25 Outubro 2025
"A verdadeira aceleração necessária não é em direção ao abismo, mas uma ruptura ética que interrompa nossa passividade diante dos múltiplos apocalipses que coexistem com a banalidade cotidiana",
O artigo é de Slavoj Žižek. A tradução é de Ricardo Evandro S. Martins.
Slavoj Žižek, filósofo esloveno, é professor de filosofia na European Graduate School e diretor internacional do Birkbeck Institute for the Humanities da Universidade de Londres. Autor, entre outros livros, de Em defesa das causas perdidas (Boitempo).
Capítulo publicado originalmente no livro Against Progress, (Londres: Bloomsbury, 2025).
Eis o artigo.
1
Aceleracionismo, uma forma recente de determinismo histórico, é uma noção cujo núcleo básico não deveria ser confundido com suas diferentes versões e aspectos (neofeudalismo contra democracia igualitária, comunismo da abundância e assim por diante). O impulso no coração do aceleracionismo é claramente articulado por Nick Land no título de seu livro sobre Georges Bataille, The Thirst for Annihilation.[1]
A mensagem de Land é esta: capitalismo é equivalente à desterritorialização, uma intensificação permanente do desenvolvimento, uma superação de uma vez por todas sobre todas as formas estáveis de vida social. Desafiando Gilles Deleuze e Félix Guattari, Land insiste que não há outra desterritorialização efetiva: todas as tentativas nesta direção (especialmente as de esquerda) ficaram emperradas e foram consumidas pelo capitalismo.
No entanto, este processo acelerado não continua indefinidamente: um momento final está inscrito em sua lógica, o momento da autoabolição ou autossuperação da humanidade, quando não seremos mais humanos mortais confinados aos nossos corpos, mas realizaremos nossas fantasias de virmos a estar conectados diretamente como uma mente coletiva. Como indica o título dos escritos reunidos de Land – Fanged Noumena [2] – a ideia é que, neste ponto, a distinção kantiana entre fenômeno (a realidade ordinária que experienciamos) e noúmeno (o modo como as coisas são em si mesmas) se romperá e iremos experienciar o Real noumênico diretamente.
Como isto será alcançado? Um dos fundamentos-chave desta aceleração é o desenvolvimento explosivo da Inteligência Artificial, a qual levará inevitavelmente à ascensão da Singularidade, uma autoconsciência coletiva divina, aterrorizante/regozijante, que engolfará os indivíduos, privando-os de seus egos singulares, absorvendo-nos em um todo glorioso.
Diante do avassalador pessimismo humanista sobre o que virá a ser de nós no novo mundo permeado pela IA, o aceleracionismo celebra jubilosamente, assim, a autoextinção da humanidade. No entanto, esta postura está longe de endossar o que Sigmund Freud chamou de "pulsão de morte"; equivale mais, antes, à sua completa negação. A corrida precipitada e exuberante em direção ao ponto zero é a teleologia determinista em sua pior forma: a história tem um ponto final predeterminado, e nossa prazerosa busca por alcançá-lo é o gozo em sua forma mais pura.
A pulsão de morte freudiana, ao contrário, descreve um processo de procrastinação sem fim, de perda do ponto (final) repetidas vezes. Como rapidamente uma leitura atenta de Freud demonstra, a pulsão de morte era o nome que ele deu a uma imortalidade estranhamente obscena, uma pulsão que insiste na existência além do binário vida e morte; o que no gênero do terror é chamado de zumbi [3], o morto-vivo.
A pressão aceleracionista em direção à autoaniquilação não é, na verdade, uma pulsão de morte, mas simplesmente um desejo de atingir o fim. Como fazem os observadores chocados em Rei Lear, reagindo à visão da Cordélia morta nos braços de seu pai – "É este o fim prometido?/Ou a imagem daquele horror?" – o aceleracionismo postula que pior do que a aniquilação é o adiamento perpétuo desta aniquilação, a ideia horripilante de que o nadir [4] pode ser infinitamente adiado.
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O termo “Iluminismo obscuro” usado por Land [5] é plenamente justificado: o aceleracionismo traz a lógica do progresso incessante que caracteriza o Iluminismo ao seu ponto extremo. E o fim a qual o aceleracionismo almeja é, acima de tudo, o fim da política como a conhecemos: o aceleracionismo imagina uma sociedade que erradicará os antagonismos sociais que animam, que constituem, a vida política. (Deve-se notar aqui que Lênin também vislumbrou uma sociedade sem política: ele escreveu que os bolcheviques previram uma era futura em que as decisões sociais seriam tomadas por especialistas despolitizados).
Livro "Against Progress", de Slavoj Zizek (Bloomsbury Academic. 2025)
É a sua ingenuidade em relação ao processo que torna o aceleracionismo demasiado otimista: antes que a Singularidade pós-política possa ser alcançada, nós – a humanidade – temos de confrontar possibilidades autodestrutivas muito mais imediatas, desde catástrofes ecológicas e guerra global até o caos social, onde a política, no seu auge, terá de intervir.
Mesmo que este tão aguardado estado de Singularidade seja alcançado, é imanentemente falso: o que se apresenta como um futuro pós-humano é uma fantasia, a qual permanece enraizada na nossa finitude e mortalidade (humanas), a sua emergência é baseada no fato de permanecermos seres mortais finitos. Para colocar em termos filosóficos especulativos: a existência histórica da humanidade não é a realidade última, ela emerge de uma lacuna (pré-)ontológica denominada por Martin Heidegger de "diferença ontológica" e por G.W.F. Hegel de "negatividade autorrelacionada".
Qualquer visão de Singularidade apenas evita ou ofusca esta lacuna, não a abole nem a supera realmente. É claro que a humanidade pode se aniquilar de muitas maneiras, mas o que se seguirá não pode ser antecipado. Esperanças, do contrário, são meras aspirações, projeções tristes em direção ao abismo.
A visão de futuro descrita pelo aceleracionismo é mais do que uma tendência. É uma das determinações "sobrepostas" do nosso futuro, a qual, parafraseando Jean-Pierre Dupuy, se acontecer, aparecerá como se tivesse sido sempre necessária. O pensamento de Dupuy é um antídoto importante contra a visão simplista demais de que existem duas possibilidades: catástrofe (seja militar, ecológica ou social) ou recuperação. O que temos, em vez disto, são duas necessidades sobrepostas [6]. Em nossa situação, é necessário que haja uma catástrofe global; a lógica de toda a nossa história como espécie exige isso.
E é necessário que ajamos para evitá-la, porque a alternativa é, em um sentido muito literal, impensável e porque a omissão envolvida nisto é imperdoável. Em uma colisão destas duas necessidades sobrepostas, apenas uma delas se concretizará por si mesma, de modo que, em ambos os casos, nossa história irá ser (terá sido) necessária [7].
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Nosso horizonte final é aquilo que Dupuy chama de "ponto fixo" distópico, o ponto zero da guerra nuclear, do colapso ecológico, do caos econômico e social global, ou de algum outro apocalipse ainda inimaginável. Mesmo que seja adiado indefinidamente, esse ponto zero é o "atrator" virtual para o qual nossa realidade, deixada a si mesma, tende. A única maneira de combater essa catástrofe futura é por meio de atos, os quais interrompam nossa descida passiva em direção a este "ponto fixo" [8].
Em uma entrevista em setembro de 2023, o General Maior Russo aposentado Alexander Vladimirov descreveu um destes "pontos fixos" ao alertar que a guerra nuclear seria a conclusão "inevitável" da invasão da Ucrânia pela Rússia: "Para que se transite ao uso de armas de destruição em massa, apenas uma coisa é necessária: uma decisão política do Comandante Supremo [Vladimir Putin]", alertou o veterano comandante em entrevista ao jornalista Vladislav Shurygin. "Os objetivos da Rússia e os objetivos do Ocidente são suas sobrevivências e a eternidade histórica. E isso significa que, em nome disto, todos os meios de luta armada disponíveis a eles serão utilizados, incluindo uma ferramenta como armas nucleares deles (...) Tenho certeza de que armas nucleares serão usadas nesta guerra – inevitavelmente, e disto nem nós nem o inimigo temos para onde ir." [9]
Poucos meses antes desta entrevista, foi lançado o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan. O uso do Bhagavad Gita durante uma cena íntima irritou muitos espectadores indianos, alguns dos quais recorreram ao Twitter, questionando como a censura havia liberado a cena.
Uma declaração da Fundação Save Culture Save India afirmou:
Não sabemos a motivação e a lógica por trás dessa cena desnecessária [na] vida de um cientista. Uma cena do filme mostra uma mulher obrig[ando] um homem a ler o Bhagwad Geeta em voz alta enquanto se aproxima dele e mantém relação sexual [10].
Minha reação a esta cena é exatamente a oposta: Bhagavad Gita defende uma ética horrível de massacre militar como um ato do mais alto dever, então deveríamos protestar que um ato gentil de amor apaixonado é manchado por uma obscenidade espiritualista. Vladimirov não está fazendo algo semelhante na passagem citada? Ele apresenta uma autodestrutiva paixão assassina em termos de uma "eternidade histórica" elevada. No sentido de encontrar nosso caminho na confusão em curso, deveríamos seguir o exemplo (indiscutivelmente) montado por Nolan e trazer à tona o horror que sustenta a "espiritualização" da paixão carnal.
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O alerta dado por Vladimirov não deveria ser descartado absolutamente como uma mera ameaça estratégica na guerra ucraniana em curso: mesmo que a intenção fosse esta, o alerta possui uma lógica própria implacável, que pode levar os atores a concretizarem aquilo que pensavam ser apenas uma ameaça. Claramente, já ultrapassamos a lógica da DMA (destruição mútua assegurada), a qual impediu a catástrofe nuclear durante a Guerra Fria: a destruição mútua é simplesmente apresentada como inevitável, uma vez que "nem nós nem o inimigo temos para onde ir"...
A chave para entender essa aparente falta de recursos é a afirmação de Vladimirov de que "os objetivos da Rússia e os objetivos do Ocidente são sua sobrevivência e eternidade histórica" – o que o estranho termo "eternidade histórica" significa aqui? É uma pista para como os militares russos de alta patente entendem a situação, enquanto dependente de uma série de escolhas radicais: como se a Rússia, não menos que a Ucrânia, estivesse lutando pela sobrevivência e, portanto, nenhum desses países tivesse como apaziguar a situação. (É claro que isto é totalmente contrário aos fatos como o resto do mundo os entende: que a Rússia nega a própria identidade e o direito de existir da Ucrânia, enquanto ninguém expressou qualquer intenção ou interesse em alterar as fronteiras russas).
A Rússia também luta pela sobrevivência apenas se entendermos "Rússia" como algo, literalmente, muito maior: o espaço geográfico ocupado pela Rússia imperial, pela União Soviética. Essa compreensão lembra a "nova cronologia" de Anatoly Formenko, que postula (entre outras coisas) que todas as grandes cidades e impérios da história são meras refrações conspiratórias de Moscou e da "Horda Russa".
O que é eterno na "eternidade histórica" é a ideia duradoura da Rússia em seu auge, em sua maior expansão. É por isto que Vladimirov não invoca a desculpa da defesa justificada da Rússia contra o ataque ucraniano; ele até usa a expressão "invasão da Ucrânia pela Rússia" – estamos no reino do destino manifesto, dos destinos de grandes nações, de uma batalha até a morte onde questões menores como "quem começou isto?" se tornam insignificantes. "Não vamos brigar e discutir sobre quem matou quem", como diria Monty Python.
Então, o que é para fazer? Para começar, deveria-se ler a situação atentamente para detectar sinais que possam apontar em uma direção diferente em relação ao simplista desenvolvimento linear em direção à ruína. Em meados de setembro de 2023, foi relatado que uma rede de tráfico de pessoas havia sido descoberta em Cuba, que "visava recrutar cubanos para lutar como mercenários ao lado da Rússia em sua guerra na Ucrânia". O Ministério das Relações Exteriores Cubano emitiu um comunicado, anunciando a descoberta da rede e que as autoridades estavam trabalhando para "neutralizá-la e desmantelá-la" [11]. Deve-se, é claro, imediatamente fazer a seguinte pergunta: Cuba, um país rigidamente controlado, realmente "descobriu" tal rede tão repentinamente? Eles devem ter sabido disso há algum tempo, então a verdadeira questão se torna: Por que o governo cubano decidiu tornar pública essa "descoberta" neste momento e encerrar as atividades da rede? Isso significa que até mesmo Cuba, firme apoiadora da Rússia em sua guerra contra a Ucrânia, decidiu se distanciar da perigosa aventura russa?
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De modo mais geral, a única abordagem possível, baseada em princípios e, ao mesmo tempo, pragmática, é a da rejeição: tomar conhecimento das ameaças nucleares russas, mas ignorá-las no nível da diplomacia e da estratégia militar. A pior coisa a fazer é sucumbir à chantagem russa e seguir a lógica de "não devemos provocar demais a Rússia" – deve-se continuar a ajudar a Ucrânia, deixando claro que ninguém quer se apropriar de qualquer parte do território russo (dentro de suas fronteiras antes da ocupação da Crimeia, é claro). A Rússia deve ser empurrada para uma posição em que fique claro que, se usar armas nucleares, faz isto por vontade própria, não em reação desesperada a uma ameaça existencial ao seu território.
E isso nos traz de volta ao nosso ponto de partida: o aceleracionismo. Sua fraqueza básica é ser muito estático: a mudança radical que prevê é apenas a conclusão final de uma das tendências dentro da ordem mundial existente – em sua visão muito utópica de uma sociedade pós-humana, o aceleracionismo falha completamente em questionar as coordenadas básicas dessa ordem mundial. Vivemos em uma época estranha em que o cenário de uma guerra nuclear global coexiste de forma neutra com a guerra cultural dos neoconservadores populistas contra a Cultura do Cancelamento, enquanto que no Ocidente desenvolvido a vida parece continuar como de costume – no verão de 2023, as pessoas na Europa estavam preocupadas principalmente com a possibilidade de que o mau tempo e o cancelamento de voos arruinassem suas férias...
Nossa verdadeira loucura reside nessa coexistência pacífica de opções radicalmente diferentes: é possível que todos pereçamos em uma guerra nuclear, mas o que realmente nos incomoda é a Cultura do Cancelamento ou os excessos populistas, e, em última análise, não nos importamos nem com isso, mas apenas com nossas vidas diárias.
Racionalmente, sabemos que estes três níveis (sem mencionar os desastres ecológicos) estão interconectados, mas continuamos a agir como se não os estivessem. O único imperativo ético-político é, portanto, negativo: a pluralidade das crises atuais deixa claro que as coisas não podem continuar como estão agora – como procedemos é uma questão de risco e improvisações.
Notas
[1] Com referência ao Anti-Édipo de Gilles Deleuze. Veja Nick Land, The Thirst for Annihilation (London: Routledge, 1992). Nota do Autor.
[2] Veja os escritos reunidos de Land: Nick Land, Fanged Noumena: Collected Writings 1987–2007 (Falmouth: Urbanomic/Sequence Press, 2011). Nota do Autor.
[3] No original é undeath, mas traduzi para o nome famoso ao gênero do cinema e séries de terror. Nota do Tradutor.
[4] O antônimo de “zênite”. Nadir é, portanto, o ponto mais baixo. Nota do Tradutor.
[5] Veja Nick Land. Iluminismo obscuro. Perth, Australia: Imperium Press, 2022. (Studies in Reaction, vol. 9). Nota do Autor.
[6] Jean-Pierre Dupuy. The War That Must Not Occur. Redwood City: Stanford University Press, 2023. (Citado do maniscristo). Nota do Autor.
[7] No original: “our history will (have) be(en) necessary”. Nota do Tradutor.
[8] Ibid.
[9] Will Stewart, Nuclear war is the “inevitable” conclusion of the Ukrainian invasion, warns Russian general who wrote the nation’s “war bible”’, Mail Online, 5 de setembro de 2023. Disponível aqui. Nota do Autor.
[10] ET Online, “Remove it across the world”: Bhagavad Gita reference in “Oppenheimer” sex scene sparks outrage, The Economic Times, 23 de Julho de 2023. Disponível aqui. Nota do Autor.
[11] Pjotr Sauer, Cuba uncovers “human trafficking ring” recruiting for Russia’s war in Ukraine, msn.com, 5 de setembro de 2023. Disponível aqui. Nota do Autor.
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