O medo como afeto constitutivo da modernidade. Artigo de Alexandre Francisco

Arte: The Fall of the Rebel Angels | Pieter Brueghel the Elder (1526/1530–1569)

03 Outubro 2025

"Como um castelo de cartas, o erro de origem nos levou à Sociedade de Controle, de Gilles Deleuze. O controle de corpos humanos se torna mais flexível, disseminado e baseado na modulação do comportamento, substituindo-se os moldes rígidos das instituições das sociedades disciplinares. Foucault não previu os algoritmos."

O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em Filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

Como podemos remediar um erro social fundamental de toda a nossa realidade contemporânea? Me refiro aquilo que Thomas Hobbes chamou de guerra de todos contra todos (Bellum omnium contra omnes). O medo fundamental e intrinsicamente humano da preservação da vida, que busca consequentemente a evitar a morte violenta pelos outros homens, nos levou a abraçar a constituição de uma sociedade que ao invés de resolver seus conflitos mais profundos, optou por abrir mão de sua criatividade e autonomia, em troca de segurança e controle. A biopolítica de Michel Foucault, nascida na Era Moderna, tem na filosofia de Hobbes, seu mais extenso e horizontal alicerce. 

Como um castelo de cartas, o erro de origem nos levou à Sociedade de Controle, de Gilles Deleuze. O controle de corpos humanos se torna mais flexível, disseminado e baseado na modulação do comportamento, substituindo-se os moldes rígidos das instituições das sociedades disciplinares. Foucault não previu os algoritmos. 

A morte em vida se dá pela inocuidade do cotidiano empresarial. Mimetizamos nossos profissões, a identidade se constitui não mais pelas relações afetivas de trocas e comunidades, mas por aquilo que se faz, ou aquilo que se tem como símbolo de status. Somos uma sociedade de narcisos que se afogam na própria idealização de self, construídas a partir do consumo de massa. 

Alguns anunciam o fim das metanarrativas, no entanto, acredito que vagamos inertes e imersos na maior das metanarrativas antes imaginada pelo ser humano: a sociedade capitalista. Com a sua própria epstemologia, as sociedades capitalistas tem sua forma única de conhecer o mundo. Se a representação divina de deus na terra para Hobbes, estava na figura do soberano, hoje quem ocupa esse lugar de forma secularizada é o dinheiro. Aquilo ou aquele que lucra é exaltado; endeusado. A riqueza se tornou o maior dos milagres, e a teologia da prosperidade não nos deixa dúvidas. Por outro lado, aquilo ou aquele que não é lucrativo, é abandonado, deixado ao léu, tratado como pária, ou utilizando um termo de Giorgio Agamben, torna-se Homo Sacer, aquele que não pode ser morto, tampouco sacrificado por ritos divinos. O sujeito abandonado pela sociedade capitalista é capturado em uma Vida Nua, na maioria das vezes sem possibilidade de retorno.   

As crises cíclicas do capitalismo, ameaçam as conquistas daqueles que jamais abrirão mão de seus privilégios e poder. O estado mostra-se forte e generoso com a classe dominante, enquanto em outra medida para as classes mais baixas impõe-se goela a baixo o neoliberalismo. Diante do aparelhamento do estado e da democracia popular pelas elites, esvazia-se a praça pública e torna-se inoperante qualquer luta por resistência e emancipação. A política da sociedade plural é agora movida pelos algoritmos das Big Techs, e os interesses particulares de bilionários imperialistas. Se essas empresas dominam a criação de todo conhecimento, não há possibilidade de conhecer fora dessa armadilha, e mesmo as possibilidades revolucionárias, são condicionadas à criação do conhecimento pelos altos capitalistas, confirmando as teses de Max Horkheimer da alienação epistemológica das massas. A revolução torna-se esvaziada, mesmo antes de acontecer, ela já foi previamente roteirizada e amortecida. Por fim, as crises cíclicas que acontecem dentro do capitalismo fazem das ideias Carl Schmitt, a mais perfeita teoria política para a criação dos autoritarismos contemporâneos. 

Perguntamo-nos: é impossível abrir não da segurança das instituições, do poder de violência e do controle voluntário de nossos corpos? O que nos espera do outro lado? Será a total destruição, o governo da força, ou a total libertação humana? De forma sincera, acho difícil descobrirmos sem que antes enfrentemos as nefastas e últimas consequências de nossa servidão voluntária, como preconiza Étienne de La Boétie. Abrimos mão, como humanidade, de nossos acordos e pactos fraternos, baseados na amizade, cooperação e no amor pelo outro. Hoje o que vemos são os pactos baseados na violência, acordos firmados pela desigualdade e ameaça a existência mútua entre civilizações e indivíduos. 

Entretanto, faça-se uma ressalva, Hobbes não deve ser atirado aos leões, ou melhor, aos lobos. Do contrário, pode ser que suas ideias sejam antes, muito mais o afunilamento e reflexo de uma sociedade à sua época, extremamente violenta diante da mais obtusa falta do básico para sua existência, e via-se imiscuída e subjugada pela força da espada de clãs e facções para conseguir uma mínima existência digna. Mas o que antes era a preservação da morte, transfigurou-se rapidamente em preservação da propriedade privada com relação a criação das leis de cercamento na Inglaterra (com fartos estudos de Eric Hobsbawm) que se referem ao cerco de campos abertos e terras comuns, a partir do século XVII, criando direitos de propriedade sobre a terra anteriormente de uso comum. Entre 1604 e 1914, mais de 5.200 leis individuais de cercamento foram aprovados, totalizando 28 mil km².

O desenvolvimento do mercantilismo (séculos XV–XVII), da lei dos cercamentos (aproximadamente entre 1500 e 1700, intensificando-se no século XVII) e das companhias de comércio (como a Companhia Holandesa das Índias Orientais, fundada em 1602, e a Companhia Inglesa das Índias Orientais, fundada em 1600) são contemporâneos à escrita do Leviatã (1651) de Hobbes. A preservação da vida em segundo plano, deu lugar à preservação da propriedade em primeiro plano. Os atos revolucionários americanos e franceses não foram capazes de fazer uma real mudança de paradigma, capturados posteriormente pelos grilhões da burguesia e suas instituições ditas "seguras", não mais sendo possível livrar-se delas. Como diante de um naufrágio o morto tenta evitar seu destino agarrando-se a parte mais pesada do navio, afundamos cada vez mais veloz na esperança de estarmos seguros dentro de nossos lares, talvez, por enquanto. 

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