Alegorias, metáforas e os descaminhos da literatura serviram de estratégia para escritores e jornalistas gaúchos escaparem do regime militar nos anos de chumbo
O primeiro expediente de todo regime de exceção é cercar todo e qualquer discurso que possa representar alguma resistência ao governo estabelecido. O horror à cultura, e todas suas manifestações, é um traço do autoritarismo. Diante disso, alternativas estéticas surgem nesse contexto. “Nesse período, ganha destaque o romance-reportagem. Embora não seja um gênero novo, essa modalidade de escrita passa a ser bastante praticada. Entremeado de jornalismo, o romance-reportagem recebeu o papel de resistir politicamente às arbitrariedades do regime ditatorial e, também, à ação da censura nos jornais e em outros meios de comunicação, revelando e denunciando as verdades omitidas e mascaradas pela versão oficial. Com uso de uma linguagem mais objetiva e partindo geralmente de um fato extraído de uma manchete de jornal, os escritores podiam usar a imaginação para “aprofundar” certos temas que lhes eram impedidos nos jornais”, explica o professor Lizandro Calegari, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Na literatura ficcional dois nomes produziram obras de resistência incontornáveis no contexto da literatura do RS, Caio Fernando Abreu e Moacyr Scliar. “De Caio Fernando Abreu (1948-1996), podemos citar O ovo apunhalado, de 1975, Pedras de Calcutá, de 1977, e Morangos mofados, de 1982. Trata-se de um autor central cujos textos ajudam a pensar não só a ditadura, mas também os movimentos de contracultura no país. Na minha opinião, é o que melhor se tem em termos de contística no RS e no Brasil. Moacyr Scliar (1937-2011), por sua vez, envereda para a literatura fantástica, para situações surreais, para o insólito, tematizando muito dilemas envolvendo personagens judeus. Talvez o seu romance O exército de um homem só, de 1973, seja o que mais se aproxima e ajuda a pensar alguns aspectos da ditadura no Brasil”, explica.
Uma das experiências jornalísticas mais impressionantes do jornalismo gaúcho foi o jornal Pato Macho. Dirigido por Luis Fernando Verissimo, um dos maiores escritores contemporâneos do RS, falecido recentemente, a publicação tinha um viés satírico que incomodou muito o regime militar, tendo sobrevivido por pouco tempo. “O jornal Pato Macho surgiu em Porto Alegre em 1971 e tinha como princípio impor resistência ao regime ditatorial e criticar a burguesia da época. Inspirado no jornal O Pasquim, que circulou no RJ entre 1969 e 1991, com estilo irreverente, Pato Macho foi o primeiro periódico do Estado que fez uso do humor, da sátira e do sarcasmo nas suas edições para atacar o poder”, descreve. “Pato Macho foi o primeiro jornal alternativo do Sul do Estado que recebeu a censura e pôde circular somente com a liberação de um censor da polícia federal. No entanto, bateu recordes de vendas e conseguiu reunir intelectuais e jornalistas famosos, apesar de ser malvisto pelos governantes e pela burguesia regional. Por ser um periódico feito pela esquerda metropolitana, criticava tanto a burguesia conservadora quanto o militarismo exercido no país”, complementa.
Para Calegari, fazer memória desses eventos é uma obrigação à qual não devemos nos furtar. “Falar da ditadura, hoje, é uma forma de resistência: resistência àqueles que negam as reais dimensões do evento e, em alguns casos, negam, inclusive, a sua ocorrência. Esse memoricídio é perigoso porque pode contribuir para um retorno àqueles anos truculentos da nossa história. Resistência e memória são importantes para que se tenham elementos para culpabilizar os algozes pelos assassinatos, torturas e traumas causados numa parcela da sociedade. Esse trauma, convém dizer, não atinge só as vítimas, mas também, de modo indireto, atinge aos familiares dessas vítimas. Enfim, trata-se de um acerto de contas com o passado, é uma forma de fazer justiça constante”, pondera.
Lizandro Carlos Calegari (Foto: Arquivo pessoal)
Lizandro Carlos Calegari é professor de Literatura no Colégio Politécnico da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e no PPG de Letras da mesma instituição. Cursou mestrado e doutorado em Estudos Literários pela UFSM. É autor de Crítica da cultura, crítica da modernidade (2016) e Ensaios (in) conjuntos (2013). Foi um dor organizadores dos seguintes livros: Literatura, exclusão e resistência (2020); Sexualidades e identidades culturais (2019); Excluídos e marginalizados na literatura (2013); Estética e política na produção cultural (2011); Clarice Lispector & Guimarães Rosa (2012). É membro do Comitê Editorial para publicação de Letras e Artes da Editora Paco Editorial.
IHU – Pode nos explicar como foram as dinâmicas da ditadura civil-militar no RS durante os anos de chumbo? No que se assemelham ao restante do país e quais suas particularidades?
Lizandro Carlos Calegari – As dinâmicas adotadas pela ditadura civil-militar no RS, de certa forma, estavam em consonância com o que se observava em outras partes do Brasil, em especial nos principais centros culturais do país. A ditadura se valia da censura, da propaganda e da violência para atingir seus fins. Havia a censura aqui, sim, mas não era um processo tão militarizado, ou seja, não era feita majoritariamente por militares, mas por funcionários burocratas. A censura impedia que se formulassem e que se divulgassem, sobretudo imagens negativas do Brasil. Com isso, certos temas como miséria, subdesenvolvimento e política eram coibidos. Havia uma espécie de profissionalização da censura de forma que agentes eram treinados para vigiar as mídias de informação e as artes. Em seu lugar, surgiam propagandas afirmativas e idealistas do país, acenando para imagens de ordem, progresso, desenvolvimento. Em casos mais extremos, utilizava-se a violência – por meio da perseguição, da tortura – para inibir grupos que resistiam ao autoritarismo da ditadura civil-militar.
IHU – Como a prosa literária e jornalística se entrelaçaram no contexto da resistência ao golpe de Estado em 1964 e nos 21 anos subsequentes?
Lizandro Carlos Calegari – Muitos jornalistas, devido à censura e, como consequência, à dificuldade de publicação de suas matérias nos veículos tradicionais, migraram para a literatura. Nesse período, ganha destaque o romance-reportagem. Embora não seja um gênero novo, essa modalidade de escrita passa a ser bastante praticada. Entremeado de jornalismo, o romance-reportagem recebeu o papel de resistir politicamente às arbitrariedades do regime ditatorial e, também, à ação da censura nos jornais e em outros meios de comunicação, revelando e denunciando as verdades omitidas e mascaradas pela versão oficial. Com uso de uma linguagem mais objetiva e partindo geralmente de um fato extraído de uma manchete de jornal, os escritores podiam usar a imaginação para “aprofundar” certos temas que lhes eram impedidos nos jornais. Não era uma modalidade de escrita qualquer, porque não cabia aos escritores simplesmente cruzar fato e ficção; eles deviam, entre outros critérios, articular e ordenar os acontecimentos segundo as necessidades de coerência interna de seu discurso.
IHU – Um dos efeitos do golpe civil-militar foi uma renovação da literatura e do jornalismo no RS. Como isso aconteceu? Que exemplos ilustram essa mudança?
Lizandro Carlos Calegari – Durante a ditadura, tanto a literatura quanto o jornalismo foram alvos constantes de censura. Logo, se havia interferências nas condições habituais de produção, de circulação e de recepção dos textos, havia necessidade de alterações tanto na primeira quanto no segundo para se burlar a censura então em curso. Para tanto, parte dos escritores fazia uso de metáforas (“linguagem de fresta”, como dizia Caetano Veloso), palavras e expressões ambíguas, recorrência a situações passadas para se referirem ao presente, situações insólitas, etc. Por exemplo, alguns contos de Caio Fernando Abreu não fazem referências diretas à ditadura, mas a leitura de seus textos causa um clima desconcertante, angustiante, sufocante, que remete à época.
No que diz respeito ao jornalismo, as particularidades tendiam a variar de situação para situação, dependendo da tendência dos jornais, mais de esquerda ou mais de direita, se ainda é válido usarmos essas denominações. Havia aqueles jornais que traziam em suas páginas notícias, reportagens e propagandas que enalteciam os feitos dos militares, suas conquistas econômicas e a suposta pacificação do país, celebrando a eliminação dos terroristas e dos denominados “maus brasileiros” que “ameaçavam a ordem e o progresso”. Por sua vez, havia aqueles jornais que buscaram garantir certa independência, imparcialidade, isenção. Seja como for, o certo é que a imprensa era cercada pela censura. Era comum haver um funcionário da polícia federal que visitava a redação diariamente e comunicava os assuntos que não poderiam ser abordados.
IHU – Caio Fernando Abreu, Moacyr Scliar, Luiz Antonio de Assis Brasil, entre outros, são autores cujas obras se posicionaram contra o regime ditatorial. Nestes casos, quais livros demarcam esta posição de resistência? O senhor gostaria de citar outros autores e obras?
Lizandro Carlos Calegari – De Caio Fernando Abreu (1948-1996), podemos citar O ovo apunhalado, de 1975, Pedras de Calcutá, de 1977, e Morangos mofados, de 1982. Trata-se de um autor central cujos textos ajudam a pensar não só a ditadura, mas também os movimentos de contracultura no país. Na minha opinião, é o que melhor se tem em termos de contística no RS e no Brasil. Moacyr Scliar (1937-2011), por sua vez, envereda para a literatura fantástica, para situações surreais, para o insólito, tematizando muito dilemas envolvendo personagens judeus. Talvez o seu romance O exército de um homem só, de 1973, seja o que mais se aproxima e ajuda a pensar alguns aspectos da ditadura no Brasil. Em relação a Assis Brasil (1945-...), embora tenha uma prosa essencialmente voltada para questões históricas, está mais preocupado com temas como a colonização açoriana, a Revolução Farroupilha, a crítica aos caudilhos, do que propriamente com a ditadura civil-militar.
IHU – Erico Verissimo é talvez o nome mais relevante da prosa ficcional gaúcha. Por que ele merece esse lugar de destaque? Que obra você destacaria como a mais incontornável?
Lizandro Carlos Calegari – Há várias razões para um autor ganhar destaque e, consequentemente, poder ser incluído no cânone literário de um Estado, de um país. Por outro lado, vão se estabelecendo critérios para se excluírem certos autores e obras da tradição literária. Todo processo de inclusão implica um processo de exclusão. O tema é amplo, polêmico e, quase sempre, complexo. De modo geral, pode-se dizer que se parte de critérios estéticos e ideológicos para a consagração ou não de um autor, e o tempo, ou melhor, a recepção contribui para isso.
Bem ou mal comparando, a exemplo de Machado de Assis, Erico Verissimo não se consagrou com o seu primeiro livro de contos, Fantoches, de 1932, nem, talvez, com as obras seguintes – Clarissa (1933), Música ao longe (1935), Caminhos cruzados (1935), Olhai os lírios do campo (1938), só para citar algumas –, mas essas, com certeza, ajudaram a tornar o autor nacionalmente conhecido. É com a publicação de O tempo e o vento que Verissimo ganha projeção e vulto na literatura brasileira. Trata-se de um título que abrange três livros: O continente, O retrato e O arquipélago, publicados entre 1949 e 1961. Consiste numa trilogia que narra ficcionalmente a formação do Estado do RS por meio da trajetória de sucessivas gerações da família Terra-Cambará, a começar em 1745 e se estende até 1945. Trata-se de um romance histórico em que, por conta disso, o destaque fica com os personagens, alguns imortalizados (Ana Terra, capitão Rodrigo, Bibiana, entre outros). Com uma linguagem fluente e precisa, os livros não só narram parte da história do RS como também tocam em temas mais amplos e abrangentes como violência, machismo, memória, solidão, sofrimento, etc. É a reunião desses aspectos que tornam Verissimo e o seu O tempo e o vento de grande valor para a nossa literatura.
IHU – O senhor poderia falar sobre o que foi o “ciclo político” de Erico Verissimo, representado por O senhor embaixador (1965), O prisioneiro (1967) e Incidente em Antares (1971)? Sobre o que versam essas obras e por que são importantes no contexto da literatura gaúcha?
Lizandro Carlos Calegari – A obra de Erico Verissimo costuma ser dividida em ciclos. Assim, há o ciclo urbano, composto por livros como Caminhos cruzados (1935), Olhai os lírios do campo (1938) e O resto é silêncio (1943), entre os mais conhecidos, e o ciclo político, representado por O senhor embaixador (1965), O prisioneiro (1967) e Incidente em Antares (1971). Dentro desse último ciclo, enquanto os dois primeiros romances discutem questões sociais a partir de acontecimentos internacionais, Incidente em Antares pode ser lido como uma crítica ao autoritarismo da ditadura militar que o Brasil enfrentava. O senhor embaixador situa-se geograficamente em Washington e em Sacramento, uma república imaginária situada na América Central, regida por um ditador. Pode haver uma relação entre essa obra e a Revolução Cubana de 1959. Por sua vez, em O prisioneiro, Verissimo formula indagações morais e políticas sobre o sentido da guerra e da intervenção de uma grande potência ocidental no Sudeste Asiático. Notadamente, trata-se do intervencionismo norte-americano. Embora não haja referências diretas aos países envolvidos no conflito, as alusões feitas no texto apontam para a Guerra do Vietnã (1963-1975) e seus desdobramentos. Incidente em Antares é a história de sete mortos que, devido a uma grave de coveiros, ficam insepultos e, na manhã de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, saem de seus esquifes para exigirem sepultamento. Justamente por estarem mortos, os defuntos, nada mais tendo a perder, podem denunciar a hipocrisia, a mentira e a podridão dos vivos, havendo, assim, um desmascaramento coletivo sobretudo dos poderosos de Antares, os quais têm seu poder posto em questionamento. Considerando-se o contexto em que foram publicadas, são obras que ajudam a entender, cada uma a seu modo, o momento histórico por que o Brasil e o RS passavam, uma vez que tocam em temas como intervencionismo, violência, autoritarismo e falta de liberdade.
IHU – Erico Verissimo não era nem revolucionário, nem libertário, mantinha uma posição liberal-humanista, tal como o senhor descreve no seu texto “A ditadura civil-militar brasileira: literatura e imprensa no contexto sul-rio-grandense”. Como podemos compreender essa posição? Como isso se manifesta nos escritos de Erico?
Lizandro Carlos Calegari – Muitos autores aderem a certas ideologias, como o comunismo e o fascismo, por exemplo, as quais se fazem notar em seus livros. A meu ver, não parece ser este o caso de Erico Verissimo. Com isso, não quero dizer que o autor, por meio de suas obras, não tenha uma posição crítica frente ao mundo e à sociedade. Ele repudia a violência, o autoritarismo, o machismo, a corrupção. Nesse sentido, suas obras são engajadas, mas não panfletárias. Quando digo que Erico tem uma posição liberal-humanista, quero dizer que, por meio de seus principais textos e situações que representa neles, ele promove um pensamento emancipador, crítico, humanizador, não forjado por certas ideologias.
IHU – Qual foi o papel das editoras Movimento, L&PM (e a Revista Oitenta) e Tchê! (e suas controvérsias) no contexto da ditadura militar no RS?
Lizandro Carlos Calegari – As décadas de 1960, 1970 e 1980 assistem ao nascimento das editoras Movimento, L&PM e Tchê!. É graças a elas que autores como Apparicio Silva Rillo, Barbosa Lessa, Caio Fernando Abreu, Jayme Caetano Braun, Josué Guimarães, Luiz Antonio de Assis Brasil, Millôr Fernandes e Tabajara Ruas, só para citar alguns, ganharam visibilidade.
A Movimento foi fundada em Porto Alegre, em 1972, por Carlos Jorge Appel, professor de literatura e crítico literário na então Faculdade de Filosofia da UFRGS. A sua proposta era reeditar livros já esgotados, como os de Cyro Martins, Dyonélio Machado, Ivan Pedro de Martins, Mario Quintana e Pedro Wayne, entre tantos outros. Contudo, o golpe de 1964 praticamente impediu que o projeto de Appel fosse adiante. Informado por um aluno cujo pai era militar e atuante no exército de que seria preso, o professor decide afastar-se com sua família do país. Com o seu retorno, a proposta foi retomada em 1968, em pleno AI-5, juntamente com Moacyr Scliar e Lígia Averbuck, então aluna de Appel, que levaram a Antonietta Barone, na Subsecretaria da Cultura, o projeto Autores Gaúchos, vigente até hoje. Apesar dos contratempos, vingou e cresceu.
Outra editora que surgiu nos anos de chumbo no Brasil foi a L&PM. Nascida na capital gaúcha, em 1974, foi inaugurada por Paulo de Almeida Lima e Ivan Pinheiro Machado. As letras iniciais dos sobrenomes dos fundadores constituem a sua denominação. Nos seus primórdios, destacou-se pela sua posição de resistência à ditadura, publicando alguns clássicos que atestaram sua contrariedade às ideologias do regime pós-64. Símbolo de resistência ao autoritarismo, Rango foi uma figura das tiras criadas pelo desenhista e cartunista Edgar Vasques e constituiu o primeiro lançamento da editora naquele ano de fundação. O personagem representava os perseguidos pela ditadura, mas foi alvo de censura, tendo sido os editores da L&PM chamados pelo Departamento de Censura da Polícia Federal para prestarem esclarecimentos. Foram salvos graças a um prefácio elaborado por Erico Verissimo.
Por sua vez, a relação da Tchê! com a ditadura, particularmente no que diz respeito ao seu fundador, Airton Ortiz, parece ser um pouco nebulosa e suspeita em razão do teor de alguns livros publicados. Algumas fontes apontam para o fato de que a editora teria lançado obras de escreventes ligados ao Partido Revolucionário Comunista (PRC) e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Há quem diga também que teria publicado um livro do então sargento Marco Pollo Giordano intitulado Brasil sempre. Como um ex-integrante do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), trata-se de uma explícita resposta ao livro Brasil: nunca mais. Naquele livro, Giordano argumenta que nunca houve tortura no país durante a ditadura e defende o regime militar e seus torturadores. Esse trabalho, a propósito, foi duramente criticado por alguns autores por trazer conteúdo de teor racista e discriminatório.
IHU – Correio do Povo é o jornal de grande circulação mais tradicional (no sentido de antigo) do RS. Como ocorreu a posição do jornal em relação às duas ditaduras que o Brasil viveu no século XX, o Estado Novo e, mais recentemente, a ditadura civil-militar de 1964?
Lizandro Carlos Calegari – O Correio do Povo é um dos jornais mais antigos do Estado. Inaugurado, em Porto Alegre, em outubro de 1895, seu fundador, o sergipano Francisco Antonio Vieira Caldas Júnior, com então 26 anos, objetivava alcançar a todos com as suas notícias. Mesmo com o término da Revolução de 1893, essa porção do sul do país ainda se encontrava dividida entre republicanos e federalistas, fazendo com que cada partido tivesse o seu próprio jornal para divulgação de suas ideias e ideologias. Caldas Júnior revolucionou a imprensa sul-rio-grandense, pois procurava, ao menos publicamente, não apoiar nenhuma das tendências políticas em curso, adquirindo, assim, um estatuto de independência. Em 1913, com a morte prematura de seu fundador, a administração dos negócios da família passou à sua esposa, Dolores Alcaraz Caldas. O jornal enfrentou diversas dificuldades financeiras até 1935, quando o filho do casal, Breno Alcaraz Caldas, assumiu a direção. Embora a independência do Correio frente aos grupos políticos fosse a sua marca, com a gerência do herdeiro, o jornal apoiou o partido do político gaúcho Getúlio Vargas, que disputou a presidência do país pela Aliança Liberal. A relação do sucessor do fundador do Correio com os governos brasileiros era boa. A sua reputação agradava a Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitscheck, João Goulart e Jânio Quadros, além dos governadores do RS naquele período. Apesar de alguns atritos específicos observados nas décadas seguintes, a relação de Breno Caldas e do Correio com a política nacional era, de modo geral, tranquila. Com o golpe de 1964, grande parte da imprensa, entre elas, o jornal em questão, apoiou o movimento militar, algo que pôs em xeque a suposta e histórica imparcialidade. Isso não significava, porém, que não estivessem cercados pela censura. Com o surgimento de outros jornais, em especial o Zero Hora, e devido a outros fatores, o Correio do Povo sofreu agudas dificuldades financeiras, o que o levou a encerrar as suas atividades em 1984. Dois anos mais tarde, ele voltaria a circular, mas, então, com novos proprietários, figurando, até a atualidade, como um dos principais veículos de comunicação do Estado.
IHU – Como o Correio do Povo tratou a pauta da literatura e a editoria de cultura?
Lizandro Carlos Calegari – Desde o seu primeiro número, o Correio do Povo se apresentou como um órgão literário. A partir de 1899, contava com uma seção intitulada “Poetas do Sul” na qual colaboravam importantes nomes da literatura gaúcha como Apolinário Porto Alegre, Damasceno Vieira, Mário Totta, Múcio Teixeira e Zeferino Brasil, entre outros. A essa seção seguiu-se “Literatura e Páginas Literárias”, culminando no suplemento “Caderno de Sábado”, que começou a circular em setembro de 1967 e transformou-se em “Letras & Livros” em agosto de 1981. Zeferino Brasil, Sérgio de Gouvea, Paulo de Gouvea, Carlos Reverbel, Oswaldo Goidanich e Sérgio Faraco se sucederam na direção das seções e suplementos literários do Correio. Em 1934, Quintana estreou no Correio, mas somente passou a ser colaborador constante ao lançar seu Caderno H em uma edição de 1953. Com algumas interrupções, esteve presente em suas páginas até o ano de sua morte, em maio de 1994.
IHU – O que foi o jornal Pato Macho, inspirado n’O Pasquim, dirigido por Luis Fernando Verissimo? Qual foi sua posição em relação à ditadura civil-militar e quanto tempo ele vingou?
Lizandro Carlos Calegari – O jornal Pato Macho surgiu em Porto Alegre em 1971 e tinha como princípio impor resistência ao regime ditatorial e criticar a burguesia da época. Inspirado no jornal O Pasquim, que circulou no RJ entre 1969 e 1991, com estilo irreverente, Pato Macho foi o primeiro periódico do Estado que fez uso do humor, da sátira e do sarcasmo nas suas edições para atacar o poder.
O jornal, de periodicidade semanal, era dirigido por Luis Fernando Verissimo e contava com membros que, em seguida, se destacariam não só no campo da imprensa como também na área da literatura. Pato Macho foi o primeiro jornal alternativo do Sul do Estado que recebeu a censura e pôde circular somente com a liberação de um censor da polícia federal. No entanto, bateu recordes de vendas e conseguiu reunir intelectuais e jornalistas famosos, apesar de ser malvisto pelos governantes e pela burguesia regional. Por ser um periódico feito pela esquerda metropolitana, criticava tanto a burguesia conservadora quanto o militarismo exercido no país. Apesar de esse jornal voltar a sua atenção muito mais para os costumes de Porto Alegre do que especificamente para o cenário político da época, sofreu censura prévia. Isso se deu porque um dos editores, Coi Lopes de Almeida, deu-se a liberdade de brincar com um nome da alta sociedade da época, Aline Faraco, esposa do então reitor da UFRGS, Eduardo Faraco, que era cardiologista do presidente Médici. A partir daquela situação, o jornal passou a ser censurado e, aos poucos, foi perdendo a sua essência e definhando. Gradualmente, com poucos colaboradores e com o afastamento dos leitores, o jornal entrou em crise. Sem dinheiro, os editores até recorreram a algumas alternativas para manter o jornal vivo, mas não tiveram êxito. Além disso, por ser uma publicação alternativa, tinha a concorrência do Correio do Povo, do Zero Hora e da Folha da Tarde. Por não resistir às pressões econômicas e à censura, durou apenas quatro meses e contou com 15 edições, mas abriu caminho para o surgimento de outros periódicos do mesmo estilo. Atualmente, Pato Macho encontra-se preservado e disponível para pesquisa no acervo do Museu Social Hipólito José da Costa. Também pode ser consultado no acervo digital do Núcleo de Pesquisa em Ciências da Comunicação (NUPECC) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
IHU – Deseja acrescentar algo?
Lizandro Carlos Calegari – Muitos se questionam por que ainda falar da ditadura após muitos anos de seu término. As respostas são muitas. Em primeiro lugar, porque os anos 1964 a 1984 se constituíram em período obscuro da história, cheio de lacunas, perguntas e contradições. Não se trata, pois, de um evento acabado e enterrado no passado. Em segundo lugar, falar da ditadura, hoje, é uma forma de resistência: resistência àqueles que negam as reais dimensões do evento e, em alguns casos, negam, inclusive, a sua ocorrência. Esse memoricídio é perigoso porque pode contribuir para um retorno àqueles anos truculentos da nossa história.
Resistência e memória são importantes para que se tenham elementos para culpabilizar os algozes pelos assassinatos, torturas e traumas causados numa parcela da sociedade. Esse trauma, convém dizer, não atinge só as vítimas, mas também, de modo indireta, atinge aos familiares dessas vítimas. Enfim, trata-se de um acerto de contas com o passado, é uma forma de fazer justiça constante. É interessante observar que, nos últimos anos, nas últimas décadas, têm surgido várias obras que tratam da ditadura. Muitas delas tematizam o corpo violentado e desaparecido que nunca mais retornou aos seus familiares. Essas obras desempenham a função de lápides e, sobre essas lápides, ou melhor, dentro delas, há um indivíduo, uma história, e, a partir delas, se realiza um sepultamento simbólico do ente querido que não mais voltará e cujo corpo jamais será encontrado.