02 Outubro 2025
Decisão liminar da Vara do Trabalho de Soledade (RS) obriga JBS a adotar 17 medidas para monitorar granjas fornecedoras; caso gerou crise no Ministério do Trabalho e pedidos de dispensa feitos por auditores fiscais contra ato do titular da pasta, Luiz Marinho.
A reportagem é de Carlos Juliano Barros, publicada por Repórter Brasil, 01-10-2025.
Uma liminar (decisão provisória) da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul, publicada na terça-feira (30), determina que a JBS Aves adote uma série de ações para coibir casos de trabalho escravo na apanha de frangos em granjas fornecedoras. A empresa faz parte do grupo JBS, maior processador de proteína animal do mundo.
A medida de primeira instância, e da qual a companhia pode recorrer, atende a um pedido do MPT (Ministério Público do Trabalho). O órgão move uma ação civil pública contra a JBS Aves e pede uma indenização de R$ 20 milhões por danos morais coletivos — em dezembro do ano passado, uma fiscalização do governo federal autuou uma granja fornecedora por trabalho escravo em Arvorezinha, a 200 quilômetros da capital gaúcha. Em abril deste ano, a JBS também foi responsabilizada.
Além da disputa judicial, o caso vem gerando uma crise no MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), pasta comandada por Luiz Marinho, um dos mais próximos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em 18 de setembro, Marinho “avocou” (chamou) para si próprio a decisão sobre a inclusão da JBS na chamada Lista Suja do trabalho escravo — cadastro oficial do governo federal que torna públicos os dados de empregadores responsabilizados por essa prática.
Em protesto contra o ato de Marinho, 19 auditores fiscais do MTE deixaram cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo em todo o país, na última quinta-feira (25). A falta de um coordenador regional não inviabiliza, mas prejudica e atrasa o planejamento de operações de resgate de trabalhadores e a articulação com outros órgãos públicos envolvidos nessas ações, como PF (Polícia Federal) e MPT.
Em nota, a assessoria de imprensa da JBS afirmou que os autos de infração aplicados pelos auditores fiscais do MTE ainda estão em discussão na esfera administrativa, “sem conclusão definitiva”, e que a empresa tem “tolerância zero com violações de práticas trabalhistas e de direitos humanos”.
O posicionamento informa ainda que a granja não trabalhava com exclusividade para a Seara, marca da JBS Aves. “A Companhia imediatamente encerrou o contrato e bloqueou o prestador assim que tomou conhecimento das denúncias. Adicionalmente, a Seara contratou uma auditoria externa para checagem da documentação dos trabalhadores de empresas terceiras, bem como intensificou a auditoria interna, com análise e verificação diária de todas as condições da prestação de serviços de apanha realizada por terceiros”, continua a nota.
Por que a JBS Aves foi responsabilizada por trabalho análogo ao de escravo no RS
Em dezembro de 2024, uma inspeção realizada por auditores fiscais do MTE resgatou dez trabalhadores, entre 21 e 33 anos, de uma granja no interior do Rio Grande do Sul.
Segundo os responsáveis pelo flagrante, o grupo se dedicava à apanha de aves e estaria submetido a jornadas exaustivas, de até 16 horas diárias. Os trabalhadores teriam se alimentado de frangos descartados por estarem supostamente fora do padrão da JBS.
Ainda segundo a fiscalização, um dos alojamentos teria ficado sem água por ao menos duas semanas, obrigando trabalhadores a recorrer a um poço para cozinhar e realizar a higiene pessoal. De acordo com os auditores do MTE, alguns trabalhadores chegaram a ser encaminhados a um hospital, com sintomas de esgotamento físico.
Além disso, o MTE identificou a submissão dos resgatados a condições degradantes e a trabalhos forçados mediante a imposição de dívidas ilegais decorrentes de despesas com transporte e alimentação
Originalmente, os trabalhadores foram contratados por uma terceirizada. No entanto, o MTE considerou a unidade da JBS Aves de Passo Fundo (RS) a “principal responsável” pelas infrações que caracterizariam a exploração de mão de obra em condições análogas às de escravo, já que a companhia exerceria controle total sobre a operação da apanha de frango.
O que diz a liminar concedida pela Justiça do Trabalho contra a JBS
A liminar concedida pelo juiz José Renato Stangler, da Vara do Trabalho de Soledade (RS), estabelece 17 obrigações imediatas à JBS Aves.
Segundo a decisão, a empresa fica responsável por garantir que trabalhadores diretos ou terceirizados da cadeia de produção tenham garantidos direitos previstos em lei. Além de fornecer água potável e alojamentos adequados, a companhia fica obrigada a monitorar o cumprimento de normas de saúde e segurança, como o fornecimento de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual).
A liminar determina ainda que a JBS Aves também dimensione adequadamente o tamanho das equipes para assegurar o número mínimo de trabalhadores para respeitar limites de jornada e evitar sobrecarga física nas granjas.
Segundo a decisão da Vara de Soledade, o descumprimento das obrigações pode ser punida com multas de R$ 10 mil a R$ 300 mil por ocorrência.
Medida de Marinho foi alvo de críticas por risco de ‘politização’ de decisão técnica
A decisão de Luiz Marinho de barrar a entrada da JBS Aves na Lista Suja do trabalho escravo, até que o próprio ministro do Trabalho emita um parecer final, foi alvo de críticas de autoridades e entidades dedicadas ao combate ao trabalho escravo.
Pelas regras atuais, pessoas físicas e jurídicas autuadas pelos auditores fiscais do MTE podem se defender em duas instâncias administrativas, antes de terem seus nomes incluídos na Lista Suja. Desde novembro de 2003, quando o cadastro foi criado, uma “avocação” por um ministro do Trabalho nunca havia acontecido.
“Estamos diante de um precedente extremamente perigoso: empresas com grande porte econômico podem ter seus casos de trabalho escravo retirados da esfera técnica e transferidos para negociação política. Isso institucionaliza a impunidade seletiva e corrói toda a credibilidade do sistema de combate ao trabalho escravo no Brasil”, afirmou Luciano Aragão, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho), em entrevista à Repórter Brasil.
O artigo 648 da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) permite que o titular do Ministério do Trabalho tenha a palavra final sobre o assunto, mas isso bate de frente com tratados internacionais que o Brasil já ratificou, segundo Luciano Aragão.
“A avocação pelo ministro do Trabalho do processo administrativo contra a JBS por trabalho escravo representa grave violação à Convenção 81 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que garante a independência técnica da fiscalização trabalhista”, disse o procurador do MPT.
Em nota enviada à reportagem, o MTE afirmou que “a avocação é um instrumento previsto em lei, não possui caráter inédito ou exclusivo e tampouco se fundamenta no porte da empresa”. Segundo o posicionamento, “trata-se da análise, pela autoridade competente, de atos administrativos sob sua responsabilidade, com a prerrogativa legal de revê-los”.
Nota
O texto foi alterado às 18h para informar que a fiscalização de dezembro de 2024 autuou a granja fornecedora da JBS Aves. A responsabilização da JBS Aves pelo MTE aconteceu em abril de 2025
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