14 Novembro 2025
Nicola Brigida é parte no processo judicial para investigar, procurar e encontrar os atiradores turistas que pagaram para matar civis durante o cerco de Sarajevo.
A reportagem é de Joan Mas Autonell, publicada por El Diario, 13-11-2025.
A memória sombria das colinas que circundavam Sarajevo durante o brutal cerco à capital bósnia entre 1992 e 1996 ressurgiu na Itália. A Procuradoria de Milão abriu uma investigação sobre a alegada existência de grupos de "atiradores turistas" que supostamente pagaram enormes somas de dinheiro ao exército sérvio da Bósnia para atirar em civis sitiados. O caso inclui um dossiê de 17 páginas com descobertas do jornalista e escritor italiano Ezio Gavazzeni, que afirma que italianos ricos participaram dessa sinistra caçada humana .
Para desvendar essa rede macabra, o repórter apresentou uma denúncia em fevereiro com o apoio do ex-magistrado Guido Salvini e do advogado Nicola Brigida. Brigida, que acompanha de perto o caso, enfatizou em entrevista ao elDiario.es que a abertura da investigação é um primeiro passo crucial para identificar os potenciais culpados, embora o processo ainda esteja em fase inicial e tenha um longo caminho a percorrer.
“Gavazzeni investigou minuciosamente e reuniu provas que sugerem fortemente que alguns cidadãos do norte da Itália, incluindo alguns de Milão, participavam desse horrível safári de fim de semana, atirando em civis indefesos sitiados nas colinas de Sarajevo”, afirma Brigida. Ela enfatiza que uma das principais fontes é um ex-agente da inteligência bósnia . De fato, esses serviços já haviam alertado na década de 1990 sobre a presença de vários atiradores italianos na região, informando a inteligência militar italiana da época, o Sismi, que então localizou os envolvidos.
🇮🇹🇧🇦 Escândalo na Itália: nos anos 90, grandes empresários terão pago até 100.000 euros por “pacotes” turísticos que incluíam transporte aéreo, armas e guias para participar em “safaris humanos”, onde “caçavam” civis de forma furtiva nas ruas de Sarajevo. pic.twitter.com/uxfXN7UEaW
— geopol•pt (@GeopolPt) November 13, 2025
Segundo informações recolhidas por Gavezzini, esta agência bloqueou as viagens após dois ou três meses, tendo identificado estes turistas que viajavam para Sarajevo a partir da cidade de Trieste, no nordeste de Itália e porta de entrada para os Balcãs. De acordo com a fonte bósnia, isto implica que os nomes dos envolvidos poderão constar dos arquivos do Sismi. A mesma fonte menciona o testemunho de um soldado sérvio capturado na altura, que afirmou ter testemunhado o transporte destes caçadores , oriundos de cidades como Turim, Milão e Trieste.
Segundo Brigida, ainda há muitas pontas soltas a serem amarradas e prevê-se um árduo trabalho de coleta de provas para manter o processo ativo. Por ora, a Procuradoria de Milão considera o crime de homicídio múltiplo com os agravantes de "crueldade" e "motivos abjetos", que não prescreve, apesar do tempo decorrido. "A denúncia apresenta pistas investigativas que merecem a máxima atenção. O tribunal reconheceu sua gravidade e iniciou um processo criminal com investigações da Polícia Judiciária — a unidade ROS dos Carabinieri — para identificar os responsáveis", afirma a advogada, esperançosa de que o caso seja solucionado, embora, por enquanto, nenhum indivíduo específico tenha sido acusado ou indiciado.
Brigida afirma não saber exatamente quem participou dessa caçada a civis, mas enfatiza que não foi um incidente isolado: "Era um grupo de várias pessoas, não apenas um indivíduo", assegura. Segundo relatos, o preço que se pagava por um safári de fim de semana era altíssimo, entre 80.000 e 100.000 euros, equivalente ao custo de um apartamento de três quartos em Milão na época.
“Viajar armado para um país estrangeiro em guerra e permanecer lá por vários dias não era algo que qualquer um pudesse fazer. Se a teoria da acusação for confirmada, tratava-se de pessoas ricas, implacáveis e sádicas, com gosto por matar indiscriminadamente”, destaca Brigida. Ela acrescenta que também espera que a investigação determine por quanto tempo essa prática durou e como funcionava o contato e a coordenação com as forças sérvias da Bósnia de Radovan Karadzik e Ratko Mladic, condenados à prisão perpétua por crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. De fato, é nessa instituição, sediada em Haia, que os investigadores do caso aberto pelo procurador Alessandro Gobbis começaram a reunir documentos.
“Acredito que as provas apresentadas na denúncia serão avaliadas de forma justa”, afirma Brigida, que ressalta a incerteza sobre quando a investigação poderá apresentar os primeiros resultados, pois isso dependerá das provas encontradas. “Pode ser amanhã, daqui a alguns anos, ou nunca, embora, caso um culpado seja identificado, a investigação será acelerada de acordo com as normas do código de processo penal”, explica.
No entanto, ele pede confiança no sistema judiciário do país: “Em outras ocasiões, o judiciário italiano já se mostrou meticuloso e sério, chegando a punir os responsáveis por desaparecimentos em massa na América do Sul durante as ditaduras militares. Muitos desses julgamentos terminaram nos últimos anos com a condenação de dezenas de réus por crimes monstruosos contra a humanidade”, acrescenta o advogado. Ele cita casos como o do repressor uruguaio e ex-oficial militar Jorge Néstor Troccoli, condenado a duas penas de prisão perpétua na Itália — a última em outubro de 2025 — pelo assassinato e desaparecimento de várias pessoas durante a Operação Condor.
Em Sarajevo, as cicatrizes do cerco — o mais longo da história moderna — ainda são visíveis em muitos dos edifícios da cidade, com buracos de bala em suas fachadas. Mais de 10.000 pessoas morreram devido aos bombardeios e ao fogo implacável de franco-atiradores. Estes últimos eram a ameaça mais temida, pois atiravam indiscriminadamente, atingindo também mulheres e crianças. Mesmo naquela época, a presença de franco-atiradores estrangeiros era um tema do qual os cidadãos pareciam estar cientes. “Quando crianças, ouvíamos histórias sobre estrangeiros fazendo esse tipo de coisa”, disse Faris, natural de Sarajevo e nascido no mesmo ano em que o cerco começou, ao elDiario.es.
Em 1995, o jornal italiano Il Corriere della Sera publicou um artigo sobre o assunto. Ele ressurgiu em 2022 com o lançamento do documentário Sarajevo Safari, que se concentrou em estrangeiros que iam a Sarajevo para praticar tiro esportivo. O filme não apresenta provas para corroborar essas alegações, embora duas testemunhas falem. Uma delas afirma ter acompanhado esses visitantes e testemunhado o assassinato de sete pessoas, incluindo crianças. Ele também afirma que "o preço era maior se o alvo fosse uma criança". O documentário chocou mais uma vez a sociedade bósnia e trouxe o assunto de volta à tona. Muitos, como Faris, optaram por não assisti-lo "para não reviver tempos sombrios" ou traumas passados.
Após a sua divulgação, a então prefeita de Sarajevo, Benjamina Karik, apresentou uma queixa, e o Ministério Público da Bósnia e Herzegovina concordou em investigar as informações apresentadas no documentário. O conteúdo da reportagem de Karik também foi anexado à queixa apresentada por Gavazzeni ao Ministério Público de Milão.
Segundo o próprio Gavazzeni, em declarações à imprensa italiana, os "atiradores turistas" eram muito mais numerosos do que apenas italianos, podendo chegar a mais de uma centena. "Havia empresários e profissionais ricos do norte da Itália, mas também da Espanha, França, outros países europeus, Canadá, Estados Unidos e Rússia", afirma. "Claramente, havia uma organização que permitia que fossem levados a um local onde pudessem atirar impunemente." "Depois, eles retornavam às suas vidas normais", conclui Gavazzeni, em mais um exemplo da "banalidade do mal", ecoando Hannah Arendt.
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