“Quem tem 600 dólares, em média, para se hospedar?”: professor da UFPA diz que custo da COP30 atinge mais sociedade civil e países do Sul global. Entrevista com José Guilherme Fernandes

José Guilherme Fernandes, criador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia da Universidade Federal do Pará, afirma que há um racismo estrutural na conferência climática deste ano, que acaba prejudicando movimentos sociais e populações que são mais afetadas pelas mudanças do clima

Foto: Fernando Frazão: Agência Brasil

08 Setembro 2025

Enquanto o governo brasileiro busca ampliar a lista de países participantes da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), o professor José Guilherme Fernandes, da Universidade Federal do Pará (UFPA), diz que está preocupado com a exclusão da sociedade civil dos debates previstos para novembro, em sua cidade natal, Belém. Para ele, a alta nos preços das hospedagens revela o racismo sistêmico e estrutural presente na forma como a conferência é organizada.

Linguista e criador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia, no campus de Castanhal da UFPA, ele dedicou os últimos 30 anos a investigar temas relacionados à região, incluindo mineração, discursividade, quilombos, terras indígenas, manguezais, cartografias, imagem e memória, entre outros. Nesta entrevista, parte da perspectiva da ecologia política, campo interdisciplinar que entende os problemas ambientais não apenas como naturais ou técnicos, mas também como sociais e políticos, analisando quem se beneficia e quem é prejudicado pela exploração da natureza.

“Vão dizer: ‘Não, a COP é para todo mundo’. Mas quem tem 600 dólares, em média, para se hospedar? De modo geral, os penalizados são principalmente as delegações dos países com menos recursos […] Você está abrindo [a COP], mas só participa quem tem dinheiro. Isso é da própria estrutura do capitalismo. Para mim, também é um racismo estrutural nesse sentido, mas encoberto de uma ideia de nativismo”.

Ele explica que o nativismo é um sentimento identitário enraizado no indivíduo. Segundo ele, esse discurso vem sendo utilizado por uma parte da população, principalmente do setor empresarial, para justificar aumentos abusivos de preços, o que acaba resultando em exclusão social.

No entanto, o especialista avalia que, em última instância, o que ocorre é a manifestação do racismo nas estruturas sociais, políticas e econômicas, refletido também nas instituições. Trata-se, segundo ele, de um racismo sistêmico, que se expressa no funcionamento de sistemas inteiros — como no caso da COP30, que segrega grupos em áreas divididas pelas cores azul e verde, as chamadas Green e Blue zones.

Na última sexta-feira (29), a Secretaria Extraordinária para a COP30 anunciou que subiu para 61 o número de delegações confirmadas. Na semana anterior eram 47, de um total de 193. A possibilidade de redução desse número neste ano levantou debates sobre a capacidade de Belém em receber os demais países durante a conferência. Para José Guilherme, embora existam diferentes graus de responsabilidade pela alta dos preços, o problema é uma questão política e de fiscalização. 

José Guilherme Fernandes (Foto: Julie Pereira)

Leia a seguir a entrevista completa, em que ele aborda os conceitos de ecologia política, nativismo e racismo ambiental, e afirma que, assim como o Brasil não conhece o Brasil, a Amazônia também não conhece a Amazônia.

A entrevista é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazonia, 05-09-2025.

Eis a entrevista.

InfoAmazonia – Quão danoso é, para o debate climático, esta COP ser afetada por questões econômicas como o preço dos hotéis em Belém?

José Guilherme Fernandes – Se você for considerar apenas o aspecto financeiro, o pior IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] do Brasil é o de uma cidade do Pará.

O município com o menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) é Melgaço, no estado do Pará, com um IDH-M de 0,418, conforme dados do Censo 2010 analisados pelo PNUD. Não estou querendo, com isso, dizer que o IDH seja determinante para avaliar a conduta de um povo, ou que seja determinante para afirmar o que é cultura superior ou inferior, porque essa ideia do evolucionismo cultural já passou.

Mas, em todo caso, se você for avaliar pelo ponto de vista do acesso financeiro, a população não tem. Então, isso acaba sendo, no meu entendimento, discriminatório. Onde está o papel do empresariado nisso? Em que medida ele está facilitando? Em que medida isso não é um grande lobby também?

Não se explica, por exemplo, que haja a majoração de dez vezes o valor normal de um hotel. Nas outras COPs, há majoração, certamente há, mas a média é de três, quatro vezes, não dez vezes como está acontecendo aqui.

Então, isso já caiu até no anedotário popular. A pessoa coloca assim: “aluga-se uma rede para a COP, por 50 mil”. O público já pegou isso, já criou uma anedota sobre essa questão.

Agora, claro, é uma resistência do público, evidentemente. O público trabalha muito com a ironia, mas é grave isso. Você não tem como acomodar, principalmente, os movimentos sociais. Como é que eles ficaram em relação a isso?

José, você defende um conceito interessante, conhecido como ecologia política. Quando penso sobre isso, entendo que a COP30 segue em uma direção contrária, tratando de questões técnicas. Vozes tradicionais, como povos indígenas e quilombolas, parecem mais distantes desse processo. Você concorda? Existe um equívoco na forma como esses debates estão sendo conduzidos, do ponto de vista metodológico?

Existe um racismo sistêmico. Primeiramente, porque a COP é dividida em áreas. Você tem a zona azul e a zona verde. A zona azul é a zona em que, efetivamente, as coisas serão definidas: as negociações internacionais. A verde é a dos movimentos sociais, de modo geral, universidades e tudo mais. Então, você já tem sistematicamente algo que barra.

Para mim, isso já é um racismo sistêmico, porque as instituições estabeleceram a COP dessa maneira, e não de outra. Isso é uma crítica que um pobre mortal está fazendo, evidentemente, porque isso, de certa maneira, já é estabelecido mundialmente. Todas as COPs foram assim.

Talvez a diferença da nossa seja que o movimento social vai estar muito mais presente, porque as outras COPs ocorreram, de modo geral, em países ditatoriais ou semi-ditatoriais. Então, existe um controle maior. Não vai ser o nosso caso, o que acaba sendo uma grande incógnita.

Mas há esse racismo sistêmico, porque o sistema opera dessa maneira. E há também o racismo estrutural, que é de ordem da sociedade. Quando você majora os preços, impede, do ponto de vista financeiro, que as pessoas participem. Isso é racismo estrutural. 

Vão dizer: “Não, a COP é para todo mundo”. Mas quem tem 600 dólares, em média, para se hospedar? De modo geral, os penalizados são, principalmente, as delegações dos países com menos recursos. Países africanos, por exemplo. Até onde tenho conhecimento, a média que eles têm para gastar diariamente, per capita, é de 150 dólares, incluindo alimentação, hospedagem, transporte e tudo mais. A média dos hotéis é de 600 dólares. Então, você está abrindo, mas só participa quem tem dinheiro. Isso é da própria estrutura do capitalismo. Para mim, também é um racismo estrutural nesse sentido, mas encoberto por uma ideia de nativismo.

Nativismo? Pode explicar, por favor?

O que é o nativismo? É aquele sentimento identitário muito arraigado. Eu diria que é uma primeira manifestação da identidade. Então, as pessoas se sentem paraenses, amazônicas.

Com essa polêmica, em função dos preços exorbitantes, surgiu esse discurso: a gente tira a COP de Belém ou deixa parcialmente em Belém e coloca outra capital? Falaram em Manaus, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e tal.

E aí, nas redes sociais, começou a surgir um discurso assim [nativista]: que “a COP é nossa”. De certa maneira, em função do discurso governamental do governo federal, o Lula bateu o martelo e disse: “Não, eu quero a COP em Belém”. Os empresários também estão utilizando esse discurso, de certa maneira, para incitar a população a dizer: “Olha, devemos defender a COP porque a COP é nossa”.

Então, a gente sente que existe uma manipulação no discurso em relação a isso. Quando, na realidade, no meu entendimento, o foco não é esse. O foco é garantir a efetiva participação das pessoas. Mas isso deveria ter sido feito dois anos atrás, em 2023, quando foi anunciada a COP no Pará.

José, as pessoas estão procurando culpados pela baixa estrutura de acomodação na cidade. Há culpados?

Se fosse culpar, seriam todos, de certa maneira. A começar por quem escolhe os políticos, mas eu não vou entrar nesse mérito. Eu acho que o que a gente tem que observar, se for considerar a ecologia política, são os vários discursos que se constroem em torno disso. Eu diria que existem graus de culpabilidade. Eu não acho errado as pessoas quererem ganhar o seu dinheiro. Por que isso acontece? Porque falta emprego.

Isso acontece por quê? Porque temos uma população carente. Belém, por exemplo, não é uma cidade turística. Não tem uma finalidade turística como o Rio de Janeiro, por exemplo. Até Manaus eu diria que é mais turística do que Belém. Nesse sentido, muitas vezes estamos construindo essa identidade agora, mas de uma maneira um pouco atropelada. Então, a política pública é um pouco culpada em relação a isso.

Nós temos aqui, em frente à orla de Belém, a ilha do Combu. Ali existem mais de 50 restaurantes flutuantes, nesses trapiches, e não foi a população local que criou isso, mas pessoas que vêm de fora.

Chega rápido. Bate e volta. Você chega lá e encontra piscinas. Piscinas com cloro. Eu, que estou consumindo ali, não sei qual é a destinação depois daquela água. Sabe o que tem acontecido? Alguns restaurantes fazem a piscina dentro do próprio rio. Colocam uma rede e as pessoas ficam no banho. Mas a nossa água de rio aqui não é a água do Caribe. É uma água barrenta, tem a famosa tuíra

Sedimentos de areia, argila e barro, que grudam na pele após o mergulho em rio de água doce e barrenta. Tem gente que não quer isso e vai tomar banho na piscina de cloro. Sabe onde eles jogam essa água da piscina de cloro? No rio.

Com isso, a população de lá já está reclamando que o peixe está se afastando. Acabou o camarão. Você está entendendo? Então, por isso eu falei do grau de culpabilidade. Quem é que está por trás desse cenário que está sendo construído?

A grande questão é a política, a fiscalização. A fiscalização, eu creio que sim, mas também tem que haver uma consciência nossa. 

Em uma palestra recente, você afirmou que estamos vendo o racismo estrutural se refletir na ausência de acomodações em Belém. De que forma o racismo ambiental atua hoje dentro da questão climática?

Bom, o conceito é como os impactos das mudanças climáticas têm afetado de forma diferente a população. Então, isso é o básico. Acho que basta a gente andar por Belém. Você vê uma cidade que tem um polígono da COP, mas também vê uma cidade periférica. Onde nós estamos, no Museu [Emílio] Goeldi, é um campo de pesquisa, mas fica em um bairro periférico de Belém. Na continuação do caminho, emenda com o Guamá, que é um dos maiores bairros periféricos da cidade.

Então, você observa a inadequação das moradias em relação a esse aquecimento climático. As ruas não têm saneamento, às vezes são pavimentadas, mas não recebem escoamento da água. Você tem uma população que vive apertada no metro quadrado. Há muitas famílias numerosas vivendo em pequenos espaços. Então, não existe uma política urbana.

O primeiro grande efeito desse racismo é nos espaços humanos, onde há mais gente. Esse é um ponto. O segundo efeito é em relação às comunidades rurais, os povos e comunidades tradicionais que estão no interior. Vou tomar como exemplo a região nordeste do Pará, que é a mais antiga de colonização da Amazônia brasileira.

Tudo começou por aqui, com a Belém-Brasília. Eu atuo em uma cidade bem polarizada, que é uma referência do agronegócio na região, chamada Castanhal. O que ainda resta de vegetação nativa são as matas ciliares de alguns cursos d’água. Fora isso, há fazendas. Mas uma parte da população ainda utiliza esses cursos d’água até para pescar, para garantir algum peixe.

Até agora está chovendo na região. É um pouco anormal, já estamos no final de agosto, mas ainda chove. Já deveria ter acabado, mas isso, no meu entendimento, é reflexo do aquecimento global. Essa água que escorre das pastagens, muitas vezes com pesticidas e agrotóxicos, depois vai para os rios.

Quem está usando esses rios, ainda como lazer, são as populações que vivem lá. Então, isso, para mim, é racismo. Porque quem promove, por exemplo, a devastação da floresta não paga por isso. Muitas vezes nem mora na região. É um fazendeiro que não mora aqui, mas no centro-sul do país. Então, eu acho que temos que olhar para essas duas questões: o rural e o urbano.

José, eu conversei com alguns jovens que organizaram a COP das Baixadas. Eles denunciaram a falta de interação da COP com os anfitriões. Você também acha estranho que um evento desse porte se instale em uma cidade sem consultar seus moradores? Eles deveriam ser consultados?

Deveriam. Mas, como eu te falei, a COP não é para a população. A COP, enquanto aquele evento nuclear, é para os chefes de Estado. Eu acho que quem deveria fazer esse papel é o governo local, para, de alguma maneira, captar esse discurso e ter espaço de escuta, para levar para esse cenário maior.

Porque, quando a gente fala de COP, parece que é uma única COP, e não é uma única COP. Como eu falei, tem as duas zonas, que são muito bem definidas em relação a isso. Então, pelo menos para levar para essa zona azul, onde existem as decisões de Estado, deveria haver uma espécie de ouvidoria, algo nesse sentido.

Eu acho que isso não está acontecendo, e é por isso que há tantas queixas. Às vezes, a gente não sabe, propriamente, nem que projeto social se quer para essa cidade. Eu só sei que tem um polígono da COP, ali perto do aeroporto, e tem o hangar [onde será o evento]. Ali pelo centro da cidade vão construir portos. Mas Belém não é só isso. Belém tem outros espaços.

Aqui nós estamos relativamente próximos. Aqui é Guamá e Terra Firme, são bairros periféricos, mas quase no centro. Cadê a coisa aqui? Eu acho que faltou essa escuta das populações pelos governos locais, porque a ONU não vai fazer isso.

É função nossa aqui. A ONU não vai fazer isso.

José, se a COP tivesse a cara da Amazônia, como seria?

Olha, para começar, não teria que ser só em Belém. A gente não tem uma Amazônia, a gente tem várias Amazônias. Lá em Manaus, para você ter um exemplo, o rio Solimões não é o rio Negro. São realidades diferentes. O rio Solimões é muito mais ribeirinho. O rio Negro é muito mais indígena, entre aspas.

Só aí você já tem duas Amazônias. Do nosso lado aqui, você também, provavelmente, tem umas três ou quatro Amazônias. Você tem a Amazônia dos manguezais. Você tem a Amazônia dos campos, do Marajó. Você tem a Amazônia da terra firme, da floresta de várzea. Você tem a Amazônia do sul do Pará, que, queira ou não queira, a gente pode não concordar com o agronegócio, mas eles estão lá. De alguma maneira, a gente vai ter que enfrentá-los, negociá-los, não sei. Mas a gente também não pode deixar esse pessoal de lado, porque, em algum momento, esse povo chegou até aqui. Ninguém pode chegar e colocar no paredão.

Então, a gente vai ter que ir para a mesa de negociação, ver que parâmetros a gente quer para a Amazônia, efetivamente. Porque acaba criando uma intriga entre nós, amazônidas, que não é gerada por nós. É gerada por quem vem de fora e diz o que a gente tem que fazer. Então, continua existindo um colonialismo na Amazônia. Eu, que sou da área da academia, da pesquisa, há 30 anos, vejo a mesma reprodução dos modelos que ditam que a gente tem que continuar seguindo.

Como isso poderia ser mais confiável e, digamos, mais democrático? Com uma COP que pudesse ser realmente pulverizada: sede em Manaus, sede em Belém, em Macapá, no sul do Pará, enfim. E aí a gente poderia ter realmente uma representatividade amazônica.

José, pela sua experiência em ouvir e conhecer povos tradicionais da Amazônia, quais questões primordiais da justiça climática precisam ser consideradas nas negociações do Acordo de Paris?

Olha, a primeira coisa é a mudança de modelo de vida. Enquanto a gente tiver esse modelo de vida consumista, exacerbadamente, não vai adiantar nenhuma COP, porque sempre vou estar num crescimento de produção. Então, não se discute modelo de vida. Eu quero ir ao supermercado e sempre encontrar a picanha, encontrar a bisteca para o meu churrasco todo final de semana.

As populações periféricas, originárias, comiam por safra. Olha, agora é a safra do jabuti, a gente come jabuti. Olha, agora é a da pescada, come pescada. Então, eu tinha que adaptar meu padrão alimentar ao que havia no momento.

Acabou a diversificação alimentar. E aí, quando acaba a diversificação alimentar, o que é que eu faço? Eu parto para a monocultura, para a soja, para o gado. E o estado do Pará, muito mais do que a Amazônia, sofre muito. Eu diria que a metade do Pará já está consumida pelo latifúndio.

Eu acho que a segunda questão, realmente, é o território. A gente precisa conhecer mais o território. Tem a velha canção do Aldir Blanc.

A composição é de Aldir Blanc e Maurício Tapajó: “O Brasil não conhece o Brasil.” Eu diria: a Amazônia não conhece a Amazônia. Então, esse é outro grande problema. A gente não tem trânsito frequente.

Eu diria que uma terceira questão é a do mercado. Eu fico muito assustado com a ideia de mercado, porque tudo que envolve essa ideia começa a escalar, até numa escalada exponencial.

Precisamos tentar verificar como nós podemos produzir respeitando esse ambiente [floresta]. Para mim, o sistema agroflorestal ainda é uma questão interessante de ser explorada, pelo menos para a produção de alimentos. Porque a gente tem um problema de segurança alimentar muito grande aqui.

Quase todo mundo que trabalha com a região, com solos, com o que a gente chama de etnopedologia, diz que a nossa região não é fértil como a gente pensa que é. Porque grande parte da Amazônia é arenosa. Então, por que cresce uma floresta aqui? Porque há algumas condicionantes que a gente tem que conhecer. Isso tem a ver também com o conhecimento do território.

Qual é a primeira delas? O regime de chuvas. Nós só temos água porque também há floresta. Tem o que a gente chama de evapotranspiração. A floresta vai sendo retroalimentada. Ela mesma gera a sua água, chove, cai, mais adiante vai nascendo. Então, os sistemas não podem degradar a região. Não podem virar pastagem. E eu posso criar gado no sistema agroflorestal. Eu tenho grandes árvores e o gado fica embaixo.

Né? Mas isso dá muito trabalho. É mais fácil porque os sojeiros estão em Santarém, no chamado Planalto Santarém, no entorno de Santarém, por uma coisa muito óbvia: é um terreno plano. Eles podem colocar o maquinário deles, que não vai ficar balançando nesse terreno.

Ele vai deslizar e vai plantar com mais facilidade. Então, ele quer facilidade. Ele não quer ter trabalho. Ele não quer ter trabalho com novos sistemas florestais. Né? Então, uma bioeconomia, que seria o terceiro ponto, só vai funcionar se realmente você respeitar as tecnologias originárias da região.

José, na sua opinião, é possível chegar a acordos globais envolvendo mais de 190 países, mas levando em consideração demandas que são locais? Como você acha que isso seria possível?

Primeiramente, você tem que entender que nós vivemos em um único planeta. Tu tens que entender também que é um pensamento sistêmico. A grande questão é que nós não temos um pensamento sistêmico. Então, eu tenho que saber, por exemplo, que grande parte do nosso regime de chuvas se deve à África. Uma parte da fertilidade da floresta amazônica se deve ao Saara. Existem momentos no ano em que o vento traz grande quantidade de areia do Saara que vai ser lançada na Amazônia. E essa areia tem certos minerais que nós não temos aqui e que ajudam a fertilizar a floresta. A NASA tem até algumas fotos de grandes nuvens de areia, de alguns milhares de quilômetros, vindo para essa direção.

Porque o planeta é único, e esse sistema de ventos e de água não está só em um continente, só em um lugar. Ele vem de um continente para outro, né? Tem as correntes e tudo mais. Mas a gente, a grande população, não tem esse pensamento sistêmico.

Eu vou te dar um exemplo de anos atrás, quando eu estava fazendo trabalho de campo em uma região de manguezal. As pessoas começaram a acusar um determinado prefeito de querer aterrar o manguezal. Ele se virou e disse: “Gente, eu estou fazendo uma benfeitoria, eu estou aterrando a lama.”

Na Amazônia, nós temos um pensamento interessante, que a gente chama de saber local. Mas o saber local acaba criando um único parâmetro: o meu umbigo. Então, enquanto a gente estiver com esse parâmetro, vai ser difícil fazer um grande acordo global.

Eu não estou sabendo agora o que as populações africanas estão discutindo. Os noticiários não publicam. Você sabia que, há duas semanas, teve uma grande tempestade em Cabo Verde, que é parte do PALOP, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa?

Eles estão carentes lá. Quem é que continua ajudando eles? Portugal. E, com isso, Portugal continua criando uma certa colonização sobre Cabo Verde. Cadê o Brasil nessa integração lusófona? Você ouviu falar disso na televisão?

A própria mídia não cria uma possibilidade sistêmica da informação. Eu não sei o que é que as populações, digamos, muçulmanas, para além da Faixa de Gaza, estão fazendo em relação à preservação ambiental, por exemplo.

Eu não sei o que está acontecendo nas ilhas Fiji, na Oceania. Então, enquanto o mundo não se conhecer também, vai ser difícil ter esse acordo global. Por enquanto, a gente está fazendo essas coisas localizadas. E, como vai ser na Amazônia, a bola da vez é a Amazônia.

Você acredita que a COP em Belém será positiva ou negativa para as populações locais? Qual sua previsão para depois de novembro?

Todo encontro humano é positivo, nem que seja para brigar, dependendo da briga, evidentemente, desde que não haja violência física. Mas são espaços de discussão que, por si só, já são extremamente válidos. Já é positivo virem pessoas da Pan-Amazônia, de forma geral. Isso, de imediato, já é um grande feito, um grande resultado.

Agora, o que vai ficar vai depender desse grande encontro. Porque você vai dizer: “Ah, eles vão melhorar o espaço turístico, criar o Parque da Cidade.” Isso poderia ocorrer com ou sem COP, a partir do momento em que haja uma vontade política de construir. Mas o que é que vai mudar? Se as pessoas, a partir daqui, criarem uma agenda.

Então, eu não saberia te dizer quanto a um legado imediato, mas eu posso te dizer o que particularmente espero como desdobramento: pelo menos criar-se uma agenda. Porque está faltando aproximação. E, quando eu digo aproximação, é aproximação física mesmo.

A gente já está cansado. Eu já estou cansado de reuniões online. Eu quero ir para outros lugares. Eu quero tomar banho de igarapé. Eu quero provar o matrinxã maravilhoso que tem lá na tua terra [Manaus]. Está entendendo? Você vem para cá, prova um filhote, uma dourada. E a gente não tem isso. A gente não cria uma agenda mútua. Então, eu espero que nós, populações da Amazônia, aproveitemos esse momento nosso também e criemos essa agenda.

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