10 Dezembro 2025
"Talvez tenha chegado o momento de alguns de nós ousarmos dar voz. Não para canonizar o Cardeal Fernández, mas para dizer com clareza que não aceitamos que se apague, pela porta dos fundos, tudo o que cheire a Francisco. Não queremos uma Igreja refém de suas minorias integristas barulhentas".
A informação é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 09-12-2025.
Cheira a vendetta e a acerto de contas. Desde que Francisco colocou à frente da Doutrina da Fé Víctor Manuel Fernández, os ultras o transformaram em seu alvo prioritário e em sua diana preferida. Não lhe perdoam três coisas: ser argentino, ser amigo íntimo do Papa que mudou os rumos da Igreja e ousar, desde a velha Inquisição, falar de Evangelho, discernimento, primazia da misericórdia e centralidade das vítimas.
Enquanto Bergoglio vivia, ele continha em alguma medida o fogo cruzado dos integristas. Morto Francisco e com Leão XIV na cátedra de Pedro, eles desencadearam toda a artilharia pesada. E agora, agarrados ao mais recente documento mariano, Mater Populi fidelis, encontraram o álibi perfeito para tentar cobrar a peça mais cobiçada da “primavera franciscana”: a cabeça de Víctor Manuel Fernández.
Uma campanha antiga com desculpa nova
Não nos enganemos: o problema não é o último documento mariano, como antes não foram Fiducia supplicans, nem as orientações sobre abusos, nem as notas sobre bênçãos ou moral conjugal. O problema é que toda a produção doutrinal de Fernández traz um selo claro: fidelidade ao Vaticano II, leitura pastoral e missionária da doutrina e defesa de uma ortodoxia que não se confunde com rigidez nem com arqueologia.
Cada texto que sai do forno da Doutrina da Fé foi preparado com todos o avalmagisterial, inclusive o do próprio Papa Francisco, que não apenas assinava, mas também orientava e corrigia. E agora, com o referendo de Prevost. Mas isso nunca importou àqueles que, há mais de uma década, dizem que Bergoglio era um perigo público, um “herege” que conduzia a Igreja ao cisma.
O que vemos agora é a fase dois do mesmo roteiro: eliminado o “incômodo” Francisco, é preciso apagar seus rastros. E a maneira mais eficaz de apagar um pontificado é derrubar aqueles que melhor o encarnam. Tucho, símbolo vivo dessa primavera, incomoda. Porque lembra que o Evangelho pode ser anunciado com ternura sem perder um ápice de clareza; porque ousou falar da Virgem sem transformá-la em bandeira contra ninguém; porque se atreveu a esclarecer para evitar excessos e manipulações que, paradoxalmente, procedem dos mesmos que agora o acusam de “desprezar” Maria.
E é que muitos desses grupos não suportam que a Doutrina da Fé já não seja o “porrete” de outros tempos, mas um serviço ao Povo de Deus para “clarificar a fé” em chave de anúncio e não de condenação.
Poder, medo e silêncios cúmplices
No fundo, trata-se de uma questão de poder. Antes de 2013, os setores mais integristas da Igreja mandavam quase sem oposição: controlavam nomeações, meios de comunicação, movimentos, seminários, universidades. Suportaram Francisco “a contragosto”, resmungando por baixo, esperando sua morte, chamando-o confusamente de “antipapa” ou insinuando que ele rompia a Igreja.
Prognosticaram cismas que nunca vieram, sonharam com um “depois” que lhes devolvesse o leme. E agora acreditam que sua hora chegou: sentem-se fortes, escrevem a Leão XIV pedindo a cabeça do prefeito da Doutrina da Fé, apontam-no como “causa de divisão” e pressionam para que o novo Papa marque distância, baixe o tom, desmonte “passo a passo” o que foi semeado por Francisco.
O mais doloroso talvez não sejam os ataques desse núcleo duro — poucos, mas muito barulhentos —, e sim o silêncio de muitos que, no íntimo, valorizam a tarefa de Fernández, mas não se atrevem a dizê-lo. Teólogos, pastores, agentes de pastoral que respiraram aliviados ao ver uma DDF “com cheiro de Evangelho” preferem hoje não se expor, para não atrair “a ira dos fanáticos”.
Enquanto isso, esses fanáticos integristas seguem agindo livremente, pautando a agenda, intoxicando as redes e condicionando, de fato, o clima eclesial, a ponto de qualquer nuance ou esclarecimento — como os de Mater Populi fidelis — ser lido em chave de traição e não como o que é: uma tentativa honesta de evitar excessos devocionais, equívocos teológicos e leituras instrumentalizadas de Maria.
Por que é preciso defender o Cardeal Fernández (e o que ele representa)
Defender hoje Fernández não é defender um amigo, um compatriota de Francisco ou um teólogo simpático. É defender uma maneira de exercer o ministério doutrinal que a Igreja precisava há muito tempo: uma doutrina que não rebaixa o depósito da fé, mas o apresenta como boa notícia e não como código penal.
Um dicastério que não se dedica a caçar cabeças teológicas, mas a acompanhar processos, oferecer critérios, resgatar o essencial do ruído ideológico. Um estilo teológico que conjuga fidelidade e criatividade, tradição e aggiornamento, evitando tanto o imobilismo quanto a experimentação irresponsável.
Desde que chegou ao dicastério, Fernández fez algo tão simples e tão revolucionário quanto levar a sério a renovação evangelizadora da Igreja e traduzi-la para a linguagem normativa e pastoral. E o fez com um nível notável de solidez teológica, justamente porque sabe que sem rigor não há reforma que se sustente. Por isso dói tanto ver seu trabalho ser questionado por campanhas orquestradas que misturam meias verdades, recortes fora de contexto e acusações grosseiras.
Leão XIV, a prova de fogo
Neste contexto, Leão XIV coloca muito em jogo. E nós também. Se ceder à pressão dos que pedem a cabeça deste cardeal, a mensagem será devastadora: a de que a primavera de Francisco foi um parêntese, que tudo foi “um excesso” já corrigido, que basta esperar a morte de um Papa para reverter o que o Espírito semeou em seu tempo. Remover Fernández agora seria dar razão àqueles que se vangloriam de que esse ciclo está “morto e enterrado”, aos que sonham com o retorno a uma Igreja de poder vertical, de gabinetes fechados e condenações fulminantes.
Por isso, desde nossa modesta atalaia, queremos proclamar o óbvio: oxalá a Igreja valorize a magnífica obra doutrinal e teológica de Víctor Manuel Fernández; oxalá veja nele não um problema, mas um aliado para seguir uma linha de fidelidade criativa ao Concílio e ao magistério recente; oxalá não o sacrifique no altar das pressões dos que há anos tentam derrubá-lo. Mantê-lo em seu posto não é um gesto de fraqueza, mas de coerência e de coragem evangélica.
Porque, além disso, Santo Padre, como o senhor bem sabe por experiência própria, essas lutas contra os fundamentalistas se dão na solidão. (A mesma que o senhor experimentou diante das ignomínias dos fundamentalistas no próprio pré-conclave). Os que gritam contra se fazem notar; os que agradecem e apoiam costumam calar. Ninguém escreverá cartas ao Papa para dizer: “Santidade, obrigado por manter o prefeito que ajudou muitos a compreender melhor a fé nestes tempos convulsos”. Mas essa gratidão silenciosa existe nas paróquias, nas comunidades, nos seminários, nas periferias onde a Igreja arrisca a própria vida.
Talvez tenha chegado o momento de que alguns de nós ousemos dar voz a isso. Não para canonizar Víctor Manuel Fernández, mas para dizer com clareza que não aceitamos que se apague, pela porta dos fundos, tudo o que cheire a Francisco. Não queremos uma Igreja refém de suas minorias integristas barulhentas. Queremos uma Igreja que continue a clarificar a fé a partir do Evangelho, com a cabeça fria, o coração quente e as mãos abertas. E, nessa tarefa, o cardeal Fernández continua sendo, hoje por hoje, uma peça imprescindível.
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