Por: André | 25 Mai 2016
“Para além dos bons sentimentos de caridade assistencial dando um pouco de comida ou um copo de água, é preciso envolver-se na política para produzir comida, luz, água, segurança e democracia, com todos e para todos. (...) O contrário é o inferno. Uma Igreja muda ou servil dispensadora de bênçãos não seria fiel a Jesus, fidelidade que é sua única razão de ser”, escreve o jesuíta venezuelano Luis Ugalde, em artigo publicado no jornal El Nacional, 14-04-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
“Venham benditos de meu Pai porque tive fome e me destes de comer...”, diz o Mestre na parábola do Juízo Final. Jesus, raras vezes arreganha e menos ainda maldiz, mas aqui nos fala de maldição e inferno para quem deixa que o outro morra de fome, sede e doenças ou apodreça na prisão. Esse é o juízo de Deus sobre as pessoas e também sobre as políticas. Aos malditos contrapõe os “benditos de meu Pai”, porque me deram de comer, me ofereceram água para matar a sede, me acompanharam na doença... É a linha divisória entre a boa pessoa e a má, entre o bom governo e o mau. O resto é hipocrisia religiosa.
Os responsáveis pela situação política, econômica e social recebem o louvor de Deus apenas se conseguem estruturas, instituições e condutas para que os famintos tenham acesso à comida e à sua produção, os doentes acesso a saúde e os injustamente presos acesso à liberdade. Jesus diz que essa negação da vida do próximo traz o inferno; o que está à vista na Venezuela. Para escapar da fome e sair da pobreza são requeridas modificações profundas e coerentes em todo o aparelho produtivo e na ação de milhões de pessoas; coisa que é impossível sem uma mudança de política e um governo democrático novo que convoque todo o país. Diga-se o mesmo sobre as políticas, para que os remédios, os médicos e as instituições públicas de saúde tragam vida. Os bons sentimentos de caridade ficam mutilados se não há políticas coerentes e inteligentes em todas estas áreas; na política, contam os resultados, não bastam boas intenções.
Alguns padres se precipitaram para celebrar o atual regime como o advento do Reino de Deus e agora nos surpreendem pedindo que bispos e padres sejam cegos e mudos diante de suas sequelas de morte. A Igreja não pode calar quando se trata de defender a vida digna, embora a acusem de se meter na política. Os grandes profetas de Israel foram assassinados porque, com a verdade de Deus, denunciavam quem vendia “o pobre por um par de sandálias” e usavam o poder para oprimir e explorar. O profeta Jesus foi executado pelo poder de seu tempo, acusado de se meter na política.
Em nossos dias e neste continente as ditaduras assassinaram o hoje beato Romero (El Salvador), o bispo Angelelli (Argentina), o arcebispo Girardi (Guatemala) e dezenas de padres, “por se meterem na política”. O cardeal Silva Henríquez no Chile, dom Arias na Venezuela e Helder Câmara no Brasil foram exemplos de consciência cristã diante dos desmandos das ditaduras e de defesa dos perseguidos.
Certamente, os bispos e padres não devem se envolver na política partidária, mas têm que fazer sua a defesa da vida (comida, bebida, saúde, moradia, trabalho, liberdade...). Tudo isso fruto da boa política, frente à má política que leva ao inferno que vivemos. Trai o Evangelho quem cala ou abençoa os senhores deste mundo que escravizam as pessoas. Aqueles que roubaram milhares de milhões de dólares, que implantaram a ineptidão e a corrupção na administração pública e que mataram a produtividade da empresa, são aqueles que tiram o pão, a água, a saúde e a segurança.
O poder – hoje e ontem – procura bispos e padres incondicionais que o abençoem, legitimem e sacralizem, mas o Espírito de Deus nos leva a rezar: “Senhor, ajuda-me a dizer a verdade perante os fortes e a não dizer mentiras para ganhar o aplauso dos fracos”. A bênção de Deus é inseparável da vida dos mais pequeninos: “Venham benditos de meu Pai porque tive fome e me deram de comer”.
Para além dos bons sentimentos de caridade assistencial dando um pouco de comida ou um copo de água, é preciso envolver-se na política para produzir comida, luz, água, segurança e democracia, com todos e para todos. Isso requer ciência e tecnologia, financiamento, organização, profissionalismo, capacidade e honradez..., dirigidos por uma política de estadistas, centrados no bem das pessoas, de todos os venezuelanos, e não apenas daqueles que carregam a bandeira de seu partido. E abrir as prisões e fronteiras para que saiam e voltem os criminalizados e perseguidos pelo simples fato de serem opositores. O contrário é o inferno. Se alguém duvida, que venha e veja o que se vive na Venezuela. Uma Igreja muda ou servil dispensadora de bênçãos não seria fiel a Jesus, fidelidade que é sua única razão de ser.
Nossos problemas são tão graves e a corrupção tão desbordante, que o saneamento requer uma renovação espiritual e alianças dos politicamente diversos (enquanto partido), mas concordes na política nacional do bem comum para destravar o desastre atual e assentar as bases para que caminhemos juntos para a reconstrução do país.
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Padres na política. Artigo de Luis Ugalde, jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU