A megachacina organizada pelo governo bolsonarista de Claudio Castro buscava reinserir a extrema-direita, na arena eleitoral, por meio de uma pauta pretensamente positiva. Retornando a história dos golpes de Estado a patamares de guerra, o bolsonarismo segue apostando na morte como método de revitalização. Assim, atualiza o terror, em marcos estatais.
A reportagem é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 11-11-2025.
Tendo o motor da luta de classe como categoria analítica central, Clarisse Gurgel, cientista política e professora do Departamento de Ciências Sociais, da UNIRIO, aponta para o que chamaremos de dramaturgia do horror, como a que se exibiu e se experimentou, nas operações policiais, que resultaram em mais de 121 mortos, no complexo de favelas da Penha-Alemão.
A autora de Ação performática: análise institucional e luta de classes resgata a noção marxiana de alienação, como fenômeno que descreve de forma mais consequente os acontecimentos macabros do dia 28.
“É comum a caracterização de monstros àqueles que são vítimas cotidianas das três formas de alienação que conhecemos – a alienação do fruto do trabalho - a incapacidade que temos de possuir os serviços e mercadorias que produzimos; a alienação da própria atividade laboral - distante dos desejos das pessoas, que contam as horas para largar o expediente; a alienação do outro -, a solidão, o desalento, em um mundo baseado na competição”
Clarisse Gurgel, com seu conceito de “ação performática” como simulação de radicalidade, dirige-se, em especial, às esquerdas, que, segundo ela, na busca por fugir dos estigmas de burocratizadas, acabam por se burocratizar mais, afastando-se de suas bases sociais. Esta espécie de perversão política seria expressão radical de um processo de formação econômica-social baseado em concepções restritas de democracia, como se dá em solo brasileiro.
Para Clarisse, discussões como uma política de segurança pública federalizada ou o PL Antifacção tornam-se ações continuadas de um poder público empenhado em alienar as massas de outras formas de democracia.
“O governo do Rio de Janeiro, na figura de Claudio Castro, simula uma ausência completa do Estado. O crime seria, portanto, exclusivo de dois lugares: a favela e o presídio. Por sua vez, o asfalto, as coberturas, as repartições públicas, as parcerias público-privadas, os gabinetes e as boutiques não teriam qualquer relação com a organização do crime. Ao mesmo tempo, (este mesmo Estado) simula uma hiper-presença tática, em uma operação físico-militar, quando não atua, efetivamente, para a eliminação dos esquemas que se erguem por via da exploração desta força de trabalho mais marginal”, refletiu Gurgel.
Em outras palavras, sua percepção dialoga com o conceito de necropolítica, bastante em voga para definir Estados que operam a repressão não apenas pela sua crônica incapacidade de incluir os excluídos, mas também como uma lógica de reprodução econômica. Daí sua conclusão de que não há “estado paralelo” ou “estado ausente”. O que há é anuência a um estado de coisas que, propositalmente, empurra parcelas dos seres descartáveis para o capitalismo dos negócios ilícitos.
“Aqueles que não têm outro caminho que não seja vender sua força de trabalho para o mercado mais rentável em sua área, que é a da venda de cocaína, de maconha e afins, como forma de fazer circular mercadorias como armas e afins, a preços mais rentáveis para seus grandes investidores, precisam morrer, vez ou outra, para que a própria venda de cocaína, maconha e afins justifique a venda de armas e afins. Do ponto de vista político, o ganho também é certo. O medo que se instala, nessas mesmas áreas, após esses massacres, compromete qualquer possibilidade de efetiva organização social”.
Dessa forma, Clarisse Gurgel critica os ditos “debates técnicos” de segurança pública, já fechados em uma lógica apartada dos desafios que envolvem forjar caminhos para uma democracia mais direta e participativa.
“Em se tratando de segurança pública, a harmonia envolve bem estar em todos os campos da vida cotidiana, do lazer até o que comer. E não se trata de quantidade de lazer ou de acesso à mercadoria. Mas acesso, acima de tudo, ao que fazer para melhorarmos a vida em sociedade. De tal modo que a melhor forma de ocupar o morro é ocupando-o com a tarefa de ocupá-lo, o que envolve duas coisas: politização do povo e devolução da riqueza para o povo. Algo que fica quase impossível com projetos de país delimitados por Teto de Gastos e Regimes de Recuperação Fiscal”, afirmou.
Como o conceito de Ação Performática pode nos ajudar a analisar a operação militar, ocorrida no dia 28 de outubro, nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro?
O conceito tem me conduzido a refletir sobre a dialética entre ausência e presença. Alguns estudiosos andaram exaltando a indistinção entre presença e ausência, proporcionada pela dita pós-modernidade. Assim, a impossibilidade ou a dificuldade de estar em um determinado lugar é solucionada, por esses pensadores, pelo avanço tecnológico, como videoconferências, passeios virtuais, reuniões e aulas online, que viabilizariam a presença em lugares, mesmo estando ausente. Na chamada “era informacional”, o que vemos, porém, são inversões típicas daquelas denunciadas por Marx: tamanho desencontro entre avanço tecnológico e atraso nas relações sociais explica um tempo em que um alerta de golpe é o próprio golpe e em que uma propaganda de um aplicativo atrai demanda de acordo com o nível de sua inconveniência, o desejo por clicar no banner da publicidade tem a mesma proporção de sua repulsa.
O que ocorreu, no Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro, antes de tudo, não foi um espetáculo. É guerra de movimento, eliminação direta, morte de verdade. Também não é performance. Não se tratou de ação efêmera, sem desdobramentos. Ao contrário. Possui um poder enorme de marcar uma massa, residente próxima ou do entorno. O que se dá, no entanto, é uma simulação de que se trata de uma intervenção disruptiva – que está rompendo com o ordinário – mas que, ao contrário, é constância de uma política que atualiza o ordinário. Um presente duradouro que recicla sua racionalidade, a dita normalidade, através de atos, aparentemente, isolados. Neste sentido, é o contrário de ação performática, concentrada em um tempo presente, sem desdobramento. O que temos, curiosamente, é o uso estruturado do terror, este, sim, de natureza performática, razão pela qual é tática mais comum àqueles que não detém poder efetivo e está destituído de outras formas de luta.
O terror tem, justamente, esta singularidade da ação performática, tal como identificada por Lênin: ele é ato isolado, que acaba por reforçar a ordem que diz combater. O que caracteriza o terrorismo não é uma subordinação instrumental à estratégia de tomada do poder, mas, sim, sua temporalidade extraordinária. De tal modo, está correto dizer que o que o comandante da polícia civil do Rio de Janeiro denomina de “elemento surpresa” é esta temporalidade extraordinária do terror, concentrado em um dia, que, historicamente, provou atualizar o estado de coisas. Assim, a “megaoperação”, ao mesmo tempo em que simula ausência de estrutura, onde há muita estrutura – um exército de miseráveis, na mata, na favela, de modo precário, mas coordenado por agentes, na cobertura da Zona Sul do Rio -, simula presença de estrutura, onde há pouca estrutura – os mesmos miseráveis improvisando, sendo tratados como grandes lideranças. Uma inversão, típica, do fenômeno da ideologia.
A polícia do Rio, com seu “elemento surpresa”, institui o terror. Por isto, acertam aqueles que falam de terror de Estado. O governo do Rio de Janeiro, na figura de Claudio Castro, simula uma ausência completa do Estado, nas dinâmicas criminosas do morro. O crime seria, portanto, exclusivo de dois lugares: a favela e o presídio. Por sua vez, o asfalto, as coberturas, as repartições públicas, as parcerias público-privadas, os gabinetes e as boutiques não teriam qualquer relação com a estrutura orgânica do chamado “crime organizado”. Ao mesmo tempo, simula uma hiper-presença tática, em uma operação físico-militar, quando não atua, efetivamente, para a eliminação dos esquemas que se erguem por via da exploração desta força de trabalho marginal.
Neste sentido, podemos afirmar que não são necessários “especialistas em violência” para compreendermos a perversão presente nos anseios por “melhorar a vida dos mais vulneráveis”. Frase impossível, que carrega termos disjuntos. O necessário é superar a vulnerabilidade, oriunda de nada mais do que a exploração do trabalho. Este velho crime organizado chamado exploração.
Como tal exploração pode ser compreendida como este crime organizado?
Precisamos, antes de tudo, registrar que, no Brasil, não está prevista, em nosso Código Penal, a pena de morte. Seja suspeito, seja policial, qualquer sujeito, em nosso país, possui o direito à ampla defesa e ao devido processo legal. Não são raras as vezes em que este direito, tão basilar, é violado. Assim foi na prisão do presidente Lula, assim tem sido com muitos, que trabalham a vida toda e são apartados de toda a riqueza que produzem. E aí estamos falando de todo tipo de trabalho, em sua maioria, hoje, do setor de serviços e comércio, onde se inclui a venda, ainda que ilegal, de drogas.
Quando, porém, viola-se o direito à ampla defesa, em um regime pretensamente democrático e de direito, com morte sumária, o que temos é uma economia da violência, a guerra como politica por outros meios e o deslocamento deste sujeito, apto a morrer, do conjunto de “seres do bem”. E aí se dá um processo de desumanização, não no sentido edificante de humano, como um ser puro e bom. A desumanização passa por, justamente, o contrário. Desumanizamos porque ignoramos o fato de que a prática de ser humano é atravessada pelas condições materiais de existência. Não há, portanto, um tipo humano puro. O que há é um tipo impuro de tratar o humano, desumanizando-o, alienando-o de tudo o que há de potente nele: sua capacidade criadora, seu espírito gregário, sua base na alteridade.
Não à toa, é comum a caracterização de monstros àqueles que são vítimas cotidianas das três formas de alienação que conhecemos – a alienação do fruto do trabalho - a incapacidade que temos de possuir os serviços e mercadorias que produzimos -, a alienação da própria atividade laboral - distante dos desejos das pessoas, que contam as horas para largar o expediente -, a alienação do outro -, a solidão, o desalento, em um mundo baseado na competição. Sintetizar, em uma representação anti-humana, essa vítima da alienação, obedece a uma razão cínica, pois todos sabem que este “monstro” é uma criatura, tem um criador, que o mantém à margem.
E aí precisamos compreender o que há de singular na noção de “margem”, que não envolve, apenas, o lugar de moradia. Nenhuma margem está fora do espaço. A margem contorna, dá forma. Neste sentido, todo e qualquer espaço social é produzido por estes que estão, geralmente, na margem. São os que formam o espaço. Por isto, trata-se de “espaços de alienação”, não de exclusão, pois são lugares habitados por trabalhadores sem acesso à cidade, à vida social. Sabemos que as palavras não apenas descrevem fenômenos, mas são demandas, também. De modo que, quando falamos de “espaços de alienação”, estamos reivindicando acesso ao que se produz, a tudo que envolve potência humana.
Por sua vez, quando falamos de “exclusão”, caímos na armadilha de querer nos incluir em um esquema de vida parasitário, aquilo que é o maior dos crimes organizados, que é um sistema, um modo de vida, fundado na apropriação individual da riqueza coletivamente produzida. Por esta razão, não faz sentido algum falar em “melhorar as condições dos mais vulneráveis”. Para melhorar é preciso, simplesmente, que deixem de ser vulneráveis. Para isto, é necessário superar um sistema baseado na alienação.
Neste sentido, o que acha do discurso do governador Claudio Castro, de que estaríamos diante de um “Estado paralelo”, definição até banalizada para se referir a territórios de “presença-ausente” estatal?
Já se tem debatido a necessidade de intervenção na estrutura que dá sustentação ao comércio varejista, nas favelas, seja de drogas, seja de armas, conhecedores que somos da ineficácia de eliminar os vendedores nos balcões, quando as indústrias permanecem operando. Assim, é fantasioso chamar aqueles que correram para a mata de “lideranças”. Os líderes, pelo próprio grau de organização ressaltado pelo governador Claudio Castro, são organizados. No sentido forte do termo “organizado”. Não se tratam de homens fantasiados de polícia, vestidos de paint-ball, correndo pelo mato, rumo a execuções e torturas. Trata-se de magnatas, que, mais do que paralelos, atuam, organicamente, com o Poder Oficial, o Poder Central. Cláudio Castro afirma que há um Estado paralelo, cada vez mais forte, no Rio de Janeiro, sendo membro do executivo estadual, há mais de 15 anos.
Precisamos atentar que, quando Lênin defendeu “todo poder aos sovietes”, o destaque era para esses organismos especiais, forjados na luta cotidiana de diversos setores da classe trabalhadora, como se deu, singularmente, na Rússia, com os sovietes, mas, também, para a natureza do poder, em que não é possível uma dualidade, a não ser transitória. Só existe um poder, passível de ser disputado e extinto; apenas, um. Se Claudio Castro diz que há um poder paralelo é porque diz que governa em conjunto com o crime, pois é mais que evidente que isto que ele chama de paralelo não envolve nenhuma força que busca a tomada do aparelho de Estado. Estamos tratando de forças que já ocupam a estrutura de poder. Basta ver fotos do próprio governador com figuras conhecidas do mercado ilegal de armas, drogas e afins.
Castro diz ter ensaiado a operação por um ano, tendo resultado em 4 policiais mortos, um deles recém empossado na corporação, com um delegado gravemente ferido, dezenas de moradores baleados e 117 mortos, se nos baseamos nos números oficiais. Estes últimos são tratados como alvos premeditados de sessões de tortura e de execução sumária. Toda esta cena real de “contenção” retroalimenta-se por uma onda de criminalização e marginalização da América Latina. O que Trump está fazendo com a Venezuela e Colômbia, eliminando embarcações, sob a alegação de se tratar de trânsito de traficantes, é nada mais do que os bastidores de ensaios para a suspensão das regras em territórios destinados a chacinas e golpes eleitorais.
Termos como narcoterroristas ou narcomilitantes dão mais do que provas do lugar que, há um tempo, a política tem ocupado. O lugar da política de criminalização da política. Os dois termos vinculam a venda de narcóticos a formas de ação política. Terror e Militância.
Está em gestão, por trás do discurso moralista de combate ao crime, pouco contestável em momentos de comoção, novas formas de criminalizar a militância?
Se formos atentar, e esta já foi uma crítica à dita esquerda tradicional, o termo “militante” tem mesmo radical de militar. Esta semelhança só reforça a base filosófica da militância, a noção de que se trata de uma luta, em que se constitui um exército. A diferença está na terminação. Um passa uma ideia de imanência, horizontalidade, constância – “ante”, “ância” – o que pode, também, nos remeter à ânsia, se formos para seu fonema. O militar tem sua terminação no infinitivo, como um verbo destituído de sujeito. O mais curioso é que a rejeição a esta vinculação com o exército, com uma força armada, tem como pano de fundo uma rejeição à disciplina. Em uma compreensão de que a conquista da liberdade se dá por uma forma de lutar já liberta, um capricho pequeno-burguês, na onda, para dialogarmos com o vocabulário em voga, da subjetividade neoliberal-militante.
E aí a disciplina se torna atributo do exército de miseráveis, a serviço do capital, seja na ilegalidade, seja na legalidade. Do mesmo modo, a disciplina está na igreja, assim como existe, na vida de uma classe média consciente, dedicada a fazer exercícios físicos regulares, em busca do corpo perfeito, em sua disciplina do suco verde e do aeróbico. Nesta direção, não podemos deixar de fazer nossa autocrítica, exercício vital a toda organização que se diz de esquerda. A criminalização da política se dá pela suspensão de direitos nos espaços da prática militante, mas, também, pela própria prática militante, recriminável. A esquerda não pode atuar de maneira pontual, concentrada no período eleitoral, nesses espaços em que, a cada dois estabelecimentos, um é da igreja neopentecostal. Se formos falar de “recuperação de território”, a tarefa é da esquerda, que precisa recuperar o território dos que trabalham. Porque não é rede social que forma consciência, mas ocupação face-a-face, cotidiana, nas favelas, nos espaços de moradia e de trabalho.
Enquanto muitos acreditam que a forma de criar consciências é por algoritmos, em que se perpetua como dádiva o isolamento social que nos foi imposto, na pandemia, figuras como Trump exportam centenas de pastores neopentecostais para as periferias da periferia do mundo. O que eles fazem, com essas medidas, é organizar desorganizando. O trabalho, portanto, é cultural. Tarefa, hoje, preenchida por pastores neopentecostais, uma ligação com o transcendente, vinculada a uma ligação com o cotidiano, em que serviços públicos são substituídos por projetos da igreja e a propriedade está acima de tudo. A desordem já é espiritual, mas é uma tripla ligação, tem um poder de liga enorme. O que a esquerda precisa é disputar esta capacidade de organização cotidiana, de ligação, aparentemente inexistente, mas que existe porque não há vazio na política. A esquerda precisa recuperar os territórios populares com trabalho cotidiano, organicidade, presença real, muito além das relações monetarizadas de redes sociais que vêm capturando a juventude.
Quem está organizando é a direita? As facções seriam o que?
Em uma reportagem na TV acerca da operação militar de Cláudio Castro nas favelas, deu-se foco na pichação, na serra da misericórdia, que sintetizava uma narrativa perversa: “organizar o ódio”. Como se aquela pichação fosse metáfora para o que denominam de bandido. Estes termos “bandido”, “facção” são oriundos de muitos processos de unificação nacional. Basta lembrar que era assim que os federalistas, norte-americanos que muito influenciaram os liberais da “independência” do Brasil, chamavam os resistentes e vítimas da colonização nos EUA. Bandido é quem anda em bando. Em grupo. Nomear este grupo como “facção” é caracterizar como parte estranha, estrangeira. A solução encontrada pelos federalistas foi a de “filtrar” esses grupos, essas mesmas facções, reduzindo o número desses insatisfeitos, em um espaço de representação, de modo a equilibrar, para os poderosos, a correlação de forças.
Isto dialoga, diretamente, com os tratados estabelecidos pelos próprios EUA e nós, brasileiros. E isto só mostra que o abalo na relação entre Brasil e EUA não é coisa fácil de ocorrer. Há anos, estamos restritos a um modelo de democracia, estabelecido por Tratados ditos de Assistência Recíproca. Em troca de uma espécie de proteção contra guerras, o Brasil se comprometeu a restringir sua experiência política a espaços de decisão verticais e centralizados, representativos. É, justamente, este tipo de limitação à democracia, esta forma que impede a participação do povo nas decisões, que serve de terreno fértil para a ideia de “facção”, pela cultura de apartar os problemas, tratá-los como corpos estranhos ao todo, mas, também, pela própria despolitização que a democracia restrita e/ou viável produz, em que espaços coletivos de decisão desaparecem.
A política vira sinônimo de eleições?
Isso. Diz-se que o ato do dia 28 de outubro foi peça eleitoral. Certamente foi. Mas uma peça com efeitos muito concretos e como tal não é resumida em um tempo só, efêmero, como uma performance. A delimitação da politica no tempo e no espaço das eleições é uma forma orgânica de desorganizar os aviltados, justamente, ao restringir a experiência de poder, que consiste na própria experiência democrática, em força física e pleitos eleitorais. Gramsci fala de guerra de movimento e de guerra de posição, como termos que podem explicar certa preponderância no modo de se travar a luta de classe, respectivamente, em democracias mais gelatinosas, sujeitas a confrontos mais abertos, e democracias mais consolidadas, em que os conflitos se converteriam em disputas de espaços institucionais.
Diz-se muito que o Brasil possui instituições democráticas mais sólidas. Entretanto, há e sempre existiu um hibridismo no modo de fazer guerra. E isto que envolve um confronto aberto, de guerra de movimento, para avançar em posições institucionais, guerra de posição. Uma economia organizada por pessoas que não estão na favela, estão melhores posicionados. E “não estar” é proposital. A favela como o lugar do não-estar, no sentido de que toda ausência implica em uma forma de presença. Castro e sua turma não querem que o vazio proposital criado nas favelas seja preenchido por organização. Mas não se trata da organização do crime, mas do crime como organização. Não à toa a palavra mais destacada, na hora de se falar do tráfico, não é “crime”, mas “organizado”. E aí o problema, na operação militar do dia 28, não é ausência de comando, mas um comando muito claro. A escolha por matar miseráveis é uma forma precisa de reprodução, pela conversão de tudo em mercadoria, inclusive as mazelas que o próprio capitalismo produz.
Assim, aqueles que não têm outro caminho que não seja vender sua força de trabalho para o mercado mais rentável em sua área, que é a da venda de cocaína, de maconha e afins, como forma de fazer circular mercadorias como armas e afins, a preços mais rentáveis para seus grandes investidores, precisam morrer, vez ou outra, para que a própria venda de cocaína, maconha e afins justifique a venda de armas e afins. Do ponto de vista politico, o ganho também é certo. O medo que se instala, nessas mesmas áreas, após esses massacres, e compromete qualquer possibilidade de efetiva organização social, porque a vanguarda da esquerda deixa de ir aonde o povo está. Torna-se vanguarda sem retaguarda.
E como seria uma organização alternativa a tudo isto?
Não quero, não serei, nem devo ser “especialista em segurança”. Isto não existe. Sua existência é, também, mercadológica. E isto que digo tem uma mesma razão. Não existe especialista em segurança porque segurança diz respeito a tudo o que é seguro e deve estar vinculado a direitos. A segurança pública precisa vir integrada com uma palavrinha de mesmo radical: Seguridade Social. É esta última que permite um povo pensar de forma previdente o país que quer. E aí estamos mesmo falando de previdência: aposentadoria, acesso à saúde, à educação, acesso ao desenvolvimento dos apetites da alma, do espírito, como a realização de desejos de vida, que todo ser humano tem, mas alguns acreditam que só os que nascem em condições de se reproduzir possuem. Só é possível pensar em segurança com a cultura da fraternidade.
Em se tratando de segurança pública, a harmonia envolve bem estar em todos os campos da vida cotidiana, do lazer até o que comer. Não à toa, falava-se em Segurança Alimentar. E não se trata de quantidade de lazer ou acesso à mercadoria. Mas acesso, acima de tudo, ao que fazer para melhorarmos a vida em sociedade. De tal modo que a melhor forma de ocupar o morro é ocupando-o com a tarefa de ocupá-lo, o que envolve duas coisas: politização do povo e devolução da riqueza para o povo. Algo que fica quase impossível com projetos de país delimitados por Teto de Gastos e Regimes de Recuperação Fiscal.
Tudo está integrado. Não no sentido fetichista de integrar as forças armadas, os poderes estaduais, municipais e federais, quando, materialmente, os recursos para a segurança pública são estritos a um ente da federação, às unidades estaduais. Mas a integração no sentido de se compreender que há uma totalidade que deve ser nomeada, o capitalismo, que já se provou incompatível com a democracia. Enquanto vivermos em um modelo em que o propósito é fazer dinheiro para fazer dinheiro, eliminar massas de trabalhadores será questão de cálculo de marketing, de mercado, de logística, de renovação de mandatos, assim como pautar a questão da segurança, apartada, em seu sentido forte.
Isto faz com que o tema da segurança pública se torne tema de todos, principalmente da esquerda?
Sim. Diz-se que a esquerda rejeitaria debater segurança pública por “culpar” as forças armadas pelo que fizeram na ditadura de 64. Ora, não se trata de culpa. Trata-se de trauma, que não foi ainda elaborado, pelo Estado brasileiro e por seu povo, por devido trabalho de memória e reparação. Não à toa, aqueles que são porta-vozes e comandantes de operações de matança são ligados aos “rebeldes” das forças armadas deste período. Os que queriam perpetuar o estado de exceção. Este projeto não foi impedido. Apenas foi racionalizado, em termos de lugar, tempo, dinâmica, sociologia, política.
Isto justificaria um ministério da segurança pública?
Não. Isto justificaria uma reestruturação dos ministérios já existentes, em especial os ligados ao fortalecimento da sociedade, e uma ruptura com modelos de Estado endividado, o enfretamento da política do Teto de Gastos. Para isto, é preciso que o Brasil se arrisque, saia de uma condição de dependente, que só é possível com organização popular, que envolve politização de massa. Algo que não observamos e, curiosamente, só se agravou, desde que o maior partido de esquerda da América Latina se tornou governo. Esta ausência de transferência do Poder Estatal para o Poder Popular aponta, mais uma vez, para o quanto temos um problema de tráfico, um problema de transferência, de geração da ditadura para a geração democrática, do Estado para suas bases, do trabalho para os que trabalham.
Dito de outro modo, se formos pensar em segurança pública integrada, precisaremos pensar em autodeterminação do povo brasileiro. Querer medidas imediatas para o que se deu, no dia 28 de outubro, é ignorar que o tempo e o espaço para as reais transformações, no Brasil e no mundo, são lentos, constantes e face-a-face. Os que estão organizando a massa – o capital – sabem muito bem disto. Isto não exclui medidas urgentes, dentre elas, a própria legalização das drogas, ou seja, a regulamentação, por via do Estado, do uso das drogas. Sabemos que sua proibição obedece ao mesmo princípio de desestabilizar para governar. Uma espécie de organização pelo negativo, deliberada pelo poder público-privado.
O vazio organizado explica a aprovação de 60% da população à operação?
Sem dúvida. Como não há nenhuma perspectiva para os que vivem do trabalho, no Rio, seja no âmbito do serviço público, cada vez mais escasso, seja no âmbito dos empregos no setor privado, o conflito urbano, engendrado pela imensa desigualdade, estimulado pela imensa concentração de riqueza, incentivado por uma sociedade de consumo, baseada na exploração do homem pelo homem, é tratado como desordem social, quando, na verdade, é parte da ordem. Isto explica uma operação que elimina pobres ser tida, por muitos, como política pública.
Operações como esta não apenas contribuem para o aumento da violência. Elas são, em si, aumento objetivo da violência. Porque apresenta a morte como único modo de organização da vida. As mães dos mortos falam em “cooptação” de seus filhos para o tráfico. Falam assim porque toda “cooptação” só é possível por forças presentes, próximas. As forças presentes e próximas dos pobres e miseráveis são o tráfico, o trabalho ilegal de venda a varejo de mercadorias. Por isto, digo que não há Estado Paralelo. Há um poder só e ele não está, verdadeiramente, em disputa. Para isto, para que haja, de fato, disputa de poder, é preciso que o povo se organize, que se politize. Algo que envolve mudança de cultura, no seu sentido forte.