31 Outubro 2025
“Os Estados Unidos são um império em declínio que reage desaforadamente para recuperar influência política, territórios para a expansão de suas empresas e, sobretudo, para se apropriar dos recursos imprescindíveis que mantenha sua posição hegemônica, em um sistema internacional em transformação geopolítica e com a China em seu encalço, também na América Latina e no Caribe”, escreve Arantxa Tirado, cientista política espanhola, em artigo publicado por La Marea, 30-10-2025. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Desde que os Estados Unidos anunciaram, no início de setembro, o bombardeio a um suposto barco de narcotráfico venezuelano nas águas do Caribe, os ataques contra pequenas embarcações prosseguiram e se estenderam até o Pacífico. Até o momento, dez barcos foram atacados pelas forças estadunidenses, com um saldo de 57 pessoas assassinadas de forma extrajudicial. As vítimas são venezuelanas, equatorianas, colombianas e trinitinas, algumas delas pescadores que tinham saído para pescar em águas territoriais, segundo relatam seus familiares.
No entanto, o secretário de Guerra dos Estados Unidos, Pete Hegseth, constantemente se refere às vítimas como narcoterroristas, sem apresentar provas, e afirma que os ataques cinéticos de suas forças armadas ocorreram em águas internacionais. Em sua mensagem nas redes sociais, no dia 28 de outubro, ao anunciar o mais recente bombardeio “sob a direção do presidente Trump”, Hegseth chega a afirmar que “esses narcoterroristas mataram mais estadunidenses do que a Al-Qaeda e receberão o mesmo tratamento”.
Essas duas referências são relevantes. Primeiro, porque mencionar o comando de Donald Trump por trás dos ataques estabelece uma cadeia de comando e uma eventual responsabilidade penal por assassinatos extrajudiciais que podem ser levados ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Este cenário é improvável porque os Estados Unidos, após terem assinado relutantemente o Estatuto de Roma - instrumento que levou à criação do TPI -, em dezembro de 2000, na administração Clinton, decidiram, um mês após entrar em vigor, em junho de 2002, retirar sua assinatura já sob o governo de George W. Bush. No entanto, conforme aponta o jurista equatoriano Jorge Paladines, os crimes podem, sim, ser tratados pela justiça dos países das vítimas ou por tribunais civis e militares estadunidenses.
Segundo, a comparação com a Al-Qaeda não é por acaso. Além de retirar sua assinatura do Estatuto de Roma, os Estados Unidos decidiram blindar seus funcionários para que jamais sejam processados pelo TPI com uma Lei de Proteção aos Membros do Serviço Americano (ASPA, na sigla em inglês) - aprovada pelo Senado em outubro de 2001, semanas após os ataques de 11 de setembro. A ASPA foi apresentada pelo senador republicano Jesse Helms, sob o argumento de que os Estados Unidos não poderiam permitir que suas tropas e oficiais fossem julgados por “um tribunal ilegítimo, onde o país não tem poder de veto”, pois, segundo sua lógica, nada pode interferir nesta máxima: “O povo americano, o Governo americano e Deus; nada entre Deus e o Governo americano”.
A luta global contra o terrorismo nos Estados Unidos, após o 11-S, marcou um ponto de virada na escala interna e internacional. Serviu para suspender as garantias na política interna, com o Patriot Act, e justificar o uso de quaisquer métodos, legais ou ilegais, contra seres humanos estrangeiros que foram desumanizados ao se tornarem alvos militares que, como os supostos narcoterroristas hoje, devem ser “caçados e eliminados” no Caribe e no Pacífico, nas palavras de Hegseth.
Nem respeito ao direito internacional, nem à própria legalidade
Como explica Luis Moreno Ocampo, o primeiro procurador-chefe do TPI, em seu livro Guerra o justicia. Hacia el fin de la impunidad, a estratégia militar dos Estados Unidos, baseada em um “perímetro de ‘defesa’ global” que autojustifica suas ações extrajudiciais e extraterritoriais pela capacidade de impor seu conceito de segurança unilateral em todo o mundo, entra em choque com as instituições judiciais independentes. Para deixar claro, os Estados Unidos estão acima do arcabouço jurídico internacional porque possuem poder de coerção suficiente para impor sua vontade aos demais atores do sistema internacional e, assim, garantir a impunidade de seus crimes.
Como diria Dante Alighieri, em seu italiano antigo, àqueles que entravam no inferno: “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate”. Traduzindo para o português claro e para a atual correlação de forças do sistema internacional: não tenham ilusões. Nem os Estados Unidos como país, nem qualquer um de seus funcionários civis ou militares pagarão por seus inúmeros crimes de guerra perante instâncias judiciais internacionais. Tampouco é provável que sejam punidos nos tribunais de outros países, pois isto implicaria a capacidade das autoridades políticas de tais países para exercer a pressão diplomática necessária diante dos Estados Unidos, bem como a força de seus membros da justiça para enfrentar o poder estadunidense. Por ora, o presidente equatoriano Daniel Noboa, aliado de Donald Trump, declarou que primeiro é preciso determinar se o cidadão de seu país sobrevivente aos ataques é inocente e se sofreu uma tentativa de assassinato por parte da força militar estadunidense.
Os Estados Unidos não só ignoram ou violam as leis internacionais quando não respondem a seus interesses geoestratégicos, conforme atesta a História do século XX e a mais recente do XXI, como também ignoram sua normativa legal quando não serve para alcançar seus objetivos na política externa. É o que está acontecendo com os bombardeios no Caribe e no Pacífico, conforme diversos congressistas vêm denunciando, há semanas, na Câmara dos Representantes e no Senado. Se não há uma declaração oficial de guerra que autorize o presidente a iniciar seus ataques, o Governo dos Estados Unidos está operando, mais uma vez, na mais absoluta ilegalidade. Nada de novo, assim como também não é a impunidade de seus crimes.
De acordo com a própria legislação estadunidense, o Congresso é o único poder que pode declarar guerra, conforme o artigo I, seção 8, cláusula 11, da Constituição dos Estados Unidos da América. Isto não aconteceu. Além disso, os argumentos usados pelo governo atual para justificar sua “defesa” desaparecem diante da evidência de suas próprias leis.
Nem o tráfico ilegal de drogas supõe um “ataque armado ou um ataque armado iminente” contra os Estados Unidos, por mais que Donald Trump, Marco Rubio ou Pete Hegseth tentem vinculá-lo ao narcoterrorismo, como tampouco a designação de um grupo como “organização terrorista estrangeira” ou como “terrorista global especialmente designado” confere ao presidente dos Estados Unidos o direito de usar a força militar contra seus membros ou qualquer Estado estrangeiro, neste caso, a Venezuela.
Nem mesmo a Autorização para o Uso da Força Militar de 2001, promulgada após os ataques de 11 de setembro, nem a Autorização para o Uso da Força Militar de 2002 contra o Iraque pelo Congresso, permitiriam tal ação, segundo a Resolução Conjunta 51, apresentada por Ilhan Omar e outros representantes democratas na Câmara, em setembro passado.
Neste contexto, não é irrelevante que Alvin Holsey, chefe do Comando Sul, unidade que supervisiona todas as ações dos Estados Unidos na América do Sul, América Central e Caribe, tenha anunciado em meados de outubro que anteciparia sua aposentadoria, o que foi interpretado como uma rejeição à estratégia de ataques no Caribe.
Uma guerra multifatorial dirigida à troca de regime na Venezuela, mas não só…
Além disso, a escalada das últimas semanas apresenta elementos que deveriam soar o alarme em toda a comunidade internacional, incluindo, aqui, a União Europeia, que se cala e respalda os crimes de seus aliados. Os ataques no Caribe, já estendidos ao Pacífico, se unem ao anúncio de Trump sobre operações secretas da CIA contra a Venezuela, raramente divulgadas. Tudo isto faz parte de uma ofensiva que tem por finalidade a troca de regime na Venezuela por meio de uma operação de guerra psicológica e também com a ameaça de uma intervenção terrestre.
Independentemente se esse último ponto está confirmado ou não, o que alguns ex-funcionários estadunidenses colocam em dúvida, o certo é que os setores mais obstinados da oposição venezuelana veem como cada dia mais perto a remoção de Maduro e a chegada da “liberdade” à Venezuela, de mãos dadas com os Estados Unidos, sobretudo desde que a sua líder, María Corina Machado, recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Estamos diante de um dos momentos de máxima pressão da administração trumpista sobre a Venezuela. Agora, com irradiações regionais na Colômbia, cujo presidente, Gustavo Petro, e sua família foram incluídos na Lista Clinton do Departamento do Tesouro, que inclui indivíduos punidos pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC) por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Neste caso, após Petro ter denunciado as ações letais dos Estados Unidos. Esta decisão estadunidense também demonstra uma escalada no confronto entre os dois países, após a chegada de Petro ao Governo do país que, por décadas, foi o principal aliado dos Estados Unidos na América do Sul, proxy em sua guerra contra a Venezuela e o único Estado latino-americano parceiro global da OTAN, desde 2017.
Marco Rubio está cumprindo rigorosamente o que anunciou no início de seu mandato, quando propôs a inclusão dos cartéis de drogas na lista de “organizações terroristas estrangeiras (FTO) e terroristas globais especialmente designados (SDGT)”, e abriu as portas para incluir os Estados que não colaboram na luta contra o narcotráfico à lista de países patrocinadores do terrorismo. Daí à designação da Colômbia como Estado patrocinador do terrorismo, e seu presidente como narcoterrorista equiparável a Nicolás Maduro, já classificado como tal pelos Estados Unidos, é apenas um passo.
O segundo mandato de Trump está demonstrando ser um autêntico perigo para a segurança de seus vizinhos hemisféricos e de todo o mundo. Contudo, não nos enganemos, não estamos diante de uma situação provocada somente pela liderança tóxica de Donald Trump, nem pelas decisões de figuras como Marco Rubio e seus problemas não resolvidos com o socialismo latino-americano, ou por um Pete Hegseth descontrolado.
O mundo enfrenta uma política imperial, com linhas de continuidade histórica, apesar da alternância governamental e suas diferenças táticas. Os Estados Unidos são um império em declínio que reage desaforadamente para recuperar influência política, territórios para a expansão de suas empresas e, sobretudo, para se apropriar dos recursos imprescindíveis que mantenha sua posição hegemônica, em um sistema internacional em transformação geopolítica e com a China em seu encalço, também na América Latina e no Caribe.
Talvez os Estados Unidos tenham a pior liderança para transitar esta conjuntura. Ou talvez, ao contrário, tenha sido essa crise hegemônica que levou o povo estadunidense a votar nessa liderança. Seja como for, não são apenas os Estados Unidos, a Venezuela e a Colômbia que arriscam seu futuro no Caribe e no Pacífico. A humanidade também.
Leia mais
- Estados Unidos: nem o direito internacional nem a ordem baseada em regras. Artigo de Youssef Louah Rouhhou
- Um novo ataque dos EUA contra outro suposto barco de narcotráfico no Pacífico eleva o número de execuções extrajudiciais para 61
- A nova obsessão de Trump: usar o exército dos EUA contra os cartéis de drogas em território estrangeiro
- Trump envia quatro mil fuzileiros navais ao Caribe para combater cartéis de drogas
- Trump e América Latina e Caribe: Um laboratório de controle? Artigo de Carlos A. Romero, Carlos Luján, Guadalupe González, Juan Gabriel Tokatlian, Mônica Hirst
- Trump aumenta o destacamento militar perto da Venezuela após autorizar operações terrestres no país
- Trump autoriza operações da CIA na Venezuela e anuncia ataques dentro do país: "Agora vamos detê-los em terra"
- Trump suspende ajuda à Colômbia e acusa Petro de ser um "líder do narcotráfico"
- Trump ressuscita o intervencionismo dos Estados Unidos na América Latina
- Latinos encurralados por Trump: paralisação do governo aumenta perseguição à imigração
- Milei-Trump venceu e manteve a colônia
- Os recados da América Latina na 80ª Assembleia Geral da ONU
- Existe ameaça real de intervenção dos EUA na América Latina?
- Sob as mãos de ferro dos EUA e as flores arrancadas da Venezuela e da América Latina. Artigo de Ivânia Vieira
- Equador: Daniel Noboa foi reeleito segundo a contagem oficial, mas Luisa González rejeita a derrota
 
                         
                         
                         
		