05 Dezembro 2025
Metas ambiciosas buscam frear a degradação, restaurar os biomas e alinhar as políticas climáticas e de conservação.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 03-12-2025.
Depois de anos de dispersão entre normas, diagnósticos e programas isolados, a conservação brasileira ganhou um marco unificado. Publicada no fim de novembro, a Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB) integra clima e conservação buscando mostrar que é possível produzir sem destruir.
O pacotão conservacionista era preparado desde 2023, com consultas públicas e reuniões técnicas, para melhor alinhar a política nacional ao Marco Global de Biodiversidade aprovado na COP15, no Canadá, em 2022. Metas desenhadas pela Comissão Nacional de Biodiversidade também orientaram o planejado.
Ele também se articula com iniciativas recentes, como o Programa de Gestão de Dados sobre Biodiversidade – que integra informações sobre a variedade de formas de vida – e a lista do ano passado com 81 municípios prioritários para combate ao desmate.
Para Michel Santos, gerente de Políticas Públicas do WWF-Brasil, a portaria pode ser um ponto de virada entre normas e implantação. “Agora o país tem, de fato, um plano para executar o previsto em políticas nacionais e acordos globais de conservação”.
Publicada logo depois da COP30, em Belém (PA), a Estratégia igualmente se posiciona como peça central do esforço brasileiro para alinhar as três Convenções do Rio: clima, biodiversidade e desertificação.
Na avaliação da gerente de Políticas Públicas da Proteção Animal Mundial no Brasil, Natália Figueiredo, o país só ganhará ao investir nessa integração. “Isso é estratégico para nós, que vivemos desertificação, catástrofes climáticas e ainda somos megadiversos”.
Biodiversidade como solução climática
Sobre isso, a professora da Universidade de Brasília e colaboradora do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Mercedes Bustamante, destaca que a biodiversidade aumenta o sequestro de carbono. “Florestas biodiversas são mais eficientes na mitigação da crise do clima”, apontou.
Além disso, a cientista ressalta que sistemas mais ricos em vida têm maior resiliência frente à mudança climática e que até a conservação da água depende de ecossistemas saudáveis. “Isso conecta a proteção da biodiversidade também com a segurança hídrica e a saúde pública”.
A Estratégia traduz essa integração em metas ambiciosas, como zerar a conversão da vegetação nativa até 2030, neutralizar a degradação de terras no mesmo período e criar uma rede de conectividade abrangendo ⅓ do território nacional.
A EPANB também estabelece que, até o fim da década, pelo menos 30% das áreas degradadas ou alteradas de cada bioma sejam restauradas e que 80% da Amazônia e 30% dos demais biomas e zonas costeiro-marinhas tenham conservação e manejo eficazes.
Em Belém (PA), na COP30, o Brasil anunciou que 3,4 milhões de ha – área pouco maior que a da Bélgica – estão em recuperação, em áreas públicas e privadas. Isso é quase ⅓ da meta de 12 milhões de ha restaurados, até o fim da década.
Santos alerta, porém, que sem conectividade não haverá restauração efetiva das paisagens nem adaptação das espécies. “Corredores ecológicos dependem da aplicação da legislação florestal. Isso exige coordenação federativa, incentivos e financiamento”.
Bustamante acrescenta que é preciso repensar instrumentos como a reserva legal, já que a biodiversidade não pode ficar confinada apenas às áreas protegidas. Ela propõe uma “reserva legal premium”, voltada para conectar áreas naturais e ter valor ecológico real.
Alinhamento com agendas globais
A EPANB dialoga com a Agenda de Ação da COP30, que prevê por exemplo mobilizar US$ 125 bilhões para florestas tropicais e a coalizão Scaling J-REDD+ – com governos, povos indígenas, investidores e ongs – para investir outros bilhões anuais contra o desmate, até 2030.
Mas, em vez de apenas seguir a lógica climática, a Estratégia brasileira busca integrar soluções baseadas na natureza, justiça territorial e resiliência econômica. Isso pode reduzir riscos ambientais, gerar empregos e impulsionar um crescimento econômico sustentável.
Figueiredo aponta que esse alinhamento pode ajudar a financiar as metas brasileiras, inclusive com parte dos recursos viabilizados por mecanismos como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre. “Indicadores de biodiversidade podem fortalecer a integridade e a atratividade de projetos em mercados de carbono”, avaliou.
Um dos diferenciais da Estratégia é o Programa Nacional de Refaunação. Para Figueiredo, a restauração ecológica proposta só será bem-sucedida se adotar indicadores de fauna por bioma. “Restaurar não é deixar pasto virar mais pasto, nem plantar eucalipto: é recuperar vegetação nativa”.
Governança e desafios políticos
Enquanto isso, pontos cruciais da EPANB seguem em aberto – como de monitoramento, financiamento e comunicação – e devem ser regrados em até 150 dias. Santos avalia o prazo como um grande teste para reforçar a espinha dorsal de sua implantação.
“Precisamos de indicadores claros e de um portal de transparência para acompanhar avanços e cobrar resultados, com cronogramas e canais de participação social”, detalhou. “Isso será decisivo para dar credibilidade ao processo”.
Porém, a execução e a regulamentação do plano correm num terreno político muito adverso. Figueiredo lembra que o licenciamento ambiental foi recentemente destruído pelo Congresso e que temas como reduzir prejuízos à biodiversidade no campo praticamente não entram na pauta dos parlamentos.
Segundo ela, o conjunto de projetos que também flexibilizam caçadas, fragilizam o Código Florestal, aceleram obras e facilidades para o agronegócio são “aberrações jurídicas”. “Pode ser o melhor planejamento do mundo que este Congresso inviabiliza”, resumiu.
O financiamento também preocupa, ainda mais com regras a serem definidas no ano eleitoral de 2026. “Biodiversidade não elege ninguém – eu falo isso com tristeza – e tudo o que não for eleitoral dificilmente prosperará em termos orçamentários”, ressaltou Figueiredo.
Já Bustamante insistiu na necessidade de “coerência financeira” entre o que o Brasil defende nas COPs e o que pratica em casa. “Não basta aumentar o financiamento para clima e biodiversidade: é preciso retirar o financiamento das atividades predatórias”.
Desta maneira, a EPANB é mais uma oportunidade para o país demonstrar até que ponto está disposto a transformar compromissos internacionais em políticas domésticas. “As convenções são a base, não o teto”, defendeu Bustamante. “Se o Brasil puxou esta agenda, vai ter que provar que pode fazer”.
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