25 Outubro 2025
“Os darwinistas sociais negaram muitos aspectos e comportamentos da sociedade humana que se baseiam na cooperação, e isso teve inúmeras implicações negativas para a humanidade e o planeta. É importante que não descuidemos e ignoremos a existência de uma cooperação exitosa dentro da nossa própria ecologia humana”, escreve Mona Shomali, escritora, artista e ambientalista iraniano-americana, em artigo publicado por La Marea-Climática, 23-10-2025. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Os economistas e líderes empresariais adotam um conceito distorcido de evolução: as corporações e os sistemas sobrevivem, dizem, devido a vantagens competitivas que os tornam superiores e capazes de dominar (ou destruir) sistemas, empresas, pessoas e nações mais frágeis. Isto, argumentam, faz com que os sistemas humanos sejam como a natureza. Os fracos desaparecem dos ecossistemas, ao passo que os fortes persistem: a chamada “sobrevivência do mais apto”.
O cientista cuja obra inspirou esse termo discordaria deles.
Dei uma aula na New School, na cidade de Nova York, sobre a relação entre cultura e meio ambiente. Como disse aos meus alunos, os defensores do capitalismo utilizam a “sobrevivência do mais apto” e uma percepção incorreta da competição no mundo natural para justificar a eliminação das redes de seguridade social para as pessoas mais vulneráveis de nossa sociedade. Trata-se de uma justificativa implícita, por exemplo, nas ações atuais do governo vigente.
Na minha experiência, toda vez que alguém questiona se a competição deveria ser um valor central - como no capitalismo -, as pessoas muitas vezes dizem: “É natural! Basta olhar para a natureza!”.
E se essa defesa do capitalismo como algo natural estiver equivocada e a competição nunca ter sido a única forma de “sobreviver” ou ser “apto” em um ecossistema? O que acontece se aqueles que interpretaram as teorias do naturalista Charles Darwin e as aplicaram às sociedades e economias humanas simplesmente tenham selecionado as partes da teoria que pareciam justificar sua agenda?
Darwinismo social
Em meados dos anos 1850, Darwin começou a observar e estudar como os organismos e as espécies individuais encontram seu nicho. Quando um animal encontra seu lugar e função em um ecossistema, escreveu, esse animal encontrou seu nicho. Embora as espécies possam competir por um nicho, também podem se adaptar e cooperar por um. Uma espécie é a mais apta quando um número suficiente de seus membros encontra um nicho dentro do ecossistema em que vive. E quando um número suficiente de membros encontra um nicho, Darwin explica esse processo como “sobrevivência do mais apto”.
Nas décadas posteriores à publicação do livro inovador de Darwin, A origem das espécies, um grupo de pensadores ocidentais utilizou sua teoria da seleção natural para tentar explicar a competição feroz e cruel na sociedade humana.
O darwinismo social, conforme eles o definiram, sustenta que indivíduos, grupos e povos estão sujeitos às mesmas leis darwinistas de seleção natural que as plantas e os animais. Pensadores ingleses como Herbert Spencer defenderam esta teoria, no final do século XIX e início do século XX, e segue ecoando hoje em dia.
O darwinismo social afirma que as classes altas competiram por ser aptas e venceram o jogo da seleção natural. Sugere falsamente que certas classes sociais são superiores e que a desigualdade social e a inação política são um resultado natural da competição.
Não deveria surpreender que os pensadores colonialistas europeus tenham utilizado o darwinismo social para racionalizar a pressão por reformas progressistas.
Contudo, tal justificativa se baseia em um mal-entendido e adulteração das observações de Darwin, porque ele também havia observado o papel igualmente importante da cooperação nos ecossistemas. A competição e a cooperação são naturais entre todas as espécies.
A cooperação como mutualismo
É essencial não deturpar a dinâmica do ecossistema para justificar uma forma de organizar a sociedade humana.
De acordo com o estudo da ecologia, uma relação entre duas espécies em que ambas se beneficiam da cooperação é conhecida como mutualismo. Esta relação confere a ambas as espécies uma vantagem que de outro modo não teriam. O mutualismo é uma cooperação biológica que permite a dois organismos melhorar suas chances de êxito e reprodução no ecossistema.
Por exemplo, os golfinhos precisam da ajuda do atum para encontrar os peixes menores dos quais ambos se alimentam. Os ecólogos chamam isto de caça conjunta. Em outro caso, os pássaros pica-bois comem os carrapatos da pele dos antílopes impala africanos. O pica-boi se beneficia por ter uma refeição, e o antílope se beneficia por ter menos carrapatos incômodos.
A polinização é outro exemplo: os insetos transportam pólen de uma planta para outra, ao mesmo tempo em que se beneficiam do néctar das flores em que pousam. À medida que insetos como abelhas ou borboletas pousam nas flores para se alimentar, também fertilizam as plantas com o pólen em seus corpos. O pólen é transferido do estame para o estigma, o que permite a produção de flores e frutos. Os insetos que polinizam especificamente as plantas em troca de alimento são conhecidos como insetos benéficos.
A cooperação como adaptação
Em A origem das espécies, Darwin descreveu um processo em que certas espécies prevaleceram sobre outras porque eram melhores na adaptação. Haviam cooperado com outros organismos ou com fatores não vivos em seu ambiente para conseguir sobreviver. Os ecólogos se referem à adaptação como o processo de mudar com o tempo para que um organismo possa estar mais bem preparado para encontrar um nicho e sobreviver no ecossistema. Quando o ecossistema muda ou desaparece rapidamente, a espécie se vê obrigada a considerar uma nova cooperação dentro do novo ecossistema.
As primeiras e mais famosas descrições de adaptação feitas por Darwin foram seus estudos dos animais das Ilhas Galápagos do Equador. Após observar as aves locais, Darwin notou que o formato dos bicos dos tentilhões tinha se adaptado ao longo do tempo para se ajustar ao formato do que estavam comendo: flores, insetos, sementes e frutas.
Os camelos também se adaptaram com êxito a um dos ecossistemas mais hostis: o deserto quente e seco. Um camelo pode passar uma semana ou mais sem beber água, o que significa mais do que a maioria dos animais consegue tolerar. Seus corpos também conservam água ao não suar com o aumento da temperatura. Os camelos também conseguem sobreviver vários meses sem comida porque armazenam gordura em suas corcovas. No entanto, se o deserto seco se tornasse repentinamente frio e úmido, um camelo não estaria preparado e se veria desafiado a se adaptar rapidamente.
Alguns animais se adaptaram aos seus ambientes como proteção contra os predadores. Uma excelente maneira de evitar ser comido por um predador é se camuflar entre a folhagem. Muitos insetos, como o louva-a-deus, evoluíram para se assemelhar às folhas entre as quais vivem.
Ao longo de milhares de anos, plantas e animais evoluíram para tolerar perturbações repentinas ou condições persistentes em seus ambientes locais. Todo organismo vivo faz parte de uma espécie que descobriu como prosperar apesar das condições flutuantes do ecossistema. Adaptação significa que a espécie precisa se redesenhar e se remodelar para encontrar um novo nicho em um ecossistema em mudança. Para sobreviver, a espécie terá que encontrar um novo propósito.
Mudança climática: a falta de adaptação
As mudanças rápidas em um ecossistema, como a mudança climática, são problemáticas e não dão tempo para que humanos, animais e plantas se adaptem à mudança nova e repentina em seu ecossistema.
Os animais e as plantas se adaptam e cooperam, mas este não é um processo rápido, e as mudanças adaptativas dentro de um ecossistema podem levar várias gerações ou séculos. Uma espécie morre se não se adapta com rapidez suficiente, mas as espécies que demonstrarem maior cooperação e adaptação terão uma enorme vantagem ao enfrentar perturbações e desastres.
Para levar a ideia de adaptação um passo além, eu argumentaria que nosso fracasso em combater a mudança climática está enraizado em nossa incapacidade humana de nos adaptarmos às condições que a causam. Nós nos adaptamos reconhecendo as limitações dos ambientes em que vivemos e planejando consequentemente para não explorar, consumir em excesso e poluir. Se pudéssemos nos adaptar às limitações do que nossos ecossistemas conseguem tolerar - por exemplo, a quantidade de carbono que nossa atmosfera pode tolerar -, teríamos uma chance maior de sobrevivência.
Competição e falsa escassez
As espécies estão sempre competindo por um nicho, pois se esforçam pelo mesmo lugar no ecossistema. A competição ocorre quando os organismos lutam pelo mesmo nicho ou por um semelhante, pois não há um suprimento adequado de um recurso limitado na mesma área. Por exemplo, chitas e leões se alimentam de presas semelhantes (como impalas). Esses competidores também se matarão na luta pelos recursos.
Quando as espécies lutam por um nicho, dependem da competição. A espécie que vence a competição transmite suas características físicas para as gerações futuras, ao passo que a espécie que perde se extinguirá. A competição “funciona” devido à escassez de recursos.
Como sociedade humana, podemos decidir e nos organizar para determinar o que fazer quando os recursos são escassos. Temos uma função executiva que nos permite gerenciar ou compensar a escassez. Eu argumentaria que muitos governos criam uma falsa escassez por meio de suas prioridades e políticas e as escolhas sobre quais programas cívicos decidem financiar e quais não. Isto praticamente garante “perdedores” em nossos sistemas sociais.
Reconhecendo a cooperação humana
Darwin explicou em seus escritos que os “mais aptos” não são necessariamente os maiores, mais fortes ou lutadores melhores do grupo. Detalhou como uma espécie pode ser “apta” e sobreviver por meio da cooperação.
A aplicação errônea da teoria de Darwin por pensadores ocidentais para se concentrar seletivamente na competição é abrangente; o viés darwinista social em favor da competição vem sendo utilizado para justificar a propriedade privada dos recursos do ecossistema, em vez da propriedade comunal. Quando os colonizadores desembarcaram nas Américas, Austrália, Nova Zelândia e África, dividiram as terras indígenas de propriedade comunal e forçaram a privatização. Na propriedade privada, as pessoas competem para possuir individualmente um bem do qual se consegue excluir o uso de outros. Na propriedade comunal, requer-se adaptação e cooperação para desenvolver uma estrutura de partilha.
Em outra de minhas conferências, discuti como Elinor Ostrom ganhou um Prêmio Nobel de Economia por seu trabalho se opondo à inevitabilidade da “tragédia dos comuns” e ilustrando que os recursos de propriedade comunal podem ser bem administrados. Descreveu estudo de caso após estudo sobre como as instituições culturais indígenas se desenvolveram para gerenciar a cooperação ou, como ela a chamou, a ação coletiva, como um desafio direto à ideia de que a privatização é uma parte necessária da modernização e o status quo no mundo ocidental.
Os darwinistas sociais negaram muitos aspectos e comportamentos da sociedade humana que se baseiam na cooperação, e isso teve inúmeras implicações negativas para a humanidade e o planeta. É importante que não descuidemos e ignoremos a existência de uma cooperação exitosa dentro da nossa própria ecologia humana. Com uma compreensão da dinâmica real do ecossistema, em vez de extrapolações enviesadas e falsas, podemos reivindicar a cooperação.
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