21 Setembro 2016
“[Os] Trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que […] gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes.”
A reportagem é de Piero Locatelli, publicada por Repórter Brasil, 19-09-2016.
O comentário acima parece ter sido feito há mais de 100 anos, nos primórdios do mercado de trabalho assalariado no Brasil, mas foi proferido por uma juíza do Trabalho em Santa Catarina, neste ano.
A juíza Herika Machado da Silveira Fischborn se referia a 156 trabalhadores que não recebiam salários há pelos menos dois meses e tiveram seus documentos retidos pelos donos da fazenda onde colhiam maçãs, em abril de 2010.
Por lei, o empregador é obrigado a devolver a carteira de trabalho de um funcionário em até 48 horas após a assinatura do documento. Porém, segundo a juíza, a infração resultou em um suposto “benefício à sociedade”.
“O fato de reter a CTPS [carteira de trabalho] somente causa, na realidade, benefício à sociedade. É cruel isto afirmar, mas é verdadeiro. Vive-se, na região serrana, situação limítrofe quanto a este tipo de mão de obra resgatada pelos auditores fiscais do trabalho que, na realidade, causa dano à sociedade,” escreveu a juíza na sentença.
Parede riscada por funcionários da fazenda de maçã. Foto: SRTE/SC
Sem dinheiro, documentos e transporte, os trabalhadores não conseguiam voltar para suas casas no interior do Rio Grande do Sul, de onde haviam saído com promessas de emprego. Eles sequer conseguiam chegar à cidade mais próxima, São Joaquim, a 40 quilômetros da fazenda onde trabalhavam, por estrada de chão.
Diante do caso, auditores fiscais do trabalho constataram o cerceamento de liberdade, suficiente para caracterizar trabalho análogo ao escravo, como define o artigo 149 do Código Penal. A juíza, porém, anulou parte dos autos de infração registrados pelos auditores. Segundo a magistrada, eles agiram “de forma cruel” ao permitir que os trabalhadores voltassem “ao ciclo vicioso de trabalho inadequado, vício, bebida, drogas, crack, crime e Estado passando a mão na cabeça”.
A magistrada não só anulou parte da operação dos auditores fiscais do trabalho, mas também pediu que a Polícia Federal os investigasse. Segundo Fischborn, eles “praticaram crime” porque “forçaram, inventaram e criaram fatos inexistentes”.
Ao negar os problemas encontrados no local, a juíza citou o procurador Marcelo D’Ambroso, que, durante a fiscalização, questionou a existência de trabalho escravo na fazenda. O procurador, hoje juiz do trabalho, teria dito que “não foi constatada a presença de barracos de lona ou choupanas para acomodação dos trabalhadores, uma das características típicas do trabalho escravo contemporâneo”. Procurado, D’Ambroso não atendeu ao pedido de entrevista da Repórter Brasil.
As cenas descritas pelos auditores fiscais e as fotografias tiradas na fazenda, porém, mostram que os alojamentos não se encaixam nos padrões mínimos determina dos pelo Ministério do Trabalho, que devem nortear o trabalho dos auditores nessas fiscalizações.
Colchões não tinham cobertores e pregos das estavam aparentes. Foto: SRTE/SC
Em uma das regiões mais frias do Brasil, os trabalhadores da fazenda moravam em um barracão de alvenaria, em camas com pregos expostos, sem lençóis ou cobertores, e em colchões de espumas desgastadas. Segundo a descrição feita à época, “os banheiros não possuíam portas e eram integrados aos quartos, fazendo com que a água do banho escorresse por debaixo das camas e aumentasse a umidade do local.” Ali, também não existiam sequer vassouras e outros equipamentos de limpeza.
Lilian Rezende, a auditora fiscal que coordenou a ação, diz que não inventou fatos, e que sequer foi ouvida pela juíza, que teria extrapolado as suas funções. “[É um processo] que desde o início me condena de pronto, sem permitir minha defesa.”
Neste mês de setembro, a auditora levou o caso – cuja sentença foi proferida em março – ao Conselho Nacional da Justiça, responsável pela supervisão dos juízes em todo o país, e à Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.
Armários onde trabalhadores deveriam guardar seus pertences. Foto: SRTE/SC
Em sua defesa, a auditora lembra que o dono da fazenda foi governador de Santa Catarina e deputado federal em 1988. Henrique Córdova esteve à frente do governo entre 1982 a 1983, pelo então Partido Democrático Social (PDS), criado a partir de ex-integrantes da Arena, partido de sustentação da ditadura militar.
O empregador hoje é defendido por Ângela Ribeiro, ex-juíza da Justiça do Trabalho em Santa Catarina.
Procurada, a advogada não respondeu às ligações e e-mails da reportagem. A assessoria de imprensa do Tribunal Regional do Trabalho também afirmou que a juíza Herika Fischborn não irá se manifestar porque “ainda não foi notificada pelo Conselho Nacional de Justiça”.
A decisão de Herika não é a primeira a favor do empregador. O trabalho de fiscalização já havia sido derrubado por outra juíza do trabalho de Santa Catarina, em 2012. Na ocasião, a magistrada anulou a caracterização de trabalho análogo ao de escravo.
Trabalhadores em fila para serem atendidos na fazenda. Foto: SRTE/SC
O caso chegou ao Tribunal Superior de Trabalho, que devolveu o processo novamente para as instâncias inferiores, em Santa Catarina. O tribunal pediu que os 24 problemas encontrados pelos auditores fossem analisados separadamente, e que os juízes não entrassem no mérito do que definia ou não o trabalho escravo.
Enquanto isso, diante dessa sequência de decisões judiciais, o empregador não responderá na Justiça pelo crime de redução de pessoas ao trabalho análogo de escravo. Os auditores fiscais do trabalho, por sua vez, são os únicos que continuam a ter que se defender nesse caso.
Correção às 18:12 de 19/09: A advogada Ângela Ribeiro é ex-juíza do Trabalho em Santa Catarina. A reportagem havia informado incorretamente que Ângela Ribeiro havia sido desembargadora da Justiça do Trabalho.
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Juíza diz que trabalhadores são “viciados” e que reter seus documentos “causa bem à sociedade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU