Dossiê Fim da escala 6x1: Juventude, precarização e novos horizontes de resistência: O que de novo mostram as lutas pela vida além do trabalho?

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28 Novembro 2025

"É justamente na dimensão tempo que a experiência de trabalho de entregadores de plataforma e de trabalhadores formais do comércio na escala 6x1 permite uma comparação interessante. A crítica central contra a escala 6x1 centra fogo no pouco tempo passível de ser dedicado à vida pessoal: vida além do trabalho é o que exigem".

O artigo é de Natália Cindra e Tiago Magaldi.

Natália Cindra é professora substituta do Departamento de Sociologia da UFRJ e doutora em sociologia pelo PPG em Sociologia e Antropologia da mesma instituição (PPGSA-UFRJ).

Tiago Magaldi é professor substituto do Departamento de Sociologia da UFRJ e pós-doutorando no PPG em Sociologia e Antropologia da mesma instituição (PPGSA-UFRJ).

Este texto integra o Dossiê Fim da escala 6x1 e a redução da jornada de trabalho, organizado pelo Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit)/Unicamp, Site DMT, Remir, GEPT/UNB e FCE/UFRGS e publicado em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

Não é segredo que enfrentamos, no Brasil, anos de "ofensiva neoliberal restauradora" (Marcelino e Galvão, 2020). Ainda que a eleição de Lula para um terceiro mandato em 2022 tenha significado uma desaceleração real da blitzkrieg neoliberal e reacionária representada por Bolsonaro e seu bloco, os tempos são claramente de contenção tática e recuo estratégico das forças progressistas: arredondam-se arestas de bandeiras históricas da esquerda, amplia-se ao limite o arco de alianças.

Essa ofensiva teve início ainda nos anos de 1990, não por acaso a década na qual o tema da precarização das relações de trabalho passou para o centro da pesquisa sociológica. Grande desafio para a imaginação sociológica brasileira: o instrumental analítico acumulado para investigar o padrão fordista não parecia dar conta das novas realidades (Ramalho, 2008). Algo semelhante parece estar ocorrendo no presente momento, e é urgente elaborar a respeito das recentes mudanças.

Desde então, o movimento que caracterizou a década de 1990 seguiu seu curso, culminando com a aprovação da Lei 13.467/2017, a chamada Reforma Trabalhista, no governo golpista de Michel Temer. Mas ele não se esgotou nela: como demonstram os estudos de Sayonara Grillo e coautores (Artur, Grillo e Pessanha, 2023; Grillo e Carelli, 2021), seguimos em um contexto de "reforma trabalhista permanente", com a degradação regular e sistemática do vínculo de trabalho formal.

Como era de se esperar, já começam a surgir reações. mesmo em um contexto de hegemonia conservadora — ou, talvez, justamente por isso —, os resultados precarizantes da desregulamentação das relações de trabalho tem produzido movimentos sociais que podem significar embriões de um novo ciclo de luta dos trabalhadores. É preciso, no entanto, que tais movimentos sejam corretamente analisados nas suas possibilidades e limites, bem como — e é o que tentaremos aqui — nas causas específicas que os fizeram nascer. As duas categorias das quais partiremos, comerciários e trabalhadores plataformizados, são um caso particular desse movimento que, a nosso ver, compartilham, cada uma a seu modo, um fundo crítico comum: uma reivindicação de um tempo além do trabalho. O que isso significa exatamente?

Jovens, negros e precarizados

Comecemos pelo perfil desses trabalhadores.

Em conjunto com o setor de serviços, o comércio representa cerca de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Pós pandemia, tem crescido todos os anos o número de postos de trabalho, significando em 2023 10,5 milhões de pessoas (IBGE, 2024). Não à toa, o setor é comumente entendido como a principal porta de entrada no mercado de trabalho por, na maioria das vezes, não exigir qualificação formal ou treinamento específico.

O comércio é composto por uma grande diversidade de estabelecimentos, que divergem em tamanho, público, sistemática de remuneração (como comissão por vendas, premiações coletivas por metas etc.) e relações de trabalho [3]: lojas familiares de pequeno porte, lojas de luxo de shopping centers e grandes redes internacionais varejistas encontram-se Iado a Iado no setor. No entanto, há importantes características comuns: baixas remunerações, alta rotatividade e, sobretudo, longas jornadas. Os comerciários, mesmo os formais, trabalham em dias e horários que outros trabalhadores não estão trabalhando, como domingos, feriados e, quando há proximidade a datas comemorativas, inclusive de madrugada. Nesse sentido, segundo dados da RAIS/MTE (2023), 91% dos contratos do comércio são para jornadas maiores do que 40h semanais. Considerando que a extensão da jornada de trabalho no comércio muitas vezes não é formalizada propriamente, compreende-se que esse número é subnotificado, sendo ainda maior na prática.

Ainda, considerando que nos grandes centros urbanos os trabalhadores com baixa remuneração moram em regiões periféricas, o tempo de deslocamento é também significativo. Assim, é de se imaginar que o tempo que esses trabalhadores dispõem para trabalhar (considerando deslocamento e o tempo no trabalho) ocupa quase todo o seu dia.

Além disso, os dados recentes chamam atenção sobre a escolaridade. Ainda segundo a RAIS/MTE 2023, cerca de 82% dos comerciários têm pelo menos o Ensino médio completo, média maior que em outros setores, com exceção da indústria e dos profissionais da ciência e das artes. No entanto, mesmo tendo a grande maioria do setor com Ensino Médio completo e extensas jornadas de trabalho, a remuneração média do comércio não supera 1,6 salários-mínimos.

Destaque importante do perfil comerciário é a forte presença de jovens no comércio. Cerca de 42% dos trabalhadores do comércio no Brasil são jovens de até 29 anos e 26% têm de 30 a 39 anos. Ou seja, considerando a categoria de “jovem trabalhador“ atribuída a pessoas inseridas no mercado de trabalho com até 35 anos, podemos concluir que a maioria do setor do comércio é formado por jovens trabalhadores.

Sobre raça/cor, a base de dados do Ministério do Trabalho é insuficiente. Porém, em pesquisa nacional recente sobre a escala 6x1 organizada pelo Observatório do Estado Social Brasileiro e pelo Sindicato dos Comerciários do Rio, a grande maioria dos trabalhadores do comércio é composta por pessoas negras, sendo 43% autodeclaradas pardas e 19% autodeclaradas pretas.

Nesse sentido, podemos perceber que os comerciários brasileiros são compostos por uma maioria de pessoas negras, com baixas remunerações, extensas jornadas de trabalho, Ensino Médio completo sendo, em sua maioria, jovens trabalhadores.

Trata-se de um perfil muito próximo ao dos entregadores plataformizados. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNA-D-C), produzida pelo IBGE (2023), em 2022 a média de idade dos entrega-dores era de 34,2 anos, sendo que 42O/o deles possuíam entre 14 e 29 anos; são, em média, cerca de 5 anos mais jovens que os trabalhadores formais e informais, embora seu contingente não seja constituído apenas de jovens. Eram trabalhadores majoritariamente não-brancos (58%) e que apresenta-ram mais anos de estudos que outros trabalhadores informais (11,6 contra 10,4 anos). Por fim, 42% afirmam serem chefes de família.

Quanto às características comparadas das atividades propriamente ditas, vejamos a Tabela 1 abaixo:

Quanto às horas trabalhadas, nota-se que os entregadores trabalham, em média, 44,4 horas, bem acima de trabalhadores informais (35 horas) e formais (40,6 horas). Essa tendência ao alongamento da jornada se mostra também quando comparamos o percentual daqueles que declararam traba-lhar 60 horas semanais ou mais: 19% para entregadores, 6% para informais e 6O/o para formais. Em compensação, essa superjornada remunera mais em média os entregadores que os informais, e com uma grande diferença: R$ 2.525,00 para entregadores e R$ 1.849,00 os informais; o trabalho formal em geral segue sendo mais bem remunerado, com uma média de R$ 3.591,00. No entanto, se compararmos a proporção de renda por horas trabalhadas, as medidas se aproximam: a de entregadores é de 13,1 reais por hora trabalhada, enquanto a dos trabalhadores informais é de 12,2 reais. Isto é, os trabalhadores de plataforma recebem mais, mas trabalham muito mais horas. Novamente, aqui, o trabalho formal apresenta a melhor marca: 20,4 reais por hora trabalhada, em média.

Em suma, temos nos entregadores trabalhadores mais jovens que a média do mercado de trabalho formal e informal; quase metade de chefes de família, não-brancos em sua maioria e que trabalham longas jornadas, com quase 20% deles declarando trabalhar 60 horas ou mais por semana. Essa jornada, como ocorre também com os trabalhadores formais no regime 6x1, na maioria das vezes engloba o trabalho nos finais de semana, quando a demanda por entrega de refeições aumenta significativamente.

Assim, podemos perceber que o perfil geral dos entregadores subordinados a plataformas e dos comerciários têm muitas aproximações. Para além de proximidades demográficas, ambas as categorias trabalham longamente e em horários e dias em que outras categorias descansam. O que a experiência desse tipo de trabalho tem produzido?

A luta pelo tempo e pela remuneração digna: o VAT e os Breques

Ainda hoje, a principal bandeira de luta que mobiliza os trabalhadores e trabalhadoras do comércio é a redução de jornada de trabalho, ou, em caso de ter que trabalhar mais dias, remuneração apropriada. Nesse sentido, podemos perceber movimentos externos à estrutura sindical tradicional, mas que se relacionam com ela. O caso da greve nos supermercados Mundial e do VAT — Vida Além do Trabalho é exemplar a esse respeito.

Em 2017, logo após o decreto de Michel Temer que tornou supermercados serviços essenciais, a direção dos supermercados Mundial na cidade do Rio decidiu não remunerar os domingos e feriados trabalhados como horas extras, sem nenhum aviso prévio aos trabalhadores ou à representação sindical. Ao receberem o pagamento, as trabalhadoras dos caixas do supermercado per-ceberam a discrepância entre o valor pago do que era esperado e decidiram parar. Através de grupos de WhatsApp, a revolta rapidamente se espalhou e diversas plantas do supermercado mundial na cidade do Rio que precisaram fechar as portas naquele dia. No dia seguinte, o Sindicato dos Comerciários do Rio (SEC-RJ), à época dirigido por um jovem trabalhador e por uma caixa de supermercado, se incorporou à luta. As paralisações duraram alguns dias e compuseram um ciclo grevista e contestatório que estava em cena naquela década4. A greve foi histórica para a categoria e, apesar de algumas demissões ilegais, conquistou novos acordos coletivos, observou o surgimento de novas lideranças e um crescimento da taxa de sindicalização do segmento.

Ciais recentemente, outro movimento externo à estrutura sindical tradicional chamou atenção: o VAT, Movimento Vida Além do Trabalho. Ele surge, em um primeiro momento, como uma campanha impulsionada por um trabalhador do comércio por meio das redes sociais: em setembro de 2023, Rick Azevedo, após 10 anos trabalhando no comércio formal em regime de escala 6x1, decide fazer um vídeo-denúncia no TikTok. O que ele não esperava é que esse vídeo viralizasse e tivesse relevância nacional. Assim, diferentemente de organizações e movimentos "clássicos" que surgiram através da ação origina-riamente coletiva, o VAT surge como algo individual "viral". No ano seguinte, Azevedo é eleito vereador do Rio de Janeiro; no mesmo ano, a Deputada Federal Erika Hilton leva a bandeira de luta para a pauta do Congresso Nacional, alimentando ainda mais a discussão pública sobre o tema.

Em ambos os casos é interessante perceber a relação de aproximação e afastamento do Sindicato como organização tradicional de representação dos trabalhadores. A relação entre velhas organizações e novas formas de mobilização geram novos repertórios para antigas lutas, como argumentam McAdam, Tarrow e Tilly (2009, p. 25):

Os repertórios existentes corporificam uma tensão criativa entre inovação e persistência, refletindo suas lógicas instrumental e expressiva muito dife-rentes. A eficácia instrumental de um repertório deriva basicamente de sua novidade, de sua habilidade [...]. O uso repetido do mesmo repertório diminui sua eficácia instrumental e, dessa forma, encoraja a inovação tática.

Nesse sentido, mesmo que historicamente a luta pela redução da jornada de trabalho esteja presente na ação sindical, e que os sindicatos e centrais tenham se posicionado veementemente contra a Reforma Trabalhista, foi no exemplo prático da redução salarial para as trabalhadoras do Mundial e nas inovações de comunicação do VAT que essas bandeiras tiveram maior capacidade de mobilização, tanto na categoria como na opinião pública.

Não é trivial notar que a dimensão do tempo se tornou central para o trabalhador comerciário, a tal ponto que essa indignação específica se materializou em um movimento político particular. O caso dos entregadores su-bordinados a plataformas também sublinha essa dimensão, mas por outro caminho: aqui, o modo como o tempo é vivido no trabalho é, em grande medida, elogiado em comparação com outras experiências de trabalho. O que isso nos diz?

Embora as mobilizações dos Breques dos Apps venham apresentando diversas inovações táticas, sobretudo no que tange ao uso de aplicativos para mobilizar, como mostra Santana (2023), o conteúdo das reivindicações segue sem maiores consensos para além do aumento do valor pago por entrega. Deixa-se de Iado, por ser “polêmica” na categoria, a exigência de reconhecimento do vínculo de trabalho via CLT.

Em pesquisas que vêm sendo realizadas nas cidades de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília (Festi et AI., 2024; Fioravanti, Rangel e Rizek, 2024; Ma-galdi et AI., 2024; Pires e Perin, 2023), um ponto vem sendo recorrentemente apresentado pelos entregadores como digno de elogio do trabalho plataformizado: a relativa autonomia na organização da jornada de trabalho, de seu tempo. Esse é um dos motivos (existem outros) que freiam a pretensão de reconhecimento do vínculo formal.

Nas últimas duas décadas a literatura sociológica vem, paralelamente ao registro dos impactos precarizantes concretos da flexibilização da regulação trabalhista, elaborando a respeito das mudanças ideológicas que acompa-nham esse processo (Lima, 2010, 2024; Silva, 2002). Partindo dessas elabo-rações, a falta de consenso parece significar a continuidade e o adensamento do processo de reorganização dos termos da dominação do trabalho no país, cujo norte ideológico passaria a ser o par empreendedorismo/empregabilida-de, antagônico à fórmula fordista do trabalho “livre, mas protegido”. Exem-plo mais bem acabado da desregulamentação de massa promovida pelas plataformas, a reorganização das atividades de entrega por essas empresas parece ter contribuído para “entornar o caldo” da legitimidade do trabalho regulado no seio desses trabalhadores, em seu lugar entrando a legitimidade das relações de trabalho jUst-in-times. A quantidade se torna qualidade: a recorrente experiência de vínculos de trabalho formal precarizados parece estar tendo o condão de produzir uma crítica ao modelo em geral por parte desses trabalhadores.

Evidentemente, tal processo não se dá apenas por meio de um giro ideológico, pela simples imposição de uma nova “mentalidade”, mas se encontra diretamente ligada ao processo de desconstrução concreta das proteções ao trabalho no Brasil das últimas décadas. Os exemplos dessa desconstrução são inúmeros, mas podemos nos deter no próprio salário-mínimo: embora não tenha sofrido perdas depois de 2017, ele foi constitucionalmente firmado enquanto um valor “capaz de atender a suas [do trabalhador ou trabalhadora] necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, segundo o art. 7 , inciso IV da Constituição de 1988. Seu valor no corrente ano (R$ 1.518,00) representa um quinto do necessário para cumprir esse preceito, segundo o DIEESE (2025). mesmo os trabalhadores formalizados do comércio perderam, sobretudo ao longo das últimas três décadas, as seguranças e benefícios prometidos pela carteira de trabalho. Na questão da remuneração, por exemplo, a forte flexibilização dos salários de vendedores, construídos por vezes exclusivamente sobre o valor de comissões (Magaldi, 2022), é exemplo cristalino dis-so. Não seria a escala 6x1 outro exemplo? Em um contexto de precarização como regra universal, a formalização deixa de ser percebida como garantia concreta de seguridade ou qualidade de vida no trabalho. Isso poderia explicar a grande resistência dos trabalhadores plataformizados a exigir a formalização de seu vínculo de emprego: a promessa getulista de trabalho livre, mas protegido, perdeu seu efeito.

Considerações finais

É justamente na dimensão tempo que a experiência de trabalho de entregadores de plataforma e de trabalhadores formais do comércio na escala 6x1 permite uma comparação interessante. A crítica central contra a escala 6x1 centra fogo no pouco tempo passível de ser dedicado à vida pessoal: vida além do trabalho é o que exigem. Essa reivindicação traz implícita a afirmação de que a vida no trabalho é menos vida que a que está além dele, aquela que começa quando o trabalho acaba; isto é, que o trabalho assalariado não é propriamente vida: está radicalmente separado da vida que vale a pena. E mais: que a regulação do trabalho não significa necessariamente uma relação de trabalho digna. No caso dos comerciários, a regulamentação recente não significou melhora nas condições de trabalho.

Assim, parece ser justamente a percepção de um insuflar de uma vida “além do trabalho“ no próprio interior da jornada de trabalho que produz certo engajamento dos entregadores no trabalho de plataforma. A relativa autonomia na organização de seu tempo, embora de margem bastante reduzida, é, como vem apontando a literatura mais recente, muitíssimo valorizada pelos entregadores justamente porque permite que a sua vida além do trabalho se insira nas frestas da sua vida aquém do trabalho: uma relativa margem de manobra na escolha dos dias de “folga“ (não remunerada), a decisão sobre quantas horas trabalhar em determinado dia, a interrupção da jornada para resolver questões da vida pessoal etc. têm sido interpretados como uma reapropriação do tempo dos trabalhadores — mesmo que feita no interior de uma relação subordinada.

Evidentemente, isso não significa afirmar uma emancipação do tempo do trabalhador via plataformas, em qualquer aspecto; mas aponta para um elemento crítico comum que parece dar o tom das expectativas do trabalhador jovem brasileiro, seja comerciário, seja plataformizado: a exigência de reapropriação do tempo está na ordem do dia, seja reduzindo a jornada (caso da crítica à escala 6x1), seja tornando-a mais aderente ao ritmo da vida além do trabalho (caso da plataformização). O trabalho formal inflexível e precário não se torna alternativa atraente para nova geração de trabalhadores.

Nesse sentido, propostas que visem tornar mais porosa a jornada, sem intensificá-la e sem reduzir a remuneração, teriam grande adesão entre esses trabalhadores e, supomos, entre os trabalhadores jovens em geral: uma jornada que permita ao trabalhador inserir sua vida nas Arestas do trabalho não necessariamente está em contradição com uma crítica da exploração do trabalho. A limitação da jornada de trabalho — e esse parece ser o consenso construído entre os trabalhadores plataformizados — não implica necessariamente que esta seja cumprida em bloco; ela pode ser limitada e Flexível. Um just-in-time invertido, puxado pelas demandas do tempo de vida; no qual o trabalho se equilibra com a vida do trabalhador, e não o contrário. Não parece ser esse, aliás, o motivo pelo qual notamos a defesa intransigente do home-office por indivíduos de classe média alocados em profissões de maior qualificação, intelectuais dentre eles? Um novo pacto de classes parece começar a urgir, e no centro dele percebemos uma renegociação da distribuição do tempo aquém do trabalho socialmente legítimo.

Referências

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