21 Outubro 2025
“A vida cristã não é apenas ação, nem apenas doutrina; é uma experiência de comunhão com o Deus que se faz pobre, que se faz pão, que se faz povo. Quando perdemos isso, restam apenas estruturas, slogans e burocracia espiritual”, escreve José F. Castillo Tapia, padre jesuíta atuante na Amazônia brasileira junto aos povos indígenas.
Eis o artigo.
Há um modo sutil e perigoso de trair o Evangelho: falar muito sobre Deus e, ao mesmo tempo, segui-Lo sem Ele. É o que acontece quando o nome de Deus ocupa nossos discursos, mas o seu Espírito não atravessa nossa vida. Quando multiplicamos palavras sobre sinodalidade, comunhão e participação, mas seguimos trancados em nossas estruturas de poder, distantes do povo, frios diante da dor e insensíveis aos clamores da Terra. A Igreja parece falar de caminhar junto, mas ainda caminha sobre os outros.
Em muitos ambientes eclesiais, perdemos a capacidade de sentir. Falamos sobre escuta, mas não escutamos; celebramos a missão, mas tememos sujar as sandálias no chão das aldeias, nas periferias, nas favelas. Continuamos a repetir fórmulas, discursos e documentos, sem deixar que o povo - com sua fé concreta, sua ternura e sua luta - nos evangelize. Seguimos, muitas vezes, num cristianismo de gabinete, onde o Espírito Santo é substituído por comissões e estratégias pastorais. E assim, inadvertidamente, seguimos a Deus sem Deus.
A tentação do clericalismo continua viva. Não é apenas o padre autoritário, mas todo modo de pensar a fé desde cima, como se o Espírito soprasse apenas nos que têm título e batina. Esse clericalismo se infiltra até nas tentativas de ser “sinodais”, transformando a escuta em formalidade e o discernimento em mera consulta. Falamos do Povo de Deus, mas tememos quando o povo fala com liberdade. Falamos de inculturação, mas não queremos aprender a rezar com os símbolos dos povos, com o ritmo das culturas, com o silêncio das florestas.
Entre dois extremos - o sacramentalismo moralizante e o ativismo político -, a Igreja corre o risco de perder sua alma mística. Uns reduzem a fé a cumprir normas e ritos; outros, a lutar por causas. Ambos esquecem que o centro do Evangelho é o encontro vivo com o Mistério, que é amor e presença. A vida cristã não é apenas ação, nem apenas doutrina; é uma experiência de comunhão com o Deus que se faz pobre, que se faz pão, que se faz povo. Quando perdemos isso, restam apenas estruturas, slogans e burocracia espiritual.
Talvez seguir a Deus sem Deus seja o maior drama de nosso tempo eclesial. Falamos em nome de Cristo, mas já não nos deixamos tocar por Ele. Fazemos pastoral, mas sem paixão. Celebramos, mas sem ardor. E o mundo, ferido e faminto, segue à espera de uma Igreja que não fale apenas sobre Deus, mas que revele Deus no modo como ama, como escuta, como serve.
A mística do Evangelho é o que pode curar nossa indiferença. Não uma mística evasiva, mas encarnada: aquela que nasce do chão, do pobre, da Amazônia, dos povos originários que nos ensinam a perceber a presença divina em tudo o que vive. Voltar à mística é voltar à alma do cristianismo. É deixar que Deus nos desinstale, nos despoje de nossas seguranças e nos devolva o coração. Porque seguir a Deus sem Deus é o mesmo que falar de amor sem amar. E nenhuma Igreja sobrevive a isso.
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