O livro "Vida Amarga" de Spinoza nos lembra dos riscos enfrentados por aqueles que se opõem ao poder. Artigo de Corrado Augias

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30 Dezembro 2025

Após o discurso de Massimo Recalcati, mais uma lição sobre assuntos da atualidade.

"...do filósofo que experimentou em primeira mão o mal da intolerância."

O artigo é de Corrado Augias, jornalista, escritor italiano e ex-deputado do Parlamento Europeu, publicado por La Repubblica, 17-12-2025.

Eis o artigo. 

No domingo (14 de dezembro), Massimo Recalcati escreveu um belo artigo nestas páginas sobre a Ética de Baruch Spinoza. A Ética é talvez o ápice do pensamento de Spinoza, se pudermos distingui-la dentro de um corpus filosófico denso e coerente como o que ele nos legou. Há outra obra sua de grande importância. O título soa grandioso, mas o conteúdo, na realidade, não é apenas a exposição de uma ideia, e sim um guia para a ação cotidiana: o Tratado Teológico-Político (Tractatus theologico-politicus); é também sua única obra publicada, em 1670, durante a vida do autor.

Spinoza ainda não tinha quarenta anos, mas na Amsterdã de sua época já havia interceptado os ventos da liberdade que, em poucas décadas, tomariam forma plena nas doutrinas do Iluminismo. No capítulo final, XX, ele afirma que o propósito da sociedade política é libertar os indivíduos do medo, garantindo-lhes segurança e o direito à existência. Numa república livre, escreve ele, é permitido pensar livremente e expressar livremente os próprios pensamentos.

Há também uma seção inteira na obra dedicada às religiões, como o título sugere, que discutirei em breve. Gostaria primeiro de compartilhar um episódio curioso sobre ele, que descobri anos atrás enquanto lia “O Problema de Spinoza”, de Irvin D. Yalom, um psiquiatra que atua em Palo Alto, Califórnia, e autor de romances sobre grandes filósofos: Nietzsche, Schopenhauer e, claro, Spinoza. Por que, e para quem, um homem gentil como Baruch poderia ter sido um problema?

Certo dia, enquanto estava em Amsterdã, Yalom dirigiu até Rijnsburg (uma hora de carro) para visitar a casa-museu do filósofo. Desapontado com a pobreza da biblioteca, fez algumas perguntas e descobriu que, durante a ocupação nazista, o museu havia sido saqueado pela SS, liderada pelo Reichsleiter Alfred Rosenberg. Essa figura sinistra, um dos principais ideólogos antissemitas do regime de Hitler, instruiu um jovem oficial a invadir as bibliotecas e compilar um catálogo (pode-se imaginar o quão meticuloso) das obras que continham, incluindo anotações manuscritas sobre obras iniciais.

Ele tentava, dessa maneira rudimentar, resolver o problema que o atormentava: como Wolfgang Goethe, o maior representante do espírito germânico, pôde apreciar tão explicitamente as obras de um judeu como Spinoza? A tentativa foi grosseira e não deu em nada; Rosenberg foi um dos nazistas de alta patente que foram enforcados em Nuremberg ao final do famoso julgamento.

Baruch Spinoza nasceu em 1632 em Amsterdã, numa família judia que havia fugido de Portugal para escapar dos pogroms. Na juventude, estudou na escola rabínica, lendo praticamente tudo enquanto ajudava a família trabalhando no balcão da mercearia do pai.

Certo dia, dois judeus entraram na loja e, depois de comprarem algo, pararam para conversar. Pareciam curiosos e, com genuíno interesse, pediram detalhes sobre suas ideias a respeito de Deus, das Escrituras e do universo, e disseram que apreciavam suas respostas. Baruch era um jovem honesto e gentil; sua atitude amável, quase bajuladora, não o levara a suspeitar de uma farsa. No entanto, era exatamente isso que havia acontecido. Os dois falsos clientes eram, na verdade, espiões da sinagoga que, imediatamente após a conversa, correram para denunciar suas ideias heréticas às autoridades rabínicas.

A reação foi severa; Baruch de repente se viu envolvido em uma acalorada disputa teológica. Um cherem foi pronunciado contra ele, isto é, uma maldição que decretava sua expulsão violenta da comunidade, juntamente com várias interdições cruéis.

Em meados do século XVII, em Amsterdã, Spinoza foi expulso da comunidade judaica e banido. Deixou a cidade com tão poucos pertences que sua irmã, mais tarde, recusou-se a herdá-los, para não ter que arcar com o fardo de tamanha pobreza. Iniciou então uma nova profissão, como lapidador de lentes. Debruçado sobre a pedra de amolar, ele aperfeiçoava a curvatura das lentes, obtendo um foco perfeito, e continuava a pensar. O preço, porém, era alto; sua saúde era frágil, embora sua vontade fosse de ferro, e a fina poeira de cristal prejudicava seus pulmões. Escolheu uma vida solitária; ponderava se publicaria sob pseudônimo ou não. Em 21 de fevereiro de 1677, aos 44 anos, faleceu em Haia.

Seu maior pecado foi reduzir a imagem de um deus antropomórfico à superstição e, em seguida, examinar as Escrituras não com a mente crente do fiel, mas com o olhar perspicaz do filólogo. Foi exatamente isso que o pensador francês Ernest Renan fez no final do século XIX. Após seus estudos no seminário, ele chegou à conclusão de que a atribuição do Pentateuco a Moisés era insustentável.

Spinoza foi ainda mais longe. Em uma carta ao seu amigo, o teólogo Henry Oldenburg, escreveu: “A ressurreição de Cristo dentre os mortos foi, na realidade, espiritual...”.

No Tratado Teológico-Político, criticou a crença na Eucaristia, imaginando o absurdo de que Deus, uma substância infinita e indivisível, pudesse ser materialmente engolido e depois expelido nas fezes. Para ele, Deus não é uma entidade pessoal separada do mundo, mas Deus sive Natura.

Em 1927, o historiador Joseph Klausner proferiu uma palestra na Universidade de Jerusalém sobre o “caráter judaico” da filosofia de Spinoza. Ele anunciou sua intenção de trazer Spinoza de volta ao seio de Israel.

No artigo de 14 de dezembro, publicado na seção de cultura do jornal Repubblica, Massimo Recalcati explicou por que precisamos da lição de liberdade e tensão ética de Spinoza.

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