17 Novembro 2025
- O primeiro turno eleitoral do domingo passado, 16 de novembro, revelou um país dividido entre a busca por dignidade social e o avanço de um discurso de controle alimentado pelo medo. Com um Parlamento inclinado à direita dura, o Chile enfrenta uma encruzilhada histórica cujo desfecho ultrapassa a eleição presidencial.
- Enquanto o país votava, o papa Leão XIV lembrou que o futuro só será possível se se ouvir o grito dos pobres. Em um Chile ferido pela solidão, pela insegurança e pela fratura social, a Igreja é chamada a reconstruir comunidade e defender a justiça como condição para a paz.
A informação é de Aníbal Pastor N., publicada por Religión Digital, 17-11-2025.
O primeiro turno presidencial deixou o Chile diante de uma fratura profunda entre dois modelos de sociedade: a busca por dignidade social e o desejo de controle diante do medo. Jannette Jara ficou em primeiro lugar com 26,8 por cento, seguida por José Antonio Kast com 23,9 por cento.
Mas a chave para compreender este momento não está apenas na cédula presidencial: está no Parlamento eleito paralelamente (segundo os resultados disponíveis no fechamento desta nota), onde a direita, a ultradireita e o populismo liberal ficaram a dois assentos de alcançar o quórum necessário para modificar a Constituição. É uma correlação de forças inédita desde o retorno à democracia.
Esses resultados expressam um mal-estar que as pessoas conversam e refletem: insegurança cotidiana, medo da criminalidade em bairros e comunidades, precariedade laboral, desigualdade persistente e crescente, e uma desconfiança estrutural em relação às instituições. Embora ainda reste o segundo turno de 14 de dezembro, o país já deixou ver os contornos de um futuro que ainda não consegue definir.
Nesse panorama, a dimensão da fé não é um detalhe menor. Diversos estudos mostram que entre metade e dois terços da população chilena se declaram crentes ou religiosas. Isso significa que a fé continua viva, mas a pertença eclesial enfraqueceu enormemente. Há espiritualidade, mas pouca vida comunitária; há busca de sentido, mas poucas experiências de fraternidade.
Essa desconexão explica, ao menos parcialmente, por que setores do mundo crente oscilaram, nestas eleições, entre opções orientadas para a justiça social e outras centradas na segurança, falou-se até em “cadeia ou morte”, além de um aberto rechaço contra migrantes, mesmo quando não há antecedentes criminais.
Nesse cenário, a Igreja não pode continuar se refugiando na prudência nem se limitar a declarações genéricas. Alguns podem pensar que a recente mensagem dos bispos (“Em tempos de incerteza, sejamos sinal de esperança”), emitida dois dias antes da eleição, chegou tarde. E não lhes falta razão. Mas, se esse tom profético se mantiver ao longo do tempo e ajudar a discernir temas sociais centrais para a população, a hierarquia poderia começar a recuperar a credibilidade perdida pelos abusos. Poderia, mas isso não seria suficiente por si só.
Pode-se dizer que, desde que parte da hierarquia optou por se recolher às sacristias justamente quando o país recuperava a democracia, e depois concentrou sua voz quase exclusivamente no direito à vida no nascimento ou na morte, a Igreja deixou de promover e sustentar comunidades de base por medo da crítica política, enquanto os abusos a corroíam por dentro.
No entanto, a experiência mostra que a vida comunitária é decisiva. Sem comunidade, a fé fica exposta a discursos que prometem certezas rápidas, identidades fechadas e respostas simples para medos profundos. É o resultado de décadas de enfraquecimento pastoral e de um afastamento progressivo entre Igreja, território e sofrimento cotidiano.
Por isso, hoje, enquanto o Chile votava no último domingo, a homilia pronunciada pelo papa Leão XIV ofereceu uma bússola ética inesperadamente precisa para a realidade do país.
O Papa, seguindo a linha de sua exortação apostólica Dilexi te, lembrou que “Deus está do lado dos mais pequenos, do órfão, do estrangeiro e da viúva” e que a Igreja deve ser “mãe dos pobres, lugar de acolhida e de justiça”.
Sua mensagem foi ainda mais direta: “Exorto, portanto, os Chefes de Estado e os Responsáveis das Nações — entendam-se os que governam ou vão governar — a escutar o grito dos mais pobres”. E acrescentou um alerta que interpela especialmente o país: “Não poderá haver paz sem justiça, e os pobres nos recordam isso de muitas maneiras: com sua migração e com seu grito tantas vezes sufocado pelo mito do bem-estar e do progresso que não leva todos em conta e que inclusive esquece muitas criaturas, abandonando-as ao próprio destino”.
Essas palavras descrevem com precisão o clima chileno, e Leão XIV mais uma vez apontou para o coração do problema: não haverá paz sem justiça. E, sem justiça, a segurança, ainda que invocada diariamente, se esvai ou se transforma em violência institucional.
Daqui a trinta dias, 15 milhões de habitantes voltarão às urnas. Mas, vença quem vencer, o país enfrentará um cenário complexo: fragmentação política, cansaço social, irritação acumulada e um Congresso inclinado muito mais a políticas de controle do que de cuidado.
A direção profunda está no que o Papa expôs com tanta clareza: voltar-se aos pobres, recompor vínculos sociais, construir comunidade, romper a solidão estrutural, anunciar um Evangelho que fale de justiça e toque as feridas reais das pessoas. A Igreja tem uma responsabilidade inadiável: recuperar território, acompanhar os medos sem canonizá-los, escutar antes de falar e defender a democracia como espaço onde a dignidade humana é protegida e não negociada.
Para além dos resultados do segundo turno de dezembro, o que está em jogo não é simplesmente um governo, mas a alma social do Chile, e, com ela, as condições mínimas para a paz. Para isso, nas palavras do teólogo chileno Ronaldo Muñoz, trata-se de acompanhar com o Evangelho a vida do povo.
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