03 Dezembro 2025
"O escrito de Mitri Raheb não apenas analisa criticamente o papel da teologia no apoio direto ou indireto ao colonialismo de assentamento, mas contribui para a imaginação de um paradigma teológico decolonial capaz de promover justiça, pluralidade e reconciliação. É leitura fundamental para pesquisadores, teólogos e estudiosos que se dedicam à interseção entre Bíblia, política e direitos humanos", escreve Eliseu Wisniewsk, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Eis o artigo.
A obra Decolonizar a Palestina: a terra, o povo, a Bíblia (Paulus, 2025, 192 páginas), escrita por Mitri Raheb, reconhecido teólogo palestino e figura central nos estudos teológicos contextualizados do Oriente Médio, propõe uma ruptura paradigmática no modo como a teologia cristã, sobretudo ocidental, tem interpretado a Palestina, a Bíblia e a própria noção de “Israel” no imaginário religioso. A obra, marcada pela erudição e pelo engajamento político, articula teologia, história e crítica pós-colonial para denunciar o uso teológico da Bíblia em legitimação do colonialismo de assentamento israelense.
Raheb argumenta que a Palestina real, habitada, histórica, plural foi substituída na teologia ocidental por uma Palestina imaginada, construída sobretudo por leituras bíblicas descontextualizadas. Essa Palestina idealizada funciona, segundo ele, como espaço teológico neutro, onde orientações políticas e projetos coloniais são naturalizados em nome de uma suposta narrativa sagrada. A crítica não se limita a correntes evangélicas dispensacionalistas; alarga-se para teólogos liberais europeus que, embora metodologicamente sofisticados, reproduzem estruturas teológicas que invisibilizam o povo palestino. O episódio envolvendo Friedrich-Wilhelm Marquardt (p. 53), exemplifica, de forma contundente, como discursos teológicos progressistas podem, paradoxalmente, operar dentro de lógicas coloniais.
No primeiro capítulo (p. 20-50), o referido autor dá um passo importante ao incorporar a teoria do colonialismo de assentamento como chave hermenêutica para interpretar a história moderna da Palestina. Em vez de enquadrar a situação como “conflito” categoria que pressupõe simetria entre as partes, o autor demonstra que a dinâmica vigente desde a Declaração de Balfour corresponde à estrutura típica de substituição populacional: apropriação de terras, deslocamento de nativos, produção de refugiados e construção de narrativas teológicas justificadoras.
No segundo capítulo (p. 51-76), dedicado ao sionismo cristão, Raheb amplia esse conceito, deslocando-o da caricatura frequentemente limitada ao fundamentalismo evangélico. Ele identifica um sionismo cristão “liberal”, discreto e teologicamente legitimado, muitas vezes produzido em ambientes acadêmicos prestigiados, que naturaliza a equivalência entre Israel bíblico e Estado de Israel, fornecendo suporte moral e religioso ao projeto colonial. Essa análise, embora contundente, é apresentada com base em exemplos pessoais e em observações empíricas, o que confere densidade narrativa, mas pode ser percebido como lacuna metodológica: uma tipologia mais sistemática ou dados empíricos comparativos fortaleceriam o argumento.
"Decolonizar a Palestina: a terra, o povo, a Bíblia", de Mitri Raheb (Paulus Editora, 2025)
O terceiro capítulo (p. 77-121), ao abordar a questão da terra, oferece uma crítica hermenêutica refinada. Raheb demonstra como leituras teológicas da “terra prometida” foram historicamente empregadas para legitimar projetos coloniais, no passado europeu e no presente israelense. A contribuição mais relevante destas páginas é a articulação entre política da terra, arqueologia, memória bíblica e hermenêutica crítica, evidenciando a necessidade de uma leitura contextualizada capaz de reconhecer tanto o caráter plural da Palestina quanto o uso político da Bíblia. O autor insiste que a teologia cristã não pode mais permanecer inocente diante do impacto concreto de suas categorias simbólicas, sobretudo quando empregadas para justificar práticas de apartheid e limpeza étnica.
No quarto capítulo (p. 122-159), Raheb enfrenta um dos conceitos teológicos mais carregados de implicações políticas: eleição e povo escolhido. A leitura decolonial proposta desafia concepções exclusivistas que naturalizaram privilégios étnicos e políticos com base em categorias bíblicas. O autor argumenta que a eleição não pode ser instrumentalizada para legitimar supremacias, sejam religiosas, nacionais ou raciais, sob pena de converter-se em ideologia opressora. Sua proposta de reinterpretar a eleição como vocação ao serviço e à justiça oferece um quadro teológico alternativo, coerente com a tradição profética, mas criticamente situado no presente.
O epílogo (p. 160-174) reforça o diagnóstico central: a cumplicidade histórica de setores da Igreja e da política ocidental na legitimação do colonialismo de assentamento em Israel. Raheb conclama uma reforma teológica profunda, capaz de reconhecer as estruturas coloniais que se perpetuam por meio de narrativas religiosas aparentemente neutras.
Nesta perspectiva, o livro apresenta contribuições relevantes. Sua contribuição e relevância residem na combinação entre análise histórico-política rigorosa, experiência pessoal e uma teologia contextual que não se furta ao engajamento ético. A obra desconstrói com habilidade as leituras românticas e teologicamente ingênuas da Palestina, oferecendo uma explicação robusta e atualizada da relação entre religião e colonialismo. Contudo, a contundência da argumentação por vezes se apoia em exemplos narrativos individuais, o que pode suscitar questionamentos acerca da generalização das teses apresentadas. Além disso, especialistas nestas questões podem identificar certa ausência de diálogo com autores israelenses críticos do sionismo ou com estudiosos judaicos progressistas, o que enriqueceria o debate.
A obra é uma contribuição indispensável para os estudos bíblicos, teologia política e crítica pós-colonial. Trata-se de um texto provocativo, bem fundamentado e necessário, que desafia pressupostos arraigados na teologia cristã ocidental e demanda uma revisão ética e hermenêutica urgente. Ao oferecer uma perspectiva interna e situada, Raheb rompe o monopólio interpretativo que frequentemente recai sobre a Palestina, reabrindo espaço para uma teologia que brota da experiência concreta de um povo que luta por existência, dignidade e pertencimento.
O escrito de Mitri Raheb não apenas analisa criticamente o papel da teologia no apoio direto ou indireto ao colonialismo de assentamento, mas contribui para a imaginação de um paradigma teológico decolonial capaz de promover justiça, pluralidade e reconciliação. É leitura fundamental para pesquisadores, teólogos e estudiosos que se dedicam à interseção entre Bíblia, política e direitos humanos.
Notas
RAHEB, Mitri. Decolonizar a Palestina: a terra, o povo, a Bíblia. São Paulo: Paulus, 2025, 192 p. ISBN 9788534957960
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