23 Outubro 2024
O mundo está à beira do colapso atômico, ecológico e civilizacional, fundado em uma economia que mata. Precisa-se, portanto, urgentemente, recuperar o sentido da confiança e da esperança na humanidade. Para tanto, a Comunidade de Taizé e aqueles e aquelas que partilham a sua espiritualidade podem muito contribuir, com a enorme experiência que cultivaram desde a sua fundação.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Não esqueças que, nos períodos mais difíceis, muitas vezes, um pequeno número de mulheres, homens, jovens e mesmo crianças, espalhados pelo mundo, foram capazes de inverter o curso de certas evoluções históricas”[1], escreveu Irmão Roger de Taizé. Um testemunho luminoso para tempos tão desalentadores como os atuais. O fundador da Comunidade de Taizé foi um homem de profunda esperança, arraigada em uma fé desconcertantemente simples e bela.
Nascido em 12 de maio de 1915, em Provence, na parte francesa da Suíça, Roger Schutz pertencia a uma família que cultivava em seu seio a fé e a música, o que lhe marcará para o resto de sua vida. Seu pai era um pastor reformado e sua mãe estudara piano em Paris. Mas a figura que exercerá a maior influência no seu caminho de fé será a sua avó materna, que mesmo vinda de uma família evangélica frequentava a Igreja Católica. Uma mulher que viveu os horrores da Primeira Guerra Mundial e “descobriu intuitivamente uma espécie de chave da vocação ecumênica”, como reconhece seu neto que a colocará em prática.
“Será que existe, na terra, um caminho para compreender o outro?”[2], indagava-se o jovem suíço. E, assim, inquieto, após concluir sua formação teológica, partiu em busca de um lugar onde pudesse viver com outros a radicalidade do caminho cristão. Em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, Ir. Roger sabia que o cristianismo exigia coragem e generosidade, o que o levou para a dividida França de Pétain.
Numa cidadezinha em decadência, perto de Cluny – outrora um poderoso centro do cristianismo monástico –, encontrou a confirmação de Deus por meio de um apelo de uma idosa senhora. “Escolhi Taizé porque aquela mulher era pobre. Cristo fala através dos pobres e é bom que os escutemos. (...) O contato com eles protege a fé de se tornar incerta e insegura”[3], confidenciou anos mais tarde. Ali acolheu tanto judeus perseguidos pelos nazistas quanto prisioneiros de guerra alemães, detidos em dois campos localizados nos arredores, após o fim do combate.
Uma capacidade de reconhecer o mais profundo da humanidade do outro, que faz falta em meio ao histórico conflito entre Israel e a Palestina. Há décadas o estado israelense vem descumprindo os acordos de Oslo, que apostavam na solução de dois países autônomos na região. Por meio de controles, muros e barreiras colonialistas e humilhantes, toda a população palestina foi cada vez mais encurralada em desumanos e indignos guetos.
Após os inaceitáveis e sempre deploráveis ataques terroristas de 7 de outubro de 2023, promovidos pelo Hamas, cerca de 1.200 israelenses foram assassinados. Em uma brutal e absolutamente desproporcional resposta, o governo de extrema-direita de Israel deu início a um cruel extermínio da população da Faixa de Gaza. Até o presente, já foram dizimadas mais de 42 mil vidas, em sua maioria, mulheres e crianças.
A vida nos territórios palestinos tornou-se quase insuportável. Universidades, escolas, hospitais, zonas residenciais e comerciais. Tudo praticamente destruído pela terrível chuva diária de mísseis. Não satisfeito, em uma desesperada postura belicista para se manter no poder, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, além de ter atacado o Irã – com um risco de escalada atômica –, avança sobre o Líbano, já tendo causado quase 2 mil mortes. Isso sem mencionar os milhares de deslocados. O que faria o Ir. Roger em meio a tanto sofrimento?
O monge suíço era um teimoso fiador da esperança e jamais deixou de acreditar que a humanidade carrega o gérmen indestrutível da fraternidade. Nesse sentido escreveu na regra da comunidade:
“E, hoje, há pessoas que têm tudo o que é necessário para transformar situações intrincadas. Querendo deixar para trás o tempo da desconfiança, têm tudo para criar uma era de confiança e reconciliação. Aspirando a que se curem as feridas, permanecem entre os seres humanos como sinais do inesperado. Eles são inconfundíveis. Construíram-se interiormente, em momentos de incompreensíveis provações. Perseveram em tudo e contra tudo, não obstante o imobilismo. Dando a sua vida, testemunham que o ser humano não foi criado para a desesperança”.[4]
Homem de sensibilidade e densa espiritualidade, Roger intuiu no seu mais íntimo que há mais coisas que unem o ser humano do que o separam. Certa feita ao ser perguntado sobre quem era Cristo, respondeu depois de um acentuado silêncio: “para mim, Cristo é aquele de quem vivo e também aquele que contigo procuro”[5]. A partir dessa fundamental relação com Deus, o primeiro prior de Taizé, sem temer a diferença, se fez irmão de todos. Apesar de ter inaugurado um novo estilo de vida monástica ecumênica, dele se pode afirmar o que noutra época atribuíram a Santo Inácio de Loyola, era um “contemplativo na ação”. Um peregrino da reconciliação!
Perseguido pelos nazistas, Ir. Roger teve que voltar para a Suíça em 1942. Dois anos depois, terminada a guerra, retornou à colina francesa, na companhia de três companheiros, Max Thurian, Pierre Souvairan e Daniel de Montmollin. Na Páscoa de 1949, os já então sete irmãos de Taizé professaram os votos, comprometendo-se para toda a vida. Naquilo que será uma marca indelével da atração que provoca a comunidade na juventude, os jovens começaram a ser acolhidos nos anos 1957-1958.
Em tempos em que o Papa Francisco convoca a Igreja a caminhar sinodalmente à escuta do Espírito, Ir. Roger promoveu um Concílio de Jovens (1970-1974), com frutuosos encontros em todo o mundo. Isso aprofundará uma das vocações da comunidade de Taizé, o frescor de ser um ponto de referência e partilha para a juventude sedenta de ser protagonista da própria história.
Convidados como membros observadores, Ir. Roger e Ir. Max haviam participado do Concílio Vaticano II (1962-1965), onde puderam travar importantes contatos que tiveram significativos impactos nas décadas seguintes. Entre os encontros notáveis, Ir. Roger começará uma afetuosa amizade com Dom Hélder Câmara, o rebelde arcebispo de Olinda e Recife. A partir dos apelos ouvidos, a comunidade dará início a solidariedade concreta por meio da Operação Esperança, enviando substancial ajuda financeira para inúmeras iniciativas ao redor do globo.
No final dos nos 1960, chegaram os primeiros irmãos católicos na comunidade, para iniciarem, assim, um poderoso experimento de comunhão e partilha dos valores comuns da fé. Alguns anos antes, o futuro Papa São João XXIII, na ocasião núncio apostólico na França, havia autorizado que a comunidade utilizasse a igreja românica da localidade. Posteriormente, reconheceria que Taizé era uma primavera na Igreja.
Também nessa época, mais precisamente em 1966, as Irmãs de Santo André – congregação religiosa de espiritualidade inaciana, fundada no séc. XIII, na Bélgica – foram a colina francesa para ajudar na acolhida das jovens que vinham no verão. O que a princípio era provisório se tornou uma fiel parceria até os dias atuais, com evidentes impactos na consolidação da comunidade ecumênica.
Dentre as influências femininas, além do exemplo de sua avó materna e da colaboração preciosa de sua irmã Geneviève no cuidado de crianças órfãs, pode-se destacar a inestimável presença das Irmãs de Santo André. Seu modo de proceder e sua espiritualidade marcaram não só o próprio Ir. Roger, mas também foram e são fundamentais na vivência do carisma original de Taizé. Vocação pela qual o sempre lúcido fundador nunca deixou de se questionar:
“Quem somos? Um grupo de homens que se encontraram sem se escolher e que tentam agora reeditar algo da primeira comunidade cristã. Quem somos? Uma comunidade pequena e frágil, sustentada por uma esperança louca: a da reconciliação de todos os batizados e de todos os seres humanos entre si (...). Somos um acumulado de fraquezas pessoais, mas também uma comunidade visitada por um outro diferente de nós”.[6]
Insistente promotor da paz, Ir. Roger foi um exímio artífice da “cultura do encontro” e, certamente, seria um grande amigo e aliado do Papa Francisco, pronto para clamar contra a Terceira Guerra Mundial em pedaços, que assola o mundo nestes tempos. Ao longo dos anos, Taizé recebeu o Papa João Paulo II, o Patriarca de Constantinopla Bartolomeu, vários arcebispos da Cantuária, bispos luteranos da Suécia e da Finlândia, inúmeros metropolitas ortodoxos e pastores evangélicos de distintas confissões. Isso sem mencionar outros líderes religiosos e importantes autoridades políticas, que encontraram ali um espaço seguro para a diversidade.
Em meio à “globalização da indiferença”, relembrada constantemente pelo primeiro papa latino-americano, o mundo assiste atônito à guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O conflito se arrasta desde fevereiro de 2022 e segue sob perigosa ameaça de uso de armas atômicas, por parte do regime comandado por Putin. Em recente entrevista dada por Florence Bauer, chefe do Fundo de População da ONU para a Europa Oriental, a população da Ucrânia diminuiu em um quarto, ou seja, 10 milhões de pessoas a menos. Isso inclui as dezenas de milhares de mortes no conflito, deslocamento de milhões de refugiados e o preocupante achatamento da taxa de natalidade do país.
As divisões se aprofundaram, inclusive na ortodoxia cristã, com um chocante apoio do Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa aos mirabolantes e fratricidas desejos do presidente Putin. Não só os israelenses judeus contra os árabes mulçumanos e cristãos, no Oriente Médio, mas também cristãos russos contra cristãos ucranianos no seio da Europa. O que diria Ir. Roger diante de tanto ódio e incompreensão manipulados por dirigentes arrogantes e criminosos?
“A família humana inteira quer paz e não guerra”, “são pouquíssimos os que querem a guerra”[7], disse o então prior de Taizé há muito tempo, em palavras tão incomodamente atuais. A sensação de um grande vazio de lideranças políticas que lutam pela paz é perturbador e se deteriora a cada dia. Entretanto, ceder ao desânimo e ao pessimismo não é uma opção. Há mais de cinquenta anos escrevia Ir. Roger tão sabiamente:
“Como é criadora a violência dos pacíficos! É ela que revoluciona os seres humanos e, pelo desafio que coloca, os obriga a tomar uma posição. Contém uma força comunicativa. Reconhece-se através de sinais. É, antes de mais nada, como que uma objeção viva, perante uma consciência cristã adormecida e acomodada ao ódio ou à injustiça. Que desafio traz consigo o cristão que se torna uma esperança viva no coração de um mundo injusto, de segregação ou de fome! Despojada de todo ódio, a sua presença edifica e torna-se criativa. Esse desafio, que arde de amor, é uma violência habitada. Quando um homem vive com esse ardor, pode atear fogo na terra”.[8]
Mesmo recebendo milhares de jovens toda semana, alguns irmãos de Taizé logo foram enviados para as periferias do mundo, para tocar mais de perto as belezas e as dores da humanidade. No Brasil, antes de se fixarem em Alagoinhas na Bahia (1978), passaram por Olinda (1966) e Vitória (1972), nos estados de Pernambuco e Espírito Santo, respectivamente. Nos dias atuais, permanecem em Bangladesh (1974), em Seul na Coreia do Sul (1979), no Senegal (1993) um país de maioria mulçumana e na cidade de Pantin, perto de Paris (2020). Presenças simples e cheias de significados, porque inseridas em realidades de pobreza e grande diversidade sociocultural, as pequenas fraternidades são como fermento na massa das feridas realidades locais.
Em 1982, em meio a difícil guerra no Líbano, deu-se início à tão simbólica Peregrinação da Confiança sobre a Terra, juntamente com os Encontros Internacionais de Jovens, oportunidades valiosas de fortalecimento da fé e da fraternidade com os outros. Como testemunhou um jovem após um desses encontros, “a peregrinação é um acontecimento para quem a faz, para quem ousa sair e arrisca o fracasso, mas também o é para quem recebe, e, nesta, ainda mais. Aos milhares de jovens peregrinos juntaram-se os milhares que acolheram, que abriram a sua casa a estranhos. Partilharam mais, muito mais, do que as suas coisas, partilharam a sua vida, as suas crenças, as suas esperanças”[9].
Criativos e atentos aos sinais dos tempos, Ir. Roger e seus companheiros souberam discernir os apelos do Espírito com audácia e persistência. Prestes a se completar vinte saudosos anos da páscoa (12 de maio de 2025) desse grande agente da comunicação sincera e desarmada, a comunidade soube se manter fiel ao chamado do Senhor. Por dezoito anos foi conduzida pelo católico Ir. Alois da Alemanha e, desde dezembro de 2023, pelo atual prior, o britânico e anglicano Ir. Matthew. Integrada por cerca de oitenta irmãos de quase trinta nacionalidades distintas, Taizé segue sendo um lugar de franca convivência e plural diversidade.
O mundo está à beira do colapso atômico, ecológico e civilizacional, fundado em uma economia que mata. Precisa-se, portanto, urgentemente, recuperar o sentido da confiança e da esperança na humanidade. Para tanto, a comunidade de Taizé e aqueles e aquelas que partilham a sua espiritualidade podem muito contribuir, com a enorme experiência que cultivaram desde a sua fundação.
Passados quase oitenta e cinco anos das primeiras iniciativas do destemido jovem Roger, é preciso retomar com mais força e especial atenção o apelo pela fraternidade universal, como reforçou Francisco na Fratelli Tutti. Seja o fogo ateado pela violência dos pacíficos, “um fogo que acenda outros fogos”, como conclamou o jesuíta chileno Santo Alberto Hurtado. Possa a semente do diálogo sempre mais florescer nessa primavera do Espírito! Vida longa à Taizé, a parábola da reconciliação em meio ao mundo dilacerado!
[1] SCHUTZ, Roger. As fontes de Taizé. Taizé: Les Presses de Taizé, 2001.
[2] SPINK, Kathryn. A vida do Irmão Roger, fundador de Taizé. Braga: Apostolado da Oração, 2004, p. 49.
[3] FELDMAN, Christhian. Irmão Roger de Taizé: uma esperança viva. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 20.
[4] SCHUTZ, Roger. As fontes de Taizé. Taizé: Les Presses de Taizé, 2001.
[5] FELDMAN, Christhian. Irmão Roger de Taizé: uma esperança viva. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 8.
[6] SCHUTZ, Roger. Violenza dei pacifici. 2ª ed. Brescia: Morcelliana, 1977.
[7] FELDMAN, Christhian. Irmão Roger de Taizé: uma esperança viva. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 48.
[8] SCHUTZ, Roger. Violenza dei pacifici. 2ª ed. Brescia: Morcelliana, 1977, p. 155.
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Taizé: uma parábola de reconciliação para um mundo dilacerado. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU