06 Outubro 2020
“Há um tesouro à sua espera. Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil”. O convite, tentador, estampa uma propaganda de página inteira publicada nas principais revistas do Brasil em 1972. Esse Eldorado, onde era possível ficar rico da noite para o dia, era a recém desbravada floresta Amazônica. Em outra campanha publicitária, desta vez da companhia de navegação marítima Netumar, a floresta é um inimigo que acaba de ser abatido. “A Amazônia já era!”, diz o anúncio. “E como isso nos orgulha!”, completa.
A reportagem é de Fernanda Wenzel, publicada por O Eco, 04-10-2020.
Propaganda da companhia de navegação marítima Netumar. (Foto: Reprodução | Acervo Ricardo Cardim)
A glorificação do desmatamento estampada na imprensa brasileira soa como uma brincadeira de mau gosto nos tempos atuais, quando líderes, empresários e investidores do Brasil e do mundo criticam a política antiambiental do governo Bolsonaro. Mas, há apenas 40 anos, estas manchetes eram não apenas aceitáveis, como celebradas. “Embora isso tenha ocorrida há menos de 50 anos, quase não se fala deste assunto. Somos levados a pensar que a situação caótica da Amazônia hoje é fruto de algo espontâneo, natural. Mas não, foi uma invasão profundamente orquestrada, incentivada e pressionada pelo governo e a iniciativa privada”, reflete Ricardo Cardim.
Cardim, que acumula as credenciais de dentista, botânico, paisagista e historiador, é o responsável por desencavar a cobertura da imprensa sobre a Amazônia nos anos de chumbo. A pesquisa é a primeira parte do projeto “Árvores gigantes da Amazônia e a pressão do desmatamento”, e vai voltar aos anos 1960 para explicar como a Amazônia chegou ao nível de devastação atual – com quase 20% da área desmatada. “Até o final da década de 1960 e comecinho da década de 1970 a Amazônia estava praticamente intocada. A ditadura elaborou um plano estratégico de interesse político e econômico para ocupar a região, e isso é feito com uma força avassaladora”, explica.
Na segunda parte do trabalho, que será transformado em uma exposição e um livro, consiste em fotografias de árvores gigantes do bioma, capturadas pelo fotógrafo Cássio Vasconcellos – autor de livros como Brasil visto do Céu e Noturnos São Paulo.
A expedição em busca das árvores gigantes era para ter começado em março, mas teve que ser adiada com a pandemia. Diante do imprevisto, Cardim optou por se aprofundar ainda mais no que ele chama de “arqueologia do desastre”. Uma obsessão que começou na infância quando, na casa da avó, encontrou uma edição da Revista Manchete, de 1970, que mostrava uma estrada de terra riscando um infinito tapete verde. O título, em letras garrafais, anunciava: “Para unir os brasileiros nós rasgamos o inferno verde”.
Propaganda da construtora Andrade Gutierrez publicada na Edição Especial Amazônia da Revista Realidade de 1972. (Foto: Reprodução | Acervo Ricardo Cardim)
O pontapé inicial da ocupação da Amazônia foi dado nos anos 1960 quando o presidente Juscelino Kubitschek promoveu a construção da rodovia Belém-Brasília. “Com 3.400 trabalhadores divididos em onze turmas e duzentos caminhões, tratores e outras máquinas, que eram lançadas até de paraquedas nos setores de difícil acesso, a ‘estrada para a onça’ foi inaugurada em 31 de janeiro de 1960. Não demorou a atrair centenas de milhares de migrantes, que desbravaram as margens da rodovia e criaram novas cidades”, escreveu Cardim em artigo para revista Quatro Cinco Um.
A verdadeira invasão, no entanto, veio com a ditadura militar e a construção da Transamazônica. A obra começou em julho de 1970 com a promessa de atravessar o Brasil de leste a oeste, percorrendo uma distância maior que a existente entre Caracas e Buenos Aires. Dez quilômetros de cada margem da estrada foram reservados para a colonização e reforma agrária. Segundo a pesquisa de Cardim, o plano da ditadura era levar 100 mil famílias para ocupar o entorno das novas rodovias federais na Amazônia.
Para convencer brasileiros de outras partes do país a migrar para Norte, o governo esforçava-se por mostrar que a floresta havia deixado de ser um lugar perigoso e selvagem – o “inferno verde” – para tornar-se um paraíso de oportunidades. “Chega de lendas, vamos faturar! A Transamazônica está aí: a pista da mina de ouro. […] Há um tesouro a sua espera. Aproveite. Fature. Enriqueça junto com o Brasil”, incentiva a propaganda da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) publicada nas grandes revistas brasileiras nos anos 1970.
Propaganda da Sudam publicada na publicada na Edição Especial Amazônia da Revista Realidade de 1972. (Foto: Reprodução | Acervo Ricardo Cardim)
Além de canteiro de obras – que encheu os cofres das grandes empreiteiras – a Amazônia serviu como válvula de escape para uma pressão popular cada vez maior pela reforma agrária. “O Polonoroeste, de Rondônia, atraiu famílias do Sul do país cujos herdeiros já não tinham mais espaço de terra, já que eram famílias numerosas, com muitos filhos. Desde os anos 1970 já vinha essa pressão enorme para a reforma agrária, com os ‘homens sem terra do Nordeste para a terra sem homens da Amazônia’”, lembra Cardim.
A campanha de convencimento se valia de propagandas oficiais, mas também de materiais produzidos pelas próprias equipes de reportagem. Aquela edição especial da Manchete, encontrada na casa da vó, dedicou 12 páginas coloridas à “conquista” da floresta pela Transamazônica. Em 1973, a mesma revista mostra um carro trafegando em uma estrada de terra cercada de árvores derrubadas, com o anúncio: “Um novo Brasil”. “A imprensa, via de regra, comprou o tema, seja porque concordava ou pela própria pressão da ditadura, que não era pouca naqueles anos de chumbo. O maior expoente disso era a Revista Manchete”, afirma Cardim.
Capa da edição especial da Revista Manchete de fevereiro de 1973. (Foto: Reprodução | Acervo Ricardo Cardim)
A pesquisa histórica também evidencia o protagonismo das grandes empresas na ocupação da Amazônia. Além da companhia de navegação marítima Netumar e da construtora Andrade Gutierrez, até mesmo o Banco de Londres patrocinou a euforia em torno da destruição da floresta. Na propaganda, a instituição financeira inglesa lembra que tinha uma agência em Manaus desde 1901, e garante: “Estamos preparados para acompanhar o novo ritmo de desenvolvimento que contagia a região”.
Propaganda do Banco de Londres na Edição Especial Amazônia da Revista Realidade 1972. (Foto: Reprodução | Acervo Ricardo Cardim)
Ricardo Cardim, o dentista que migrou para a botânica
aos 27 anos de idade. (Foto: Ricardo Cardim)
Ricardo Cardim nasceu e cresceu na capital paulista, dentro de um apartamento. Apesar do escasso contato com a natureza – ou talvez por isso mesmo – sempre se interessou pelos vestígios de Mata Atlântica que sobreviviam na metrópole.
Mas, por muito tempo, esse interesse em plantas foi apenas um hobby. Cardim fez faculdade de odontologia e trabalhou por anos como dentista. Em 2005, aos 27 anos, decidiu mudar de vida e tornou-se estagiário do curso de botânica da Universidade de São Paulo (USP). Fez um mestrado na área e, em 2010, abriu uma empresa de arquitetura paisagística com a esposa Alessandra Caiado Cardim, que é arquiteta. “É um dos poucos escritórios de arquitetura do Brasil, senão único, que trabalha exclusivamente com vegetação nativa”, orgulha-se.
O interesse pelos vestígios da Mata Atlântica em São Paulo o levou a desenvolver projetos com o Floresta de Bolso – que recupera pequenas áreas de floresta nativa dentro da cidade – e a criar a Associação Amigos das Árvores e o blog Árvores de São Paulo.
Mas uma paixão ainda maior – pelas árvores gigantes – levou ele e Cássio Vasconcellos a uma extensa pesquisa para reconstituir, com imagens, a Mata Atlântica original. “A gente mostrou todo o processo de destruição do bioma com fotografias antigas, e depois a gente fez uma expedição de 12 mil km desde o Alagoas até Santa Catarina fotografando as árvores gigantes que sobreviveram da floresta original”, explica.
O trabalho deu origem ao livro “Remanescentes da Mata Atlântica – As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios”, lançado em 2018 pela Editora Olhares. Logo, Cardim percebeu que a mesma abordagem poderia ser transposta para a Amazônia. Ele começou a trabalhar no atual projeto, que precisa de patrocínios para seguir adiante. “A Amazônia nunca foi mostrada sob o ponto de vista de suas árvores gigantes. Estas espécies, que são o esqueleto da floresta e são importantíssimas para a questão de carbono e biodiversidade, são sempre mostradas em manuais técnicos ou aparecem raramente em algum livro generalista sobre paisagens da Amazônia”, explica.
A empolgação, no entanto, convive com o pessimismo de quem estudou a fundo o processo que reduziu a Mata Atlântica aos atuais 12% da cobertura original. Para Cardim, a Amazônia está seguindo o mesmo caminho. “A Mata Atlântica virou uma colcha de retalhos e a Amazônia vai seguir este tipo de desflorestamento, que é a ocupação de fronteiras”, afirma.
Para o botânico, a maior floresta tropical do mundo está sendo fatiada pelas principais rodovias da região Norte. Separado do todo, cada fragmento tende a se tornar uma sombra do que era antes antes. “Você cria florestas zumbis, que são quadradinhos que sobram no meio da agricultura e do pasto. Estas áreas passam a ter uma série de desequilíbrios ecológicos, seja porque não tem mais fauna, pela mudança de microclimas, de ventos… é uma floresta morta-viva”.
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“A Amazônia já era!”: como a imprensa glorificou a destruição da floresta na ditadura militar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU