19 Novembro 2025
Pedagogia da crueldade e cultivo da empatia.
O artigo é de José Luis 'Kois' Fernández-Casadevante, especialista em ecologia social e soberania alimentar, publicado por Ctxt, 18-11-2025.
Eis o artigo.
Algumas notícias nos impactam como um soco, chocando-nos e permanecendo em nossa mente por um tempo. Foi o que aconteceu comigo com a história dos "safáris humanos" em Sarajevo, que ocorreram durante o brutal cerco da cidade. Foi o cerco mais longo da história da guerra moderna, durando quase quatro anos, de 1992 a 1996. Além de deixar a cidade devastada, os bombardeios e os tiros de franco-atiradores mataram mais de doze mil pessoas, 85% das quais civis.
O escritor Enzio Gavazzeni conduziu uma investigação aprofundada sobre como centenas de pessoas chegavam nos fins de semana em viagens organizadas, supostamente para entregar ajuda humanitária, para assassinar estranhos impunemente. Eles pagavam somas enormes de dinheiro para se posicionarem com rifles de precisão nas colinas ao redor da capital bósnia e atirar em civis desarmados. Matar bebês e crianças era o mais caro; em seguida, vinham os homens uniformizados, depois as mulheres; os idosos podiam ser mortos de graça.
O perfil daqueles que passaram a apreciar o ato de matar era o de homens ricos e influentes: notários, advogados, executivos ou empresários, bem como simpatizantes da extrema-direita. A maioria vinha do norte da Itália, mas também de outros países, incluindo a Espanha. Matavam sem sujar as mãos, mantendo distância suficiente para desumanizar a vítima, mas permanecendo perto o bastante para se deleitarem com o poder de tirar uma vida.
Esta informação não havia sido divulgada antes, mas nunca com tantos detalhes e, pela primeira vez, com um processo judicial em andamento. A notícia ressoa particularmente forte nestes tempos em que a demonstração de crueldade se tornou uma marca registrada da política. Steve Taylor, professor de Psicologia da Universidade de Manchester, explica que a crueldade está intimamente e diretamente relacionada à perda de empatia. Se alguém não consegue sentir o sofrimento alheio, torna-se mais fácil infligir dor, justificar a exploração ou o assassinato. Rita Segato também fala da pedagogia da crueldade para descrever o processo de perda da sensibilidade social ao sofrimento alheio. São atos que ensinam, habituam e programam as pessoas a transformar a vida e sua vitalidade em coisas.
Homens desconectados, intensamente narcisistas e ambiciosos, carentes de compromissos interpessoais e movidos por um forte desejo de possuir riqueza e exercer poder. Atiradores de elite como metáfora para isolamento e individualismo onipotente. Essas são muitas das figuras de sucesso projetadas por esse modelo socioeconômico, portanto, não deveria ser surpresa que, de uma perspectiva psicológica, haja uma proporção muito maior de psicopatas entre líderes políticos e empresariais. Os safáris humanos são excepcionalmente e anormalmente brutais, mas vale a pena reconhecer que a cultura capitalista e patriarcal é estruturalmente baseada na violência e na desumanização.
Síndrome do mundo cruel
Essas histórias nos atraem devido à nossa tendência à negatividade; o mal ou a catástrofe nos seduzem. Uma pesquisa recente com 100 mil histórias virais mostrou que a presença de palavras negativas nos títulos aumentou o número de visualizações. A economia da atenção explora essa inércia cognitiva para gerar cliques.
Isso se conecta à ideia da "síndrome do mundo cruel", cunhada pelo professor de comunicação George Gerbner, pioneiro na pesquisa sobre os efeitos da televisão como meio de comunicação de massa. Essa síndrome se baseia na observação de como a imagem projetada pela mídia influencia nossa percepção da realidade. Quanto mais tempo passamos assistindo à televisão, mais acreditamos que a sociedade é exatamente como é retratada na tela. Aqueles que consomem muita televisão superestimam os índices de criminalidade e violência, os riscos de desastres naturais e a riqueza. Quanto mais horas passamos assistindo ao noticiário, pior se torna a percepção da humanidade e maior a probabilidade de acreditarmos que a maioria das pessoas não é confiável. Esse problema é exacerbado pelas redes sociais e seus algoritmos.
Não se trata de determinismo tecnológico, nem de a humanidade ter piorado; trata-se simplesmente de que talvez apenas as piores histórias que contamos a nós mesmos se tornem virais. Devemos estar cientes delas, não nos iludir, mas seria um erro ceder à tentação de acreditar que essas figuras representam a humanidade. Não podemos conceder-lhes esse privilégio: por mais obscenamente que sua maldade seja retratada, elas representam uma minoria ínfima. Suas narrativas ofuscam outras versões de quem somos como indivíduos e sociedades. Não somos a caricatura antropológica que muitos meios de comunicação, redes sociais e indústrias culturais retratam diariamente. Somos muito mais do que isso.
David Graeber apresenta uma ideia instigante: a violência estrutural frequentemente gera estruturas tendenciosas ou assimétricas em nosso imaginário. As vítimas tendem a se preocupar mais em compreender a natureza de seus opressores e a ter maior empatia por eles. Os oprimidos muitas vezes questionam as motivações, as razões e as visões de mundo de seus opressores: servos e escravos compartilhando informações e debatendo secretamente sobre como os brancos agiam, povos indígenas refletindo sobre as visões de mundo ocidentais que os colonizam, mulheres tentando compreender as perspectivas dos homens… O autor fornece um exemplo ilustrativo ao relatar os resultados consistentes de um exercício que realizou em diversas escolas, no qual pede aos alunos que imaginem como seriam suas vidas se mudassem de sexo e que escrevam suas reflexões.
As meninas produzem relatórios extensos e detalhados, enquanto os meninos geralmente demonstram resistência, recusam-se a participar ou afirmam explicitamente que não sabem nem querem saber. Um padrão semelhante emerge em uma pesquisa de grande escala com milhares de jovens de 16 a 19 anos na Espanha, na qual eles são questionados sobre seus modelos a seguir. Quando perguntados: "Com quem você quer se parecer quando crescer?", as meninas escolhem modelos tanto masculinos quanto femininos, enquanto os meninos escolhem apenas homens.
A conclusão é que aqueles que se beneficiam da opressão podem se dar ao luxo de serem indiferentes e reduzir seus níveis de empatia, enquanto os oprimidos são forçados a fazer um esforço maior para interpretar a realidade. Esse esforço dos oprimidos para entender o que e quem os oprime é facilitado quanto mais prontamente as fontes de opressão puderem ser definidas e identificadas com "o outro". Empatia e cumplicidade cognitiva são a base sobre a qual dinâmicas transformadoras podem florescer em um ambiente que tende à sua destruição.
Cultivando narrativas alternativas sobre a humanidade em Sarajevo
Há outra história, bem menos conhecida, sobre Sarajevo, que talvez ofereça um contraponto à notícia que abre este texto e que relato em meu livro Huertopías. Pouco depois do fim da guerra, no centro da cidade, cercado por ruínas e prédios semidestruídos, foi plantado o primeiro jardim comunitário pela paz e reconciliação. Uma iniciativa de solidariedade promovida por uma organização pacifista.
O local escolhido transformou um terreno que havia sido literalmente um campo de batalha em terras agrícolas. Um grande espaço verde, carregado de simbolismo, separava dois bairros e, por um tempo, marcou a linha de frente. Ali, foram criados e distribuídos por sorteio dezenas de lotes de 50 metros quadrados, com participação multiétnica que manteve o mesmo nível de diversidade existente na área antes da guerra.
Assim, pessoas de origem bósnia, sérvia e croata podiam compartilhar os limites de seus lotes. Inicialmente, a situação era tensa e nem todos estavam satisfeitos com o modelo imposto, mas os lotes ofereciam acesso privilegiado a alimentos em um contexto de extrema dificuldade e escassez, então as pessoas decidiram participar do projeto. Muitas dessas pessoas eram refugiadas que haviam retornado recentemente após fugirem do país por causa da guerra e estavam em extrema necessidade.
A horta comunitária não foi apresentada como uma iniciativa de reconciliação, mas todos nessa comunidade de jardinagem haviam vivenciado a guerra. Além de um pedaço de terra compartilhado, eles compartilhavam traumas profundos, dor e a perda de familiares e amigos. Ao criar um espaço onde as pessoas pudessem colaborar em uma atividade específica em um ambiente descontraído e se sentirem seguras para conversar, os relacionamentos floresceram naturalmente. As reuniões formais do projeto, às quais eram obrigados a comparecer, focavam em questões logísticas, agronômicas ou de treinamento. No entanto, aos poucos e sem forçar nada, as interações aumentaram gradualmente.
A identidade de jardineiro ou horticultor, mais cosmopolita e ligada à terra, acabou por se revelar mais importante do que ser bósnio, sérvio ou croata. E a partir daí, estabeleceu-se um novo vínculo, uma possibilidade de reconciliação que não implicava renunciar a aspectos da própria história de vida, mas sim acrescentar novos elementos que facilitassem a humanização do outro e, consequentemente, o estabelecimento de um diálogo. Os idealizadores do projeto destacam a história de dois horticultores que lutaram em lados opostos e que acabaram por transferir a sua disputa para o xadrez, através do qual forjaram uma forte amizade.
Além disso, a iniciativa incorporou uma dimensão terapêutica, visto que os participantes vivenciaram transformações profundas em sua perspectiva de vida. Sua autoimagem evoluiu de vítimas indefesas em busca de ajuda para indivíduos que se sentiam úteis para suas famílias e comunidades. A comunidade de jardineiros conquistou autonomia pessoal e coletiva.
Eles faziam algo de que se orgulhavam e gostavam de compartilhar o espaço com seus amigos e familiares, o que levou à construção de um parquinho infantil na própria horta. Ao longo dos anos, a dimensão terapêutica se expandiu para incluir o trabalho com pessoas com necessidades especiais (estresse pós-traumático, transtornos mentais, deficiências, etc.), algo particularmente relevante quando essas questões eram anteriormente relegadas à esfera privada e doméstica.
Os “safáris humanos” eram encontros de indivíduos cuja camaradagem se reduzia à organização para matar em conjunto, semear o terror e aumentar o ódio. O que os jardins de Sarajevo nos ensinam é que é possível cultivar comunidades capazes de restaurar a confiança entre aqueles que estavam em conflito, semeando a vida e colhendo as sementes da reconciliação. A paz é frágil e requer cuidado constante, como um jardim.
Um antigo provérbio árabe diz que não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos. Portanto, temos uma responsabilidade na forma como vemos o mundo e as pessoas com quem o compartilhamos. Esforcemo-nos para garantir que a exposição ao mal não nos transforme em pessoas más e comprometamo-nos a fazer com que histórias que transmitam esperança se tornem virais. Elas não são raras; rodeiam-nos como infrassom, embora passem despercebidas se não prestarmos atenção. Falemos sobre o que merece alegria, não tristeza.
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