19 Dezembro 2025
"É esta história, aparentemente fadada a se repetir que o menino Jesus enfrenta vitoriosamente; é a Luz de Deus Pai que cria um espaço aberto à totalidade e radicalmente alternativo ao sistema de morte", escreve Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Eis o artigo.
O Menino Jesus nos diz e nos faz ver claramente que o mundo – e a forma como vivemos e o vemos – mudou radicalmente com a sua chegada.
Aqui está uma luz muito mais forte e abrangente do que a estrela de Belém, que nos diz amorosamente que é tolice e impotência ainda acreditar que são os poderosos e violentos que dominam a vida e a história.
'Tigres de papel' foi como Mao Tsé-Tung definiu os capitalistas mas, infelizmente, contradisse a si mesmo ao repropor, com a vitória da revolução, a ditadura do Estado e da guerra. E até hoje, de fato, parece que nada mudou e somos forçados a repetir a mentalidade e o comportamento de nossos ancestrais do neolítico. Aprendemos isso, na escola, desde o ensino fundamental, com a proposta acrítica da história da humanidade, reduzida a uma sucessão de eventos bélicos, sempre justificados por 'Deus' ou por suas reduções seculares da modernidade jacobina.
A ilusão de poder é um tema constante da arte e da filosofia. Muitos mostraram efetivamente o quão frágil, efêmera e ridícula é a presunção dos poderosos. O segredo de seu suposto poder baseia-se na vulnerabilidade de um consenso ilusório ou no medo.
E alguns pensadores decifraram e denunciaram a violência e a guerra, processos constitutivos de todo poder tanto no contexto das relações familiares quanto no contexto das sociedades mais amplas. Poder dominador e ilusório, que não se revela apenas em estruturas políticas, onde os governantes são reduzidos a caricaturas grotescas, incapazes de administrar a realidade, mas se oculta - e deve ser desmascarado - no sistema religioso e familiar do patriarcado, machista e racista.
Agora, porém, a história trágica do exercício do poder, que a maioria aceita como um legado indiscutível e invencível, se configura como um teatro vacinado contra o riso, a ironia e a sátira, porque, dentro e fora de casa, há muito tempo, os políticos monopolizam o farsesco e não se preocupam em esconder sua aparência tragicamente caricatural, ridícula e grotesca. E, fato indiscutível, o poder constituído mostrou-se capaz de contaminar todas as tentativas revolucionárias que quiseram usar para vencer as mesmas ferramentas do poder: violência, guerra, estado.
É esta história, aparentemente fadada a se repetir que o menino Jesus enfrenta vitoriosamente; é a Luz de Deus Pai que cria um espaço aberto à totalidade e radicalmente alternativo ao sistema de morte. É o poder definitivo e desarmado dos pobres, dos pequeninhos e das pequeninhas, que testemunha o Reinado em que Justiça e Paz, Verdade e Misericórdia podem em fim se abraçar. Este ‘território’ é o lugar em que o Pai revela o seu projeto e fundamenta a nossa alegria.
É a partir desta alegria de sermos chamados a nos aliarmos a Abba, que “Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (Lucas 1,52-53). que podemos forjar uma aliança com às vítimas e enfrentar o poder dos impérios e dos estados que mata, massacra e extermina. Somos nós, discípulos e discipulas de Jesus, que podemos organizar e articular uma rebelião desarmada contra quem ainda hoje mata também as crianças.
Somos servidores do Reinado de Deus, que nos alerta, porém, que a alegre esperança da Ressureição da humanidade e da Criação provoca o ódio e a perseguição que nos reservam os inimigos da vida. Não pode existir discipulado sem a Cruz. Seria a “Graça barata”, de que nos falava, no contexto do nazismo, Bonhoeffer[i], a “graça sem discipulado, graça sem a cruz, graça sem Jesus Cristo vivo e encarnado”. Ilusão infiel e blasfema da possibilidade de conciliar o antirreino com a pessoa e a Palavra de Jesus.
“Jesus Menino. Penso em todas as crianças assassinadas... nas crianças desalojadas devido às guerras e perseguições, abusadas e exploradas sob os nossos olhos e o nosso silêncio cúmplice; seja ainda nas crianças massacradas nos bombardeamentos, inclusive onde o Filho de Deus nasceu. Ainda hoje o seu silêncio impotente grita sob a espada de tantos Herodes. Sobre o seu sangue, estende-se hoje a sombra dos Herodes do nosso tempo. Verdadeiramente há tantas lágrimas neste Natal que se juntam às lágrimas de Jesus Menino!” [ii]
Notas
[i] Bonhoeffer Dietrich, Sequela, Queriniana, Brescia, 2004. (Nachfolge, 1937)
[ii] papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, Natal, Quinta-feira, 25 de dezembro de 2014.
Leia mais
- É Natal no sertão! O galo cantou e o Menino Deus tornou a nascer. Entrevista especial com Cícero Félix de Sousa
- Nasceu Jesus! O convite do Menino Deus a olharmos para os pobres e deles fazer germinar a esperança. Entrevista especial com Alfredo J. Gonçalves
- O menino que vem para reencantar o mundo. Artigo de Faustino Teixeira
- O Deus-menino retirante neste mundo severino
- O nascimento de um Jesus-severino e a vitória da esperança. Entrevista especial com Eli Brandão
- Dia de Natal. "Um menino nasceu, o mundo tornou a começar"! (Guimarães Rosa)
- O nascimento de Jesus hoje: imaginando um presépio contemporâneo
- Folia de Reis: fé, cultura e tradição! Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria
- Folia de Reis: celebração e tradição que permeiam o Brasil
- Descobrir as manifestações do religioso na cultura popular, um desafio para uma reflexão teológica poliédrica
- Nordeste, neve e trenó: quando vamos descolonizar o Natal?
- Papai Noel foi projetado para enganar mais adultos que crianças
- Natal de Jesus: o divino no humano
- Epifania: Luz da Luz no Seu nascimento, no vai e vem da vida, sem perder o brilho da Luz na Luz! (Mt 2,1-12). Artigo de Jacir de Freitas Faria
- Descobrir as manifestações do religioso na cultura popular, um desafio para uma reflexão teológica poliédrica
- Dia de Reis já foi feriado nacional. Entenda o significado da data
- O povo brasileiro: um povo místico e religioso
- Piedade popular: a manifestação espontânea que atravessa regras e realimenta uma fé. Entrevista especial com José Leandro Peters
- Fé, fome, suor e sangue. Religiosidade e mística nordestina. Entrevista especial com Paulo Suess
- Cultos e fantasias de três “magos”
- O nascimento de um Jesus-severino e a vitória da esperança. Entrevista especial com Eli Brandão
- A esperança do Natal. Artigo de Enzo Bianchi
- O Deus Menino, nossa memória. Artigo de Enzo Bianchi
- Presépio: a imagem antes do pensamento. Artigo de Marcello Tarì