Chile diante de sua dobradiça histórica

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01 Dezembro 2025

Como um espelho da experiência argentina, o candidato de direita faz campanha prometendo um corte de 6 bilhões de dólares e sobe nas pesquisas.

A reportagem é de Karina Micheletto, publicada por Página|12, 30-11-2025. 

E o que restou do estallido no Chile?
Kast.

A dramática dobradiça que ameaça se abrir no país andino nas eleições de 14 de dezembro se expressa nestes dias em um clima social tão explícito que quase pode ser tocado: a insegurança, os estrangeiros, o peso do Estado, certa sensação de estar à beira de um precipício e de ter de assumir sacrifícios, são os temas repetidos pelos telejornais e ecoados nas conversas.

Há mais ingredientes no caldo social que ferve hoje. Um governo de Boric questionado por dentro e por fora por sua inação e pelos casos de corrupção descobertos em diferentes áreas. A frustrada experiência das reformas constitucionais e o triunfo do “não aprovo”. A dissolução das esperanças inéditas despertadas pelo estallido de 2019, cujas demandas permanecem insatisfeitas (o metrô, para citar o exemplo da faísca que detonou tudo, continuou aumentando exponencialmente).

Aquela explosão social parece não ter deixado outro rastro além da queda abrupta no preço do metro quadrado no centro histórico, onde os protestos e as ferozes repressões paralisaram a atividade por meses.

Assim estão as coisas em um Chile que, em muitos sentidos, é percebido como um alarmante espelho da experiência argentina, e que, em quinze dias, decidirá seu futuro em meio a uma extrema polarização.

A vencedora do primeiro turno, a comunista governista Jeannette Jara, não é favorecida pela matemática inicial: o segundo lugar do ultradireitista José Antonio Kast, a surpresa do “outsider” e empresário Franco Parisi em terceiro lugar bem próximo, e a direita tradicional de Evelyn Matthei.

Nesse contexto crucial, a Unidade de Memória e Direitos Humanos do Ministério das Culturas, das Artes e do Patrimônio do Chile organizou o encontro “Mulheres com memória”. Alguns testemunhos ali ouvidos colocaram em preto no branco o que está em jogo nestas eleições tão próximas.

A impunidade à espreita

Comoveu o relato de Gladys Díaz, sobrevivente da sombria Torre de Villa Grimaldi, o ex-centro clandestino de detenção por onde também passou a ex-presidenta Michelle Bachelet. Depois de revisar a forma como foi submetida, durante três meses, dia e noite, a torturas físicas e psicológicas — incluindo o horror de ver seus companheiros sofrerem, como ser levada a presenciar o assassinato a golpes de corrente de um jovem camponês de 25 anos e sua lenta agonia até a morte —, a mulher, com lucidez exemplar e uma fala que se escutava como o testemunho de uma vítima, mas sobretudo como a de um grande quadro político, voltou ao presente.

Kast disse muito claramente que pretende libertar os presos de Punta Peuco (o presídio que abriga condenados por crimes contra a humanidade). Entre eles está meu torturador”, resumiu a jornalista que, em 1974, quando foi sequestrada pela DINA, era diretora do jornal do MIR, El Rebelde.

Consultado sobre o tema — e inclusive sobre o caso do ex-brigadeiro do Exército e membro da DINA, Miguel Krassnoff, um dos genocidas mais emblemáticos do Chile —, o candidato do Partido Republicano declarou recentemente que “se pode fazer uma análise caso a caso” sobre o indulto aos genocidas, “considerando critérios como idade ou saúde mental”.

Pela direita explícita

As coisas parecem bastante claras neste Chile, se escutarmos as declarações dos candidatos.

A reforma trabalhista, por exemplo, é um tema recorrente na campanha. A direita fala abertamente da necessidade de eliminar a indenização por demissão. Esse valor, calculado pelos anos de serviço, tem no Chile um limite máximo de 11 anos — ainda que o trabalhador tenha servido mais tempo. No chamado finiquito, há também um seguro-desemprego que o próprio trabalhador paga mensalmente e que fica depositado numa conta. A proposta de mudança é manter apenas esse cálculo para os desligamentos. É a proposta da direita como forma (oh, surpresa!) de “atrair investimentos”.

A saúde pública é um dos temas centrais da campanha de Jara, que promete uma reforma que permita um acesso mais igualitário. Ela se apoia em um dos poucos avanços profundos do governo de Boric: o celebrado Copago Zero, a política que, em 2022, eliminou os pagamentos que historicamente os chilenos tinham de fazer para qualquer atendimento da rede pública — de urgências a cirurgias e tratamentos longos.

“Você foi ao médico e saiu de graça? Isso se chama Copago Zero, e foi o atual governo que deixou para você. Se não gostou, não se preocupe, com Kast você voltará a pagar particular”, diz a campanha governista. Garantem que, embora não explicite, a proposta de Kast de eliminar 6 bilhões de dólares do gasto público — com a qual, segundo a imprensa, subiu nas pesquisas — implica logicamente esse corte. “Não merecemos este Kastigo”, conclui a campanha.

“Aqui no Chile tudo funciona, mas tudo se paga”, resume um professor de história que complementa seu salário fazendo serviços de transporte. Na universidade pública chilena, um curso “dos baratos”, como Licenciatura em História (a que seu filho escolheu), custa 450 dólares por mês. Se a escolha for medicina, o custo sobe para cerca de 1.100 dólares mensais, mais matrículas.

O salário mínimo no Chile é hoje de 567 dólares. Mais que o dobro dos 225 dólares aos quais Javier Milei reduziu o salário argentino, mas ainda muito distante de permitir que o filho de um trabalhador tenha o luxo de escolher carreira — ou sequer de estudar numa universidade pública.

Mulheres chilenas com memória

Organizado pela Unidade de Cultura, Memória e Direitos Humanos do Ministério das Culturas, com participação da sociedade civil através da fundação Vuelan las Plumas — um espaço dedicado à literatura e aos autores latino-americanos —, o encontro Mulheres com Memória abriu um espaço de contundência particular neste presente chileno.

Junto ao testemunho da ex-detida desaparecida Gladys Díaz — que acaba de publicar seu luminoso livro Aferrada a mi balsa, pensado “para deixar testemunho às novas gerações” — vários projetos e experiências foram compartilhados na bela Biblioteca Municipal de Pudahuel, um dos 56 municípios da região metropolitana.

Um espaço de reconhecimento a lutadoras sociais destacou figuras de mulheres que foram líderes comunitárias e integraram a Vicaría de la Solidaridad durante a resistência à ditadura, entre elas Clara Cano Pinto, Edith Cañas, Hortensia Valenzuela. Incluiu também a mulher que dançou com Sting a “cueca sola”, o baile tradicional chileno que as mulheres de presos desaparecidos passaram a dançar sozinhas como forma de luto e protesto, e que inspirou a canção Ellas bailan solas. Sua sobrinha-neta, presente no encontro, está fazendo um documentário sobre ela.

Houve também um espaço dedicado à Palestina, num país que abriga a terceira maior comunidade palestina fora do mundo árabe. São palestinos católicos que emigraram maciçamente de Jerusalém durante a nakba e se concentraram no Chile. A intervenção artística de Bernardita Nassar, entre poesia, música e teatro, comoveu especialmente.

Num Chile que, visto pelo espelho argentino, não para de comover — neste presente de futuro explícito.

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