A Conferência das Partes (COP), reunião anual dos países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, poderá frear o avanço agrícola e a destruição dos ecossistemas ou fortalecerá narrativas homogeneizantes do Norte Global?
“Vemos o Sudeste completamente enuviado”. A observação da pesquisadora Ana Cláudia Cardoso, que desenvolve pesquisas com foco no território e em políticas públicas, poderia ser uma boa figura de linguagem para explicar a expansão agrícola na Amazônia, motivada, em parte, por produtores rurais das regiões Sul e Sudeste, ou os efeitos que a devastação da floresta tem acarretado não só na região amazônica, mas no país como um todo, onde nuvens de fumaça das queimadas se espalham. Mas a frase não é uma figura de linguagem; ela expressa o que os dados indicam: associação entre o uso do fogo, avanço da fronteira agrícola na Amazônia e alta incidência de queimadas gera efeitos climáticos em todo o país.
Ana Cláudia Cardoso aposta que a transformação dessa realidade pode advir da realização da COP30 em Belém no segundo semestre deste ano. Na avaliação dela, o evento representa uma boa oportunidade para “acabar com a herança bandeirante de avançar criando áreas de fronteira agrícola e destruição de ecossistemas”. No último ano, informa, a região amazônica recebeu “pessoas que tiveram suas terras destruídas pelas enchentes do ano passado no Rio Grande do Sul. Elas estão baixando aqui [Amazônia] e estamos vendo paisagens inteiras desaparecerem para cinco anos de plantio de soja e outras commodities”.
As iniciativas encontram respaldo no Projeto de Lei 2.159/2021, que desmonta o licenciamento ambiental meses antes da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. “O PL do auto licenciamento é uma vergonha. (...) Ou seja, significa um descaso muito grande com questões ligadas à manutenção dos ecossistemas, a despeito de modos de vida de uma série de grupos que podem ser genericamente classificados como povos da floresta, indígenas, quilombolas, extrativistas, quebradeiras de coco”, afirma.
Nesta entrevista, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Ana Cláudia Cardoso diz que a demanda socioambiental mais urgente de Belém “é reconhecer a diversidade da cidade e deixar que as áreas ribeirinhas, que são de ocupação de várzea e estão nas 50 ilhas que circundam a cidade e fazem parte do município, possam continuar com o seu modo de vida. Mas o que está acontecendo é um avanço sobre as ilhas, em especial quando há uma solução de conexão por pontes, que vai desestruturando formas de viver que são seculares na região”.
Segundo a entrevistada, obras associadas à COP estão “desterritorializando ribeirinhos” e fazem parte do “desejo da elite local” de “remoção das palafitas”. A narrativa que circula na cidade, menciona, é a de “abrir a cidade para o rio. Mas a cidade sempre foi aberta para o rio, só que quem usava o espaço da margem era a população de baixa renda. Agora, isso passou a ser reivindicado pelas populações de classe média e alta em razão das experiências do Norte global”.
Ana Cláudia Cardoso (Foto: Reprodução Research Gate)
Ana Cláudia Cardoso é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Arquitetura pela Universidade de Oxford. Atuou no Observatório Conhecimento e Movimento Social na Amazônia e foi secretária do Governo do Estado do Pará. Leciona na UFPA.
IHU – Territorial e socialmente, como descreve Belém, cidade sede da COP30? A atual configuração socioespacial da cidade é fruto de quais transformações históricas?
Ana Cláudia Cardoso – Territorial e socialmente, Belém é uma cidade complexa, bastante heterogênea e diversa. A realidade da cidade é totalmente diferente da do Centro-Sul. Belém é uma cidade que se destacou como metrópole regional por mais de 300 anos, com um porto que drenava produtos da Amazônia, inclusive com saída para o Atlântico. Ao longo dos séculos, houve diversos surtos econômicos, com destaque para a exploração da borracha, que foi quando a cidade ampliou muito sua área de influência.
Belém era também uma cidade com funções administrativas importantes porque era a capital do Estado do Grão-Pará-Maranhão em 1750. Havia uma conexão direta entre Belém e Portugal. O Conde dos Arcos, governador, era parente do Marquês de Pombal. Uma parte da cidade tem características que demonstram um alinhamento muito grande com o pensamento do urbanismo europeu. Ou seja, Belém é uma cidade que tem um plano de alinhamento, uma quadrícula, que preenche aquela que foi a primeira leva patrimonial da cidade, com quadras muito bem-organizadas, com distribuição de espaços verdes, ruas com dimensões interessantes. Só que esse plano de alinhamento não foi executado porque uma boa parte do território da primeira légua era de áreas alagáveis. Então, desde o início, as áreas alagadas foram ocupadas por populações nativas e por ribeirinhos, pessoas que migravam, mas estavam familiarizadas com a vida em palafitas.
A parte da cidade construída a partir das diretrizes do governo colonial era habitada, normalmente, por uma população vinda de fora. Então, foi construída uma elite branca, que normalmente estava a serviço do governo ou de interesses comerciais externos e que pouco compreendia a vida da floresta. As áreas de várzea foram ocupadas pela população da região. Essas áreas se intensificaram muito quando a Amazônia passou por um processo de integração, depois da abertura das rodovias, quando tinha uma população dispersa na floresta, em vilas e comunidades. Aliás, isto é muito pouco falado: nunca houve uma Amazônia sem terras, sem homens, para homens sem terras. Isso é um mito, uma grande mentira, uma mentira racista que, muitas vezes, considerava que aqui não existiam pessoas civilizadas. Mas, na verdade, o território era todo ocupado. As pessoas, conforme foram avançando grandes projetos por dentro da floresta, foram constituindo um novo rural e migrando para as cidades. A primeira delas foi Belém. Então, Belém acolheu ondas migratórias gigantescas na década de 1980, quando muitas frentes de obra foram suspensas. Em razão disso, Belém é a única capital brasileira que tem mais de 50% da sua extensão produzida informalmente, em função de todo esse processo de acomodação da população da região. Não dá para entender Belém sem considerar o processo de transformação ocorrido na Amazônia.
IHU – Como essas transformações históricas impactaram na implementação da infraestrutura de saneamento básico na cidade?
Ana Cláudia Cardoso – Ocorreu uma ocupação incremental, não planejada, desprovida de infraestrutura, porque a região, à época, era vista, nos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) do governo militar, como uma região agrária, extrativista, ou seja, não recebia investimentos para a cidade. Mas isso era um engano porque toda a população foi orientada para Belém, embora a relação urbano/rural não fosse distinta dessa forma. As pessoas tinham, normalmente, uma relação de captação de água com o rio e de eliminação de dejetos por meio da maré. O Pará tem uma área extensa de influência de maré, então, as populações foram para a cidade e reproduziram suas práticas sem que as tecnologias fossem devidamente adaptadas, e aí surgem muitos problemas de saneamento. Aí estão os indicadores do IBGE. Mas é importante dizer que esses indicadores têm uma régua que também é muito exigente, porque é uma régua das metrópoles industriais a respeito das situações de saneamento e abastecimento de água. O que aconteceu em Belém foi que quando havia estrutura, essa estrutura passava a ser clandestinamente compartilhada com muitas ocupações que estavam ao redor de uma área que era beneficiada pelo sistema formal. Então, havia muitos “gatos” de água, assim como existem os “gatos” de energia.
IHU – A mídia tem noticiado os problemas de saneamento básico em Belém. No entanto, qual diria que é a demanda socioambiental mais urgente da cidade neste momento? Ela está sendo contemplada pelas obras que preparam a cidade para receber a COP30?
Ana Cláudia Cardoso – A demanda socioambiental urgente em Belém é reconhecer a diversidade da cidade e deixar que as áreas ribeirinhas, que são de ocupação de várzea e estão nas 50 ilhas que circundam a cidade e fazem parte do município, possam continuar com o seu modo de vida. Mas o que está acontecendo é um avanço sobre as ilhas, em especial quando há uma solução de conexão por pontes, que vai desestruturando formas de viver que são seculares na região.
Obras que a princípio foram associadas à agenda da COP estão justamente desterritorializando ribeirinhos, como é o caso da Avenida Liberdade, que está passando por uma área de mosaico de proteção, ao sul da cidade. Além disso, dois parques lineares estão sendo feitos e um deles vai desembocar numa área de palafitas. O desejo de muito tempo da elite local é a remoção dessas palafitas para articular esse espaço com outros que ficam próximos e já são mais turísticos. Então, se tirarem as palafitas no final da Tamandaré, vai dar para ligar o Mangal das Garças com espaços da cidade velha que constituíam o conjunto Feliz Lusitânia [conjunto arquitetônico e paisagístico no centro histórico de Belém]. Isso vai ser uma pressão enorme para que outras áreas dessa margem também recebam novos tratamentos e percam suas palafitas e a identidade original da cidade, que era para ser uma cidade ribeirinha. Não acho que devemos tratar essa discussão de outra perspectiva que não seja essa, das identidades locais.
A agenda de obras da COP foi uma agenda que saiu da gaveta, com coisas que já estavam programadas. Em dois anos e meio não é possível preparar uma agenda, projetos e repensar a cidade. Então, aquilo que estava na gaveta das lideranças políticas que hoje estão exercendo maioria ou posições importantes acabou sendo conduzido.
Há uma concentração de investimentos em áreas que são de interesse imobiliário. Num dos parques lineares [Parque Linear da Doca], na Avenida Visconde de Souza Franco, tem apartamentos que são vendidos por sete milhões de reais. Enfim, é uma coisa fora da realidade para a condição média socioeconômica local.
IHU – Segundo especialistas em planejamento urbano, uma das consequências das Olimpíadas de 2016 foi a subordinação do desenvolvimento urbano à acumulação urbana e imobiliária no Rio de Janeiro, que está no centro dos megaeventos. Como essa lógica tem se manifestado em Belém, para além da construção de moradias de alto padrão? Como a especulação imobiliária apropria-se e beneficia-se da realização da COP na cidade?
Ana Cláudia Cardoso – É a mesma situação que vimos fortemente na época da Olimpíada de Barcelona, em 1992, ou como essa lógica foi praticada em cidades como Baltimore, ou em Londres, que foram reciclando espaços de estrutura portuária para orlas de serviço ligadas a agendas de entretenimento. Isso criou uma fórmula mágica que realocou a mão de obra que tinha sido dispensada dos setores industriais e de serviço. Aqui, essa lógica se constitui como uma narrativa de abrir a cidade para o rio. Mas a cidade sempre foi aberta para o rio, só que quem usava o espaço da margem era a população de baixa renda. Agora, isso passou a ser reivindicado pelas populações de classe média e alta em razão das experiências do Norte global. Isso tem associação com uma agenda de cuidado com o aeroporto, com determinados acessos, centro de convenções, hotéis e espaços turísticos como prioridade em detrimento de uma visão de planejamento mais abrangente e sistêmico da cidade.
Teve um momento que tivemos uma agenda para 2000 e agora temos uma agenda para 2030, em que o governo estadual reedita o protocolo de como motivar o turismo com esses investimentos: o aeroporto, determinados eixos, determinados espaços destinados para o turismo numa região onde o [mercado] Ver-o-Peso não é o que é por causa dos turistas, nem será nunca, porque quem faz a dinâmica do Ver-o-Peso é a visita dos ribeirinhos. É o fluxo de ribeirinhos que traz elementos para venda, como açaí, peixe, frutos e ervas da região para vender na cidade. Eles resolvem seus assuntos, atendem as necessidades e voltam para suas casas, nos rios e igarapés, porque assim é a lógica nativa. Muitas vezes, os governos vão se distanciando da lógica popular e tentam reproduzir soluções que são muito homogeneizantes da lógica capitalista para aumentar a arrecadação, fazer dinheiro, achando que isso vai se realizar da mesma forma que aconteceu em outros lugares.
O foco no externo, no turismo, no megaevento, tira o investimento que era para ter sido feito em coisas que são do interesse da população. Então, muita coisa repercutiu em termos de educação e saúde. Toda a pauta é feita para viabilizar as ações prioritárias e isso é bem típico da formulação do planejamento estratégico do megaevento que o Rio de Janeiro viveu demais, com os jogos Pan-Americanos, as Olimpíadas e a Copa. A cidade de Belém tinha ficado a salvo até aqui, mas agora virou a bola da vez.
Ainda é cedo para avaliarmos como a acumulação imobiliária vai se apropriar da dinâmica da COP. Mas tem uma coisa muito interessante: a COP trouxe um nível de clientes de muita alta renda, como governos e grandes corporações, para o setor hoteleiro e imobiliário. Isso criou uma situação de saturação na hospedagem. Muita gente passou a colocar seus imóveis à disposição em plataformas como Airbnb a preços bastante elevados. Também temos visto donos de imóveis pequenos desalojar pessoas e famílias inteiras que dependem desse tipo de moradia para preparar os imóveis para locação. Nesse aspecto, tem havido pressão, prejuízo e injustiça com a população local.
Como Belém tem essa questão de ser diversa, no sentido de que há quadras da cidade muito bem atendidas, como a parte central, e outras partes que são muito carentes de investimentos, é muito fácil fazer dinheiro concentrando mais coisas nas áreas formais e invisibilizando as áreas informais. Mas, em tempos de geotecnologia e censo recente, recebemos os dados que evidenciam que existe um lado menos atendido na cidade. Em contrapartida, escutamos como resposta das lideranças políticas locais que a COP não vai resolver os problemas históricos da cidade – e isso é verdade. Mas, por outro lado, seria muito interessante não permitir que a COP agravasse os processos históricos.
IHU – Que contrastes percebe entre recursos destinados para a viabilização de políticas públicas em Belém e recursos destinados para garantir a realização da COP30?
Ana Cláudia Cardoso – O governo federal foi muito proativo e redirecionou, nas negociações, dívidas históricas para serem realocadas na construção do parque da cidade, que poderá ser uma coisa muito legal. Essa área, que era um antigo aeroclube, foi negociada, anos atrás, com o Ministério da Justiça, para virar um parque. Houve um concurso para isso, mas não havia garantias de que o parque fosse implementado e já havia uma pressão enorme para que essa área fosse ocupada por outros usos do setor imobiliário. Então, foi superpositiva a eleição do parque da cidade como um dos espaços da COP, e a articulação com o lugar, que fica próximo.
Mas, em outros aspectos, imagino que o governo federal não tinha como compreender muito claramente a serviço de quem estava. Por exemplo, projetos de partidos que estavam se ensaiando há 15, 20 anos, para os quais ninguém tinha dado bola, conseguiram ser colocados em pauta, como a Avenida Liberdade e a rua da Marinha, que estão abrindo a toque de caixa e passando por cima de outro parque. Por outro lado, tem as restaurações do Ver-o-Peso e do mercado de São Brás, que precisavam ser feitas. Essas são obras encampadas pelo município.
Então, é muito difícil fazer a crítica sobre a questão dos recursos, mas, evidentemente, seria muito interessante se pudéssemos ter esses recursos de forma contínua, organizada, planejada, para, de fato, resolver problemas históricos que o Brasil inteiro deve para a Amazônia, porque todo mundo conhece alguém que veio para cá fazer dinheiro em algum grande projeto. Sabemos que as pessoas ganhavam dinheiro e o enviavam para casa, mas aqui se constituiu o passivo de uma série de situações informais, criminosas e irregulares.
IHU – Como a recepção da COP30 e os empreendimentos que estão sendo feitos pelo governo para receber o evento estão repercutindo entre a população?
Ana Cláudia Cardoso – A população tem reagido de uma forma muito interessante. Tem uma parte mais bem atendida, que tem colocado seus imóveis à venda e vê nisso a oportunidade de fazer dinheiro, mas tem uma outra parte, como a periférica, que está fazendo movimentos interessantes para compreender que debate é esse e como a população fica em relação a essa agenda das mudanças climáticas.
Já tivemos aqui a COP das baixadas, realizada há vários anos. Também tem um movimento forte, de vários segmentos sociais, que vai se organizar para a Cúpula dos Povos. Então, vai ter muita mobilização social na COP. Sabemos que a COP não é para tratar da Amazônia, mas uma vez estando aqui, todos os povos da Amazônia vão, de alguma forma, buscar dar visibilidade para as questões históricas que temos na região.
IHU – O que a realização da COP30 no Brasil pode significar para o país? Poderá ter incidência nas discussões e políticas públicas de enfrentamento às mudanças climáticas no país ou será só mais um megaevento com legado questionado?
Ana Cláudia Cardoso – A COP no Brasil é ótimo porque temos que acabar com a herança bandeirante de avançar criando áreas de fronteira agrícola e destruição de ecossistemas, que é uma coisa que começou no Sudeste e no Sul, no século XIX.
Estamos recebendo pessoas que tiveram suas terras destruídas pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. Elas estão baixando aqui e estamos vendo paisagens inteiras desaparecerem para cinco anos de plantio de soja e outras commodities. Não conseguimos ter, no Brasil, uma massa crítica para entender que a Amazônia tem maior valor na sua integridade, com os povos que sabem manejar a floresta e mantê-la em pé, com a vegetação, os rios e a terra como um combo. Não podemos dissociar esses elementos e ver a terra como algo a ser convertido em novos usos.
IHU – Nesse contexto, qual o impacto da aprovação do PL do autolicenciamento ambiental para uma cidade como Belém ou para a Amazônia como um todo?
Ana Cláudia Cardoso – É uma burrice o que o Brasil está fazendo: eliminando uma área que produz serviços ambientais importantíssimos, como água, biodiversidade e alimento, e que contribui com seus nutrientes, que são carreados pelo rio, para alimentar o fitoplâncton do oceano, que gera o oxigênio que se respira neste planeta. Estamos assistindo ao desmantelamento de um arranjo que se constituiu em milhares de anos.
A floresta tem dez mil anos. As pessoas foram ativas e agentes na produção dessa floresta, que é uma enorme roça. A floresta nunca foi uma mata virgem, como era visto nos anos 1970, como um potencial infinito que não acaba. Ao contrário, acaba, sim. A floresta não se regenera; depende de ter trabalho. Muitos dizem que a floresta se regenera, mas não é assim. Estamos aqui próximos do ponto de não retorno, assistindo à savanização.
Nesse sentido, o PL do autolicenciamento é uma vergonha. Não em relação à cidade de Belém, mas para aquilo que isso significa para essa região. Ou seja, significa um descaso muito grande com questões ligadas à manutenção dos ecossistemas, a despeito de modos de vida de uma série de grupos que podem ser genericamente classificados como povos da floresta, indígenas, quilombolas, extrativistas, quebradeiros de coco.
No Sul, muitas pessoas viviam da biodiversidade, mas têm sido colocadas numa situação de minorias que perderam visibilidade. Na região amazônica, essas pessoas são maioria e poderiam ter sido adotadas outras políticas para que elas pudessem ter dado um salto enorme na nova fase econômica do mundo, baseada em biotecnologia. Tínhamos tudo aqui e estamos acabando com a biodiversidade para produzir grãos, usando a água do subsolo para alimentar animais. As cadeias globais levam a soja de Santarém para a Holanda para criação de porcos, além de outros direcionamentos para a Ásia.
Enfim, há uma disputa muito grande para controlar a terra em razão da existência de minérios e ninguém quer saber das questões ecossistêmicas ou das questões ecológicas ou como podemos nos posicionar em relação às necessidades do planeta e nos adaptarmos às mudanças climáticas. Na Amazônia, nós éramos muito bem adaptados. Se tinha um lugar onde as pessoas sabiam manejar a natureza era aqui. Mas, hoje, temos inúmeras contradições. Algumas delas são vexatórias porque o mundo científico está apontando para nós que o sinal está para lá de amarelo e as pessoas estão fingindo que não existe amanhã; o importante é o lucro de hoje.
Entre esses, estão muitos representes dos setores público e privado. Mas o que é pior é o nível de alienação das pessoas. Vemos o Sudeste completamente enuviado de fumaça, sem água, além dos eventos extremos que estão ocorrendo. Percebemos que alguma coisa está desregulada e continuamos agindo como se não tivesse nada a fazer. E há. A COP tinha uma agenda de diplomacia para discutir parâmetros objetivos para a adaptação e não se tem buscado coerência com essa agenda. Esse movimento tem sido muito tímido.
O pior é a população não compreender quase nada a respeito disso. Nesse aspecto, a população da periferia de Belém está procurando se informar. Seria muito legal se o Brasil todo parasse para pensar qual é o sentido de tudo isso, o que temos feito com os nossos biomas, qual é o uso mais inteligente que poderíamos fazer das riquezas naturais que temos no país, num mundo que está caminhando para uma situação de colapso e uma situação de eventual falta de alimento, inclusive. Basta que sumam alguns insetos, como as abelhas, e não vamos ter agricultura, a menos que dependa de comprar semente a cada ano e depois comprar defensivos e agrotóxicos. Então, estamos numa condição de dependência de determinadas grandes indústrias. O que vai acontecer, certamente, é a fome, enquanto tínhamos muita diversidade.
Quanto alimento saiu desse continente para a Europa, numa época em que eles passavam fome? Penso que pode ser muito legal acontecerem debates aqui e as pessoas começarem a olhar para a Amazônia e a se interessarem por entender melhor esse processo histórico do próprio país, um país tão dividido, e entender que aqui não temos mais para onde avançar. Eventualmente, não é ganhar dinheiro o que pode ser o mais importante no aqui e agora, mas garantir a vida no futuro. Para isso, as pessoas precisam amadurecer.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Ana Cláudia Cardoso – Só lembrar que Belém tem o título de capital da gastronomia. É uma das cidades que tem a melhor comida do mundo por conta da presença e do trabalho das pessoas da floresta, que trazem os insumos e fazem a comida ser tão especial.