Extrema-direita americana é evangélica, pentecostal, católica, judaica e congrega muitos sem religião. Entrevista especial com Joanildo Burity

Cristianismo cultural, Apocalipse e livros do Antigo Testamento fundamentam teologicamente as ideias políticas da extrema-direita trumpista, afirma o cientista político

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 15 Outubro 2025

A exaltação do cristianismo pela extrema-direita trumpista, diferentemente do que pode parecer à primeira vista, não é um fenômeno exclusivo do governo Trump. O campo evangélico norte-americano, “hegemonizado por um discurso e um projeto de extrema-direita”, afirma Joanildo Burity, está “perfeitamente instalado no Estado – e não a partir de Trump, mas desde Bush filho”.

A novidade dessa relação no governo atual, explica o pesquisador, “é a transformação do discurso da direita evangélica num discurso de cristianismo cultural, que evoca a ideia de que o fundamento da sociedade americana está num pacto, feito pelos chamados Pais Fundadores, em instituir uma sociedade que estaria espelhada nos princípios bíblicos”. Contudo, destaca, a extrema-direita no país, além de evangélica, é pentecostal, católica, judaica e formada por muitas pessoas sem religião.

O cristianismo cultural, explicita o entrevistado, “é a ideia da invocação de valores cristãos por parte de pessoas que não necessariamente tem uma prática cristã do ponto de vista religioso”. Nesse grande guarda-chuva denominado cristianismo, diferentes grupos alinham-se em torno do governo Trump. De um lado, eles compartilham a crítica ao avanço dos direitos civis. De outro lado, buscam seus próprios interesses.

Segundo o pesquisador, há grupos que estão em torno do presidente “por crerem, realmente, naquilo que Trump diz e faz”. Outros estão preocupados com o impacto das novas formas de vida na “cultura cristã”. Alguns “utilizam instrumentalmente o discurso da fé para assegurar que a sociedade esteja pacificada e quieta”, para tomarem decisões políticas. Há ainda os que querem usar o Estado para “conquistar o mundo do ponto de vista religioso”. Tudo isso, no entanto, “é muito diferente de uma religião de conversão”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Burity explica como a adesão ao cristianismo cultural nos Estados Unidos faz parte das transformações no mundo evangélico americano. O pesquisador também sublinha as mudanças teológicas que fundamentam a relação entre religião e política. Com base na leitura do Apocalipse e dos livros do Antigo Testamento a extrema-direita evoca um Estado religioso. “Quase todos os neopentecostais são pós-milenistas e têm a ideia de que a igreja tem o papel e a missão de transformar o mundo e poderá transformá-lo até o ponto em que ele estará maduro para receber Jesus Cristo de volta. Essas são as muitas transformações nesse mundo evangélico americano, hoje, exportadas globalmente”, pontua.

Joanildo Burity (Foto: Religião e Poder)

Joanildo Burity é formado em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor em Ciência Política, com ênfase em ideologia e análise do discurso pela University of Essex, na Inglaterra. É pesquisador titular da Coordenação de Estudos de Cultura, Identidade e Memória e professor do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (Profsocio) da Fundação Joaquim Nabuco e dos programas de pós-graduação em Sociologia e em Ciência Política da UFPE.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é a novidade e particularidade da mescla entre religião e política no governo Trump? O que essa mistura significa neste momento histórico?

Joanildo Burity – No caso do governo Trump, a novidade é a transformação do discurso da direita evangélica num discurso de cristianismo cultural, que evoca a ideia de que o fundamento da sociedade americana está num pacto, feito pelos chamados Pais Fundadores, em instituir uma sociedade que estaria espelhada nos princípios bíblicos. Eles têm uma imagem de uma cidade construída sobre um monte – city on a hill. É uma imagem usada por Jesus nos evangelhos para dar a ideia de uma comunidade que serve de modelo para tudo ao seu redor. Ou seja, todo mundo pode ver a virtude dessa sociedade.

Os evangélicos nos Estados Unidos sempre foram muito fortes do ponto de vista numérico. Durante muitos anos, foram fortemente proselitistas e acreditavam piamente que tinham que salvar a sociedade americana. Isso é muito contraditório com o que eles dizem e fazem hoje, ao defender a existência de uma virtude estrutural na sociedade, que decorreria de um pacto feito no passado, na origem dessa sociedade, na chegada dos colonizadores e, depois, na própria independência americana.

IHU – Em que consiste o cristianismo cultural evocado por eles e qual sua relação com a transformação do mundo evangélico?

Joanildo Burity – Em termos gerais, o cristianismo cultural é a ideia da invocação de valores cristãos por parte de pessoas que não necessariamente tem uma prática cristã do ponto de vista religioso. Pessoas que já não têm mais uma adesão religiosa que ajustam sua conduta cotidiana a princípios religiosos e que, portanto, não frequentam mais espaços religiosos, fazem essa invocação dos valores. Para elas, eles são a base do vínculo social. Se tirar esses valores, a sociedade se desmonta, se fragmenta e se destrói.

Isso é muito diferente de uma religião de conversão. Isso é mais típico a uma religião que se acostumou a ser a religião majoritária e começa a se pensar não mais só como a religião majoritária, mas como a religião essencial, sem a qual tudo o mais se desfará. Isso implica, sim, numa transformação do mundo evangélico americano, que nunca foi homogêneo. Ao mencionar os Pais Fundadores, há uma ambiguidade que nunca é explicada, que está no fato de que vários deles, talvez os mais importantes no tocante ao movimento de independência e construção do Estado americano, não eram pessoas muito ortodoxas do ponto de vista religioso-doutrinário. Eles adotavam visões que pouco ou nada tinham a ver com o que os evangélicos hoje pensam como sendo a fé cristã pura que está raiz da sociedade americana.

Transformação dos evangélicos norte-americanos

Desde os anos 1950, os evangélicos se viram muito ameaçados pelo avanço de pautas morais, como o aborto e os direitos de igualdade das mulheres, e pelos movimentos de direitos civis, como o movimento antirracista que procurava distinguir o apartheid americano – os Estados Unidos já viveram um apartheid; isso não é coisa da África. O sistema de segregação racial americano era institucionalizado e legalizado. Os evangélicos são majoritariamente brancos, mas há uma comunidade evangélica negra muito significativa e heterogênea. Os do Sul tenderam, historicamente, a serem bem mais conservadores do que os do Norte. Hoje, isso não faz mais tanto sentido porque a fronteira se expandiu enormemente até o Pacífico para o Oeste e a ideia do Sul contra o Norte não é mais tão forte.

Os evangélicos se sentiram ameaçados pelas mudanças que foram acontecendo no país: mudanças sociopolíticas, como o avanço das demandas por igualdade racial, mas também a implementação, a partir dos anos 1930, de um pequeno regime de bem-estar social a partir dos anos 1930, depois da Grande Depressão de 1929, especialmente no governo Franklin Roosevelt. Essa rede de apoio social foi bancada com recursos federais e, depois, dos estados. Isso desgostou os evangélicos brancos porque trazia a questão da igualdade social. Eles se viam ameaçados por isso em função da sua origem social, mas também por causa das suas concepções de fé, pouco afeitas à ideia de igualdade.

Desigrejização

No fim dos anos 1970, as transformações que a sociedade americana vivenciava também apontavam para uma forte tendência à desigrejização. As pessoas, mesmo se mantendo com algum pertencimento religioso, já não viam tanta necessidade de participar das igrejas e de uma comunidade religiosa. A sociedade americana tem esse paradoxo de ser uma das sociedades mais secularizadas e, ao mesmo tempo, uma das sociedades com maior vivacidade e dinamismo religioso no mundo contemporâneo e ocidental.

Nova militância evangélica

Essas mudanças desencadearam uma nova militância evangélica, que vai fazer uma convergência na direção do Partido Republicano, no apoio à candidatura de Ronald Reagan e, depois, um alinhamento quase que definitivo – pelo menos até hoje isso foi definitivo – entre evangélicos conservadores e o Partido Republicano. Nos anos 2000, na presidência de George W. Bush, houve uma retomada de uma forte presença evangélica no governo americano – o próprio Bush é anglicano e conservador, mas ele se cercou de um segmento de extrema-direita no campo secular e religioso.

A aliança que foi sendo forjada no governo Bush, mais sistemática ainda do que aquela que existia no governo Reagan e no próprio Bush pai, consolidou a presença evangélica de direita na política americana de uma maneira que antes, talvez, não tivesse sido tão explícita, forte e articulada. Essa direita, além de evangélica, é pentecostal. Além de evangélica e pentecostal, também é católica. Além de evangélica, pentecostal e católica, também é judaica e de pessoas sem religião – muitas pessoas sem religião. Mas todas elas, talvez com exceção dos judeus, estão invocando essa matriz cristã da sociedade americana como o fundamento além do qual não se pode ir. São contrários à conquista, nos espaços do Partido Democrata, das bandeiras de minorias étnicas, de gênero e movimentos de pessoas pobres, imigrantes etc. Essa é a grande mudança.

Projeto de extrema-direita instalado no Estado

Hoje, o campo evangélico norte-americano é hegemonizado por um discurso e um projeto de extrema-direita perfeitamente instalado no Estado – e não a partir de Trump, mas desde Bush filho –, com intervalos referentes às vitórias dos governos democratas. Esses espaços são retomados assim que os republicanos voltam ao poder. Eles têm uma concepção hegemônica de construir a supremacia norte-americana sobre o restante do mundo e, com isso, ter uma sociedade orientada por valores cristãos.

Mudança teológica

Outra mudança muito significativa é teológica. O conteúdo teológico dessa guinada ou virada evangélica na política americana tem duas grandes fontes. Uma delas é no campo protestante mais tradicional, especialmente entre presbiterianos ou batistas – o campo reformado ou chamado reconstrucionismo cristão. É uma teologia que tem o projeto de reconstruir a sociedade em bases cristãs, especialmente considerando os conteúdos legais do Antigo Testamento como válidos ainda hoje para a definição de leis e normas de comportamento social. Os reconstrucionistas têm quase que visceralmente uma posição conservadora e crítica de todos os avanços mais liberalizantes da sociedade. São preocupados em restituir uma espécie de ordem baseada na Bíblia, especialmente na lei do Antigo Testamento.

O campo pentecostal – movimento que chamamos no Brasil de neopentecostal – trouxe um conjunto de inovações que começaram, por exemplo, com a batalha espiritual. É a ideia de que os demônios continuam vivos e ativos e a igreja é chamada a uma luta interminável para neutralizar as forças demoníacas no mundo. Esses demônios não atuam mais apenas no interior das pessoas. Não são apenas questões espirituais; eles atuam em todas as esferas da vida, inclusive na vida pública, na cultura, na economia, na política, nas artes. A batalha espiritual, tendo começado de uma maneira muito individualista, com o neopentecostalismo, acabou assumindo uma amplitude bastante grande.

Da batalha espiritual, uma doutrina secundária, mas relacionada, é a das maldições hereditárias e dos espíritos territoriais. As duas estão mais ou menos conectadas uma com a outra. A ideia delas é que não apenas os demônios podem influenciar a vida pública numa sociedade, como há demônios que se perpetuam nas instituições e nas práticas culturais e precisam ser exorcizados para que as maldições hereditárias, que já não são mais referentes à família de uma pessoa, possam ser banidas da sociedade.

O outro aspecto disso são os demônios territoriais, que não precisam ser de longo prazo. Podem ser recentes, mas tomam o controle de uma área da vida, de um território, no sentido literal, e precisam ser exorcizados. Simbolicamente, pastores e exorcistas voam e sobrevoam os espaços das cidades, bairros, e estados, com o objetivo de orar e exorcizar esses demônios. Esses demônios começam a ser identificados, nomeados, como os demônios da diversidade sexual, do comunismo, da igualdade de gênero ou a chamada ideologia de gênero, do igualitarismo etc.

Concepção de futuro

Por último, acredito que os neopentecostais trouxeram uma enorme transformação na concepção de futuro dos evangélicos, que no caso norte-americano era fortemente pré-milenista e hoje é fortemente pós-milenista. O que quero dizer com isso? Os evangélicos conservadores acreditam que uma passagem do livro do Apocalipse, que fala de um reino de mil anos de Jesus, se refere a um período literal da história que ainda virá. Os pentecostais tradicionalmente acreditaram que esse reinado de mil anos seria precedido por uma grande tribulação, uma grande crise histórica da qual os fiéis cristãos seriam poupados porque Jesus voltaria antes desse reinado de mil anos, levaria a sua igreja para o céu e instalaria um reinado de mil anos na terra. Trata-se de um pré-milenismo: Jesus volta para implementar o reinado.

Os pós-milenistas, influenciados pelo liberalismo do século XIX, otimistas ao que a comunidade liberal estava construindo e achando que tudo aquilo tinha forte relação com o cristianismo, acreditavam que, ao contrário, Jesus voltaria após um reino de mil anos, no qual a igreja seria capaz de construir uma sociedade que estaria preparada para recebê-lo. Essa ideia de que haverá um reino era transformada na ideia de que esse reino não é de Cristo no sentido direto, mas, sim, mediado pelo trabalho histórico, social e evangelista da igreja. Jesus voltará para inaugurar uma nova era que já teria sido preparada pelo trabalho da igreja.

Hoje, quase todos os neopentecostais são pós-milenistas e têm a ideia de que a igreja tem o papel e a missão de transformar o mundo e poderá transformá-lo até o ponto em que ele estará maduro para receber Jesus Cristo de volta. Essas são as muitas transformações nesse mundo evangélico americano, hoje, exportadas globalmente.

IHU – Além do Apocalipse, por que há, entre esses grupos, uma preferência por textos do Antigo e não do Novo Testamento, que levariam a outro entendimento de cristianismo?

Joanildo Burity – Exatamente. A grande diferença é que existe um estado religioso no Antigo Testamento, mas não existe um estado religioso no Novo Testamento. O Novo Testamento é uma fé minoritária, não reconhecida, até mesmo perseguida – embora ainda não seja a perseguição que se tornou historicamente famosa no cristianismo, no fim do segundo século. A perseguição de Nero aos cristãos nos anos 60, 70, que provavelmente levou à morte de Pedro e Paulo, foi significativa, mas foi muito localizada em Roma e em torno de Roma. As perseguições mais amplas são do século segundo em diante.

Os cristãos do Novo Testamento são uma minoria não reconhecida e em forte disputa com a religião de onde saíram. É uma minoria sem estado e sem perspectiva de se tornar maioria. Estão mais preocupados em formar comunidades, em ser um exemplo comunitário para os outros ao seu redor, do que um projeto de exercer poder sobre os outros.

O Antigo Testamento não é assim. Primeiro, ele é um conjunto de escritos por distintos autores e correntes teológicas com maior ou menor proximidade com o poder monárquico implantado no início do primeiro milênio antes de Cristo, muito associado às figuras de Saul, Davi e Salomão, três figuras mítico-históricas da origem da monarquia judaica ou israelita. Havia correntes teológicas próximas ou distanciadas e outras completamente apartadas deste campo definido por um Estado religioso.

Mas há um outro elemento muito forte no Antigo Testamento que é o do pacto entre Deus e um povo, uma comunidade ou grupo de pessoas aparentadas e, portanto, com uma descendência mais ou menos comum. Esse pacto separa esse grupo de pessoas para, entre todos os povos, ser o povo de Deus. Ou seja, um povo que pertence a Deus e leva o nome de Deus para outros lugares. Essa perspectiva que o Antigo Testamento permite pode ser mobilizada em várias direções e já foi em muitos momentos.

Leitura do Antigo Testamento pela extrema-direita

No momento presente, a direita cristã lê o Antigo Testamento da seguinte maneira. Em primeiro lugar, recupera a ideia de pacto e com ela vem junto a ideia de uma lei vinculante, uma lei que se aplica a quem quer que more no território onde esse povo esteja. Podem ser pessoas que se juntaram a esse povo, mas não são da mesma descendência, podem ser pessoas que estão passando um tempo no meio desse povo, ou, obviamente, as pessoas que pertencem a esse povo. Ao mesmo tempo que essa lei se aplica indistintamente a quem quer que esteja ou passe por esse território, ela também distingue entre quem é autenticamente povo de Deus e quem tem a permissão de estar com o povo de Deus, mas não vai nunca ser visto como sendo da mesma cepa.

Veja, não estou dizendo que toda a mensagem do Antigo Testamento é isso. Estou dizendo qual é a leitura que a direita faz dessa mensagem. Alguns chamam de uma leitura fundamentalista, mas acho o termo muito imprestável para dar conta desse caleidoscópio tão grande de posições – mas certamente é uma leitura de direita que se atribui a essa palavra.

Aristocracia estatal

Em terceiro lugar, essa leitura do Antigo Testamento institui um clero e uma aristocracia que controla o Estado, fala em nome do Estado e legitima o Estado com base nesse pacto fundante entre Deus e o povo. Legitima, portanto, os ocupantes da liderança deste Estado, sejam eles clérigos, sejam eles leigos, mas aristocratas, como sendo as pessoas apontadas por Deus para ocuparem esses lugares de liderança.

É uma ordem que, em vários sentidos, é contraditória com todos os avanços históricos da democracia, que também foi justificada em nome do cristianismo. Essa é uma ordem na qual não há pluralismo ideológico admitido, não há reconhecimento da igualdade entre etnias e culturas que estejam representadas nessa sociedade. Há uma autorização inquestionável para que o poder religioso exerça força política, inclusive lançando mão do braço repressivo da lei ou da polícia para que a verdade religiosa seja restaurada ou imposta. Sacraliza-se a autoridade política na medida em que o líder é uma pessoa ungida por Deus. Ele é ungido num duplo sentido: um sacerdote, numa cerimônia simbólica, derrama óleo sobre a cabeça do líder e diz que Deus está escolhendo-o para ser o rei; e, num sentido mais simbólico e espiritual, afirma-se que este líder tem qualidades especiais atribuídas por Deus que o diferenciam dos comuns mortais. Ou seja, o fundamento do poder dessa pessoa não é mais o povo e a vontade democrática do povo e, sim, um desígnio divino.

Trump foi chamado de Ciro pelos americanos de direita. Eles estavam ironizando com o fato de que o comportamento do presidente é visivelmente desconectado de qualquer perfil de uma pessoa religiosa. No entanto, como Deus teria usado o rei persa Ciro para trazer de volta o seu povo do exílio passado na Babilônia para a sua terra na Judeia, assim também Deus poderia escolher um homem imperfeito como Trump para ser o seu escolhido, o seu ungido neste grande projeto de recristianizar o mundo, que os Estados Unidos ainda teriam como uma missão histórica.

IHU – O senhor mencionou que a direita trumpista congrega diferentes grupos religiosos, de evangélicos a judeus, e pessoas sem religião. Como a Igreja Católica se situa nesta mescla e neste contexto de transformação?

Joanildo Burity – A Igreja Católica nunca foi unida. Ela é católica muito mais no sentido de seu alcance mundial e da sua pretensão de ser a única igreja – me refiro à Católica Romana porque há outras igrejas cristãs que também se consideram católicas no sentido mais amplo do termo e se veem como parte de uma única igreja, mas não necessariamente sob a liderança de Roma.

A Igreja Romana nunca foi unificada em relação a esses temas a respeito dos quais estamos conversando. No caso da Igreja americana também não. O que ocorre com a Igreja Católica, diferentemente de todas as demais igrejas cristãs, até mesmo as ortodoxas que têm seus patriarcas ou metropolitanos, é que ela tem um papa e uma cúria, uma hierarquia. Portanto, só quando essa hierarquia fala oficialmente, nós podemos dizer que a Igreja Católica se posicionou sobre um tema.

Nos Estados Unidos, como em qualquer lugar do mundo hoje, os católicos estão divididos tanto em termos de clérigos e leigos quanto dentro da hierarquia. Há aqueles clérigos e bispos que acompanham favoravelmente as transformações no sentido de maior liberalidade dos costumes, maior garantia de direitos e maior preocupação ecológica etc. E há aqueles que são contrários, que acham que tudo isso é uma corrupção dos valores e princípios ensinados e pregados pela Igreja, e que é preciso resistir. Isso é também o que acontece na sociedade americana.

A Igreja americana, oficialmente, não tem tomado posição, do ponto de vista eleitoral, por nenhum dos dois partidos do país. Mas ela tem, sim, uma inclinação ao longo das últimas décadas no sentido de acompanhar discretamente as mudanças liberalizantes, as mudanças no sentido de uma maior participação e preocupação com a proteção das comunidades migrantes já presentes no país há muito tempo, mas que voltam a ser consideradas estrangeiras pelo discurso da extrema-direita. E tem aqueles bispos e padres que acham que tudo passou do controle e dos limites e é preciso que a Igreja reassuma uma posição de defesa daquele mundo que os comunistas e os liberais estariam destruindo.

É mais ou menos assim que as coisas estão nos Estados Unidos hoje. Existem católicos que têm esses valores tradicionais e os defendem com muito vigor e, entre eles, bispos, padres, monges, monjas, freis e freiras de ordens religiosas alinhados com essas posições. Ao mesmo tempo, existem posições mais avançadas, inclusive situações nas quais mulheres foram reconhecidas como vigárias em paróquias – é uma forma de dizer que foram reconhecidas como sacerdotisas, de uma maneira que a Igreja Católica americana não questiona, mas é completamente inadmissível para a Igreja Católica no sentido global.

IHU – O que o pontificado de Francisco significou neste contexto?

Joanildo Burity – A primeira era Trump e a primeira era Biden coincidiram com o Papa Francisco à frente da Igreja católica. Isso representou um contraponto extremamente importante para entendermos o catolicismo hoje. Vaticano II, João Paulo II e Francisco são os três grandes momentos do catolicismo no século XX e na entrada do século XXI. A despeito das resistências internas que católicos tradicionalistas e conservadores expressaram em relação ao papado, Francisco imprimiu a Igreja Católica num posicionamento e numa transformação interna de grande vulto, que estava indo na contramão do que estava acontecendo nas igrejas evangélicas, onde essa reação de direita se fortaleceu bastante e tomou as rédeas em largos espaços evangélicos. Nisso há um contraste muito grande.

As vozes católicas favoráveis às transformações que o Papa Francisco encarnou muitíssimo bem não foram as mesmas vozes da esquerda católica dos anos 1980. A Teologia da Libertação, embora continue sendo um movimento vivo no interior do catolicismo, não é mais hoje a referência de peso, por meio e por baixo da qual um monte de outras vozes católicas se expressavam. A Teologia da Libertação ainda não conseguiu se recuperar e talvez não se recupere mais da grande crise que o multiculturalismo e o neoliberalismo impuseram ao seu discurso na virada dos anos 1980 e 1990.

Hoje, há discursos católicos muito mais preocupados com a diversidade sexual e a liberdade de gênero, inclusive na Igreja, defendendo a ordenação de mulheres ao sacerdócio, a diversidade da liberdade sexual, o aborto, do que vozes do mundo da Teologia Libertação no sentido mais tradicional desse termo. A Teologia Negra e a Teologia Indígena são, hoje, muito mais articuladas e mobilizadas do que a Pastoral Social da Igreja Católica foi no início dos anos 1990. Nisso, sim, há um grande contraste. Mas precisamos apurar um pouco mais o nosso ouvido: essas não são vozes majoritárias, mas são vozes audíveis. É no meio dessas vozes que podemos ir encontrando a construção de novas alianças: teológicas, sociais e políticas, para fazer frente a essa corrente conservadora e tradicionalista que não é tão frágil assim dentro do catolicismo.

Pontificado de Leão XIV

Embora o Papa Leão XIV seja alguém em quem o próprio Francisco apostou alguns anos antes do seu falecimento, criando condições para que ele fosse um nome [no conclave], ele é bem mais moderado que Francisco. Com exceção do posicionamento dele referente aos conflitos em Gaza, na Ucrânia e na África, pode-se dizer que ele não é exatamente uma pessoa com o estilo incisivo ou determinado a promover novas mudanças, como vimos com Francisco. Isso indica algum tipo de tentativa de apaziguamento da tensão interna no catolicismo entre os setores mais conservadores e os mais arrojados na defesa de mudanças significativas. Até porque, hoje, no contexto do catolicismo, cada vez menos a Igreja vai poder silenciar ou controlar a agenda da reforma interna, da reforma do seu ethos, a reforma da sua relação de poder, da concepção de moralidade individual e pública, a reforma das suas estruturas de participação do leigo e das igrejas nacionais que foram, durante séculos, preteridas por uma concepção monocrática da Igreja, associada ao Vaticano.

O catolicismo cresce no mundo, hoje, na África, e se mantém ainda vivo na América Latina. São os dois lugares onde o catolicismo é mais presente no mundo atualmente e reivindica espaços novos de representatividade e de voz. São movimentos que acontecem de uma maneira muito mais discreta, a longo prazo. A preservação da Igreja em si, da instituição, não é tanto o que move as pessoas. No plano social, às vezes, se quer mesmo destruir a ordem existente porque ela se tornou ilegítima e indefensável. No caso das igrejas, as pessoas estão disputando a igreja e não outra coisa. Isso leva que haja dois passos para frente, um passo para trás, três passos para frente, quatro passos para trás. É um movimento muito mais contraditório.

IHU – Retomando a situação da extrema-direita nos Estados Unidos, o senhor destacou a reação aos direitos civis como um aspecto que une diferentes grupos religiosos em torno da extrema-direita americana. Por outro lado, quais são os diferentes interesses particulares que os levam a um alinhamento ao trumpismo?

Joanildo Burity – De fato, não podemos supor que essa coalizão conservadora o seja pelas mesmas razões ou com os mesmos objetivos. Um grande intérprete do contexto norte-americano nessas últimas décadas foi o cientista político William Connolly, que escreveu um livro publicado em 2008, chamado Cristianismo e capitalismo ao estilo americano. O livro é uma análise da aliança política que se formou em torno do governo de Bush filho. Connolly faz uma análise fina, com dados, bastante rigorosa e detalhada e diz que esses grupos se alinham por motivações diferentes.

Grupos alinhados ao trumpismo

Há grupos que se alinham e, ainda hoje, são fortemente proselitistas. Eles estão ali, mas não abrem mão de fazer a evangelização dos americanos e americanas que abandonaram a fé ou que não são mais fiéis a Deus. Eles querem usar os recursos que a política americana proporciona globalmente para avançar projetos de evangelização em outros países. Mas há também entre esses americanos que apoiam Trump aqueles que não têm nenhuma preocupação com a propagação da fé cristã e que, pessoalmente, muito pouco estão preocupados com questões religiosas. Mas eles acham que o discurso do cristianismo mobiliza profundamente um país como os Estados Unidos. Mobiliza um eleitorado receoso e temeroso com a suposta invasão dos Estados Unidos por imigrantes do mundo inteiro e temeroso e apavorado com a perspectiva de uma decadência econômica e política dos Estados Unidos, que de certa maneira está bastante evidenciada nas últimas duas décadas.

Há, visivelmente, uma espécie de cansaço do modelo americano em manter a sua hegemonia inconteste e o avanço de países como a China e, em menor escala, os países do Brics. Os americanos querem sobreviver a isso e sobreviver bem do ponto de vista de que gostariam de estancar qualquer tendência de decadência econômica e política. Então, há grupos, dentro dessa coalizão trumpista, que claramente veem o discurso da fé cristã e dos valores cristãos como uma maneira de manter ou de reconquistar a população branca americana, mas também a população negra americana, aquela mais tradicional, que responde mais facilmente aos valores e aos discursos conservadores em torno de um pacto que tem um caráter político e geopolítico, e não tem um caráter espiritual e religioso.

O cristianismo cultural, que mencionei logo no início, é precisamente a expressão desse tipo de entendimento de que se pode lançar mão da palavra cristianismo de maneira que não associe a pessoa a qualquer prática específica de uma fé. Mas, antes, como um conjunto cristalizado de princípios e valores considerados positivos e essenciais para a vida social, o qual, historicamente, procederia da sociedade cristão americana.

Veja que há aí também uma exclusão claríssima da população nativa americana. Não há lugar, nesse projeto, para o reconhecimento e a inclusão das comunidades indígenas americanas. Ou eles se convertem à sociedade branca e capitalista ou continuarão sendo negados e apagados, como historicamente foram.

Nessa aliança, existe também um conjunto de forças que representariam a indústria bélica americana, que é muito poderosa e que se alimenta precisamente da hegemonia americana no resto do mundo, que supostamente dá direito aos americanos de intervir e interferir como queiram. Os sinais de decadência e a emergência de outros poderes mundiais alarmaram muito esses setores que produzem armas e tecnologias de vigilância e repressão. Esses grupos estão alinhados no mesmo discurso porque, para eles, um discurso religioso e conservador é um discurso que não questiona algumas das decisões e orientações do poder estabelecido, quando elas podem ser legitimadas em nome de uma ameaça maior.

O conservadorismo religioso e político não gosta de fazer experimentos de inovação. Sempre acha que só o que é testado pelo tempo e consolidado ao longo do tempo merece ser realmente defendido, mas autoriza certas decisões de emergência se elas redundarem na preservação dessas coisas que existem, nesse status quo.

Então, essa é uma maneira muito simplificada porém ilustrativa de dizer que há grupos que estão ali por crerem, realmente, naquilo que Trump diz e faz. Há grupos que estão ali por estarem mais preocupados com a ideia de uma cultura cristã ameaçada pelas “inovações” de participação, igualdade, direitos e novas formas de comportamento e de estilo de vida. Há grupos que simplesmente utilizam instrumentalmente o discurso da fé para assegurar que a sociedade esteja pacificada e quieta, enquanto eles tomam as decisões que querem tomar do ponto de vista do poder central. E há grupos que querem conquistar o mundo do ponto de vista religioso e se valem do braço do Estado, como fez a Igreja em outros momentos, como no tempo da conversão de Constantino, imperador de Roma, e no colonialismo dos séculos XVI e XIX.

IHU – Em que aspectos o discurso cristão emergente na extrema-direita norte-americana destoa de um cristianismo comprometido com a vida no âmbito pessoal e comunitário?

Joanildo Burity – O cristianismo tem, há milênios, discursos e teologias que legitimam uma ação dos cristãos no mundo muito mais voltada para a ideia de serviço ao mundo. Essas teologias, que remontam aos Pais da Igreja, sempre falaram muito do dever dos cristãos de proteger as pessoas pobres e os grupos vulneráveis da sociedade, como crianças, idosos e mulheres.

No século XVI, quando do avanço colonial do mundo ibérico, um grande debate que aconteceu em torno dos povos nativos americanos era o de que, em que medida, essas pessoas eram completamente humanas para merecerem a evangelização ou se não seria o caso de exterminá-las como seres pré-humanos ou animais. Vários missionários católicos, como o frei Bartolomeu de las Casas, afirmaram, com muita força e determinação, que não apenas se tratava de seres plenamente humanos e dignos de serem evangelizados como também havia elementos, na sua própria cultura, que poderiam entrar em diálogo com o cristianismo, de tal modo que não precisariam ser mudados ou destruídos pela chegada da fé cristã.

Do século XVII em diante, na Europa ocidental, surgiu uma teologia muito preocupada em acompanhar as demandas dos camponeses que foram perdendo terras pelos avanços das primeiras práticas capitalistas de propriedade da terra. Assim como no século XIX, uma teologia preocupada com as jornadas de trabalho sub-humanas e as condições em que as pessoas viviam nas favelas da Inglaterra, da França e da Alemanha, por trabalharem na indústria. Elas morriam de doenças, exaustão física ou por conta do trabalho excessivo nas periferias dessas cidades industriais. Novamente, surgiu uma teologia cristã, social, que está na origem do movimento socialista do século XIX e mesmo do movimento comunista que Marx conheceu.

Marx não inventou o comunismo. Marx e Engels não inventaram o socialismo. Essas teorias surgiram num grupo que depois se transformou numa corrente específica do socialismo e do comunismo. Mas essas ideias já eram amplamente conhecidas e estavam em muita efervescência no final do século XVIII e início do século XIX. Elas eram, em medida significativa, defendidas por pastores, padres e leigos cristãos.

Engajamento social cristão

O que quero dizer é que há uma longa reflexão e um longo engajamento social de cristãos em torno de bandeiras referentes à igualdade social, igualdade civil e política. Mais recentemente, no dos anos 1940 em diante, com a desaceleração do processo de colonização ao mesmo tempo que a Guerra Fria ia tomando corpo, há um discurso ecumênico cristão de aproximação de igrejas e envolvimento dessas igrejas na defesa da paz. Ou seja, no não alinhamento com as potências da Guerra Fria, e na busca de alternativas para um mundo alinhado, de um lado, à União Soviética e, de outro lado, aos Estados Unidos. Dos anos 1960 em diante, esses grupos foram fazendo a recepção dos debates sobre a diversidade cultural e sexual.

Hoje, o que acontece é que, depois de quase uma década de gritaria conservadora, que quase emudeceu ou impediu que as pessoas escutassem a existência dessas correntes alternativas, elas agora conseguem ser ouvidas. Elas conseguem se articular politicamente e conseguem reativar redes transnacionais de apoio, que já foram bastante úteis, por exemplo, nos anos de enfrentamento das ditaduras militares na América Latina, onde, tanto na Igreja Católica quanto nas protestantes históricas e mesmo ortodoxas, houve envolvimento, denúncias e proteção dos perseguidos políticos.

Também nos países da antiga cortina de ferro isso aconteceu, e na defesa dos países africanos, que foram se tornando independentes e adotando regimes alternativos, como socialismos africanos. Assim como também há um envolvimento muito forte no conflito israelense e palestino em defesa de uma solução pacífica que faça justiça aos palestinos tanto quanto assegure a presença israelense naquele espaço.

Esses processos vêm se intensificando no sentido de que a divergência está vindo mais a público. Pessoas que embarcaram com muita força, pelo pânico ou mal juízo político, na onda bolsonarista e trumpista da primeira etapa, mudaram de posição. Tanto nos EUA quanto no Brasil e em outros países latino-americanos, grupos que foram coniventes ou mesmo assumiram explicitamente as bandeiras da direita cristã e da extrema-direita conservadora, mudaram de posição e hoje estão fazendo um discurso da moderação e tentando retomar o espaço propriamente eclesial que foi colonizado pela política de direita. Outros estão colocando a boca no trombone e denunciando o extremo a que chegou essa espécie de nacionalismo cristão, que é outra maneira de falarmos dessa versão do cristianismo nacional alemão dos anos 1930, que apoiou Hitler.

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