 e qualquer eleição, enquanto houver perigo de perdê-la. Deixa – por enquanto – em aberto as eleições presidenciais do final de 2018, com a esperança de que a popularidade do governo melhore. Como não vai melhorar, deveriam ser suprimidas ou realizadas com os democratas com as mãos e os pés atados. Desde agora o CNE e o TSJ estão preparando as cordas e manietando a democracia.
Uma coisa é o Diálogo e outra é este “diálogo” desfigurado. Não há democracia sem Diálogo, parlamento, discussão e acordos para o bem comum. Toda constituição democrática é Diálogo. A ditadura, ao contrário, é imposição pela força e anulação do adversário e quando se usa o “diálogo” é como engano para manter-se no poder; de maneira alguma ela quer o Diálogo para restabelecer a democracia e os direitos humanos.
Nesta situação, a consciência e a Constituição obrigam todos os venezuelanos – também as Forças Armadas – a restaurar a democracia com os votos da maioria e mudar pela raiz o disparate econômico e social que conseguiu recordes mundiais de morte com inflação (800%), queda do PIB (19%), seguido déficit fiscal (mais de 15%) e um governo que se distingue pela inaptidão e pela corrupção. Como disse o referido documento dos bispos, “uma grande treva cobre o nosso país”, “estamos vivendo situações dramáticas” e “tudo se agrava a cada dia que passa, porque não há corretivos” (n. 2).
A democracia é impossível sem Diálogo, e a reconstrução nacional requer um esforço de todos, também dos milhões que ontem foram chavistas, inocente e esperançosamente. O Papa convida para o necessário espírito de Diálogo e cabe aos bispos na Venezuela, que vivem a realidade, acompanhar a população em seu sofrimento de condições desumanas, exigir responsabilidades, denunciar as armadilhas do “diálogo” e construir pontes. Cabe aos políticos, à sociedade civil e seus setores sociais concretizar mais esta ação com unidade e estratégia indivisível. Parece que, para alguns, é mais fácil atacar o Papa “comunista” do que fazer a sua parte para sair da ditadura e sua atual e crescente miséria econômica e social.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Papa como bode expiatório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU