A história por trás da história do RS, repetidamente veiculada em diferentes meios, mostra que o estado mais ao sul do Brasil é diverso e contou com a participação decisiva de pessoas negras, indígenas, mas também de migrantes colonos
No próximo dia 20 de setembro celebram-se os 190 anos do início da Revolução Farroupilha, episódio histórico que culminaria tragicamente uma década mais tarde no massacre de negros e indígenas e na fuga dos generais comandantes. Datam desta época, na primeira metade do século XIX, os primeiros registros literários escritos do Rio Grande do Sul. Essa longa história é contada na coleção História da literatura do Rio Grande do Sul (Editora Coragem/Editora FURG, 2024), escrita por dezenas de pesquisadores e organizada por Luís Augusto Fischer, que concedeu entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. [Em breve as obras serão disponibilizadas gratuitamente em versão digital].
“Concebemos cinco volumes repartidos pela cronologia – e sem usar neles como régua os movimentos, escolas, estilos de época forjados na Europa e tantas vezes repetidos acriticamente no Brasil – e um sexto volume que se organiza por temas transversais, como a literatura produzida por mulheres, a literatura produzida por teuto, afro e italodescendentes, a literatura produzida por judeus, a literatura do mundo LGBT e um longo etcétera, tornando esse volume um projeto de história por fatias, por grupos, por temas relevantes”, explica o entrevistado.
Fischer destaca, sem cair em um identitarismo separatista ou mesmo “nacionalista” do RS, algumas especificidades da literatura produzida no estado, que justificam o recorte metodológico da proposta. “O RS produziu e produz muita literatura, e de alta qualidade, ininterruptamente, desde meados do século 19. O que há de particular é a prática vivida, a existência de um circuito de produção e fruição de literatura que se ancora fortemente nos limites do estado, como talvez em nenhum outro exista. Não é que não se possa postular uma história da literatura em Pernambuco, ou no Piauí; pode-se sim, mas é bem provável que nesses dois casos a gente tenha dimensões regionais supraestaduais muito claras, coisa que aqui não existe”, descreve.
Olhar para o passado e pensar a história do RS pela literatura nos faz perceber um aspecto central do debate em torno da constituição de uma identidade gaúcha. “O apagamento da dimensão indígena e afrodescendente em grande parte dos relatos historiográficos, dedicados apenas a exaltar heroísmos de chefes militares e/ou estancieiros, como ocorre muito em torno da Revolução Farroupilha, mostra como devemos prestar atenção às várias outras vozes que a literatura dá a ver”, ressalta.
Luís Augusto Fischer (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Luís Augusto Fischer é doutor, mestre e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde leciona. Foi professor visitante na Universidade de Princeton, nos EUA, ligado ao Brazil LAB, e é editor da revista Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo. Em 2021, lançou Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio (Arquipélago, 2021), resultante de sua tese de professor titular e do estágio pós-doutoral realizado na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris VI.
Além disso, é autor de várias obras, entre elas, A ideologia modernista (Todavia), Dicionário de porto-alegrês (L&PM Editores), Literatura gaúcha: história, formação e atualidade (Leitura XXI) e Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta (Arquipélago Editorial). Fez a edição anotada de Contos gauchescos e Lendas do Sul (L&PM Editores) de Simões Lopes Neto e de Antônio Chimango (Editora Belas Letras) de Amaro Juvenal.
IHU – Pode nos dizer o que é o conjunto de seis livros lançados recentemente sobre a História da Literatura no Rio Grande do Sul? A que a coletânea se dedica?
Luís Augusto Fischer – É uma história, um livro único, em seis volumes, abrangendo toda a trajetória da literatura no estado. E faz isso carregando alguns traços diferenciais em relação a outros livros de história da literatura.
Volumes da coleção História da literatura do Rio Grande do Sul (Foto: Cristina Guerini | IHU)
IHU – Recorrendo a um a concepção de Walter Benjamin, autor que o senhor não cita na introdução geral dos seis volumes, mas que me parece importante para compreendermos esse trabalho de grande fôlego, como esta obra “escova a história da literatura no RS a contrapelo”? Que concepção de historicidade organiza essa empreitada?
Luís Augusto Fischer – Há uma série de traços que creio se dirigem a esse ideal benjaminiano, no campo específico da história da literatura. Vale lembrar que em seu começo, no final do século XVIII, e até há pouco tempo, a história da literatura era claramente uma forma de nacionalismo, um repositório do que se acreditava ser a evidência do valor e do sentido da identidade nacional. Essa tarefa era cumprida tendo como palco de excelência a escola, que se encarregava de consolidar a leitura e a presença dos autores, dos livros e mesmo dos valores nacionalistas estampados na história da literatura.
Ora, no nosso caso há duas diferenças essenciais: uma é que o Rio Grande do Sul não é nem será uma nação à parte, um país, nada dessa ordem, formalmente, mas mesmo assim a cultura letrada veio sendo construída em parte como se se tratasse de um país isolado, com identidade nítida e distanciada da cultura brasileira. Nossa posição é, diferentemente, afirmar que ao mesmo tempo (a) temos clara consciência dessa condição não-nacional, portanto não nos anima nada como um desejo de construir identidade cultural, e (b) mesmo assim reconhecemos condições objetivas da existência de um sistema literário relativamente autônomo, como uma formação histórica que se reconhece nos limites geográficos do estado.
A outra diferença envolve uma série de traços: ao contrário das histórias de literatura correntes, no Brasil e fora dele, a nossa (1) acolhe uma variedade imensa de gêneros textuais ativos mas não canônicos, como a canção, a literatura feita para crianças e adolescentes, a literatura de fantasia, a literatura policial, os quadrinhos, etc., assim como (2) aborda dimensões que em regra passam ao largo das histórias de literatura, como a tradução, a vida editorial, as instituições que agregam escritores (academias, associações), as Feiras de livro, os saraus e festas, os cursos de graduação em Letras, etc.; para além disso, (3) concebemos cinco volumes repartidos pela cronologia – e sem usar neles como régua os movimentos, escolas, estilos de época forjados na Europa e tantas vezes repetidos acriticamente no Brasil – e um sexto volume que se organiza por temas transversais, como a literatura produzida por mulheres, a literatura produzida por teuto, afro e italodescendentes, a literatura produzida por judeus, a literatura do mundo LGBT e um longo etcétera, tornando esse volume um projeto de história por fatias, por grupos, por temas relevantes.
Posso completar lembrando que também escovamos a contrapelo a visão localista ao propor recortes como o que lida com a literatura gauchesca platina e sul-riograndense e como outro que faz um breve recenseamento de autores gaúchos traduzidos para outros idiomas, o que denota interesse em historiar a literatura para além das fronteiras nacionais. Também a criação da identidade gauchesca ligada aos CTGs é assunto da nossa História.
IHU – Um trabalho de apanhado histórico, independentemente do recorte temporal e geográfico, é sempre uma tarefa para lá de complexa. Olhando em perspectiva o trabalho realizado, quais as potencialidades e contradições ou limites dessa obra que reúne dezenas de autores?
Luís Augusto Fischer – O conjunto se organizou a partir de um sumário, concebido pelo organizador e debatido com o conselho editorial, e a partir dele foram feitos os convites para os colaboradores. Não se pode esperar, naturalmente, que uma obra com uns 80 capítulos, mesmo que coordenada por um sumário previamente concebido, carregue diferenças de perspectiva, de avaliação crítica e de profundidade. De todo modo, o conjunto tem a função de ser um depoimento de geração sobre o tema, geração que é fruto maduro de mais de 40 anos da existência de pesquisa e pós-graduação na área, em todas as universidades gaúchas que contam com esses níveis de trabalho, assim como de algumas das mais importantes universidades brasileiras fora do RS e mesmo de alguma de outros países.
IHU – O recorte de tempo inicial dessa história é o século XVIII, período que coincide com a criação da Capitania de São Pedro do Rio Grande. Até que ponto é possível ou pertinente contar a história da literatura anterior a esse período?
Luís Augusto Fischer – O tempo anterior à chegada formal dos portugueses aqui lida basicamente com o mundo da tradição oral, que também está presente na nossa História. Trata-se de uma modalidade de literatura que alguns chamam de “oralitura”, que permanece vivo nas lendas, por exemplo, e que hoje tem sido reivindicado por indígenas do presente como parte de sua produção literária.
IHU – Uma pergunta que aparece na introdução aos seis volumes: cabe produzir uma história da literatura de um lugar, um estado brasileiro, nos dias de hoje, no século XXI?
Luís Augusto Fischer – Nossa resposta é sim, sem qualquer hesitação. Mas é preciso atentar para o que respondi na pergunta 2. Tem gente que pensa em história da literatura como linha auxiliar de construção de identidade nacional, o que não tem qualquer cabimento para a nossa História. Também não faz sentido para nós pensar numa história da literatura como instituição de um cânone, que define quem vale e quem não vale a pena. A nossa História é um exercício de análise de um objeto, que deve ser entendido como isso mesmo, um objeto escolhido e de certa forma constituído pelo nosso olhar; é uma história no sentido de um relato historiográfico que busca descrever um processo, no nosso caso o da literatura, a qual é um objeto possível para uma história, como qualquer outro objeto, seja ele sutil como a literatura, a música, o pensamento, ou objetivo como a indústria, a tecnologia, etc. Isso tudo sem mencionar o mais importante de tudo, a base do cabimento de escrever essa História que escrevemos: é que o Rio Grande do Sul produziu e produz muita literatura, e de alta qualidade, ininterruptamente, desde meados do século 19. Pode conferir: em outros estados, especialmente fora do eixo Rio – SP, não existe essa abundância que aqui existiu e existe. Só esse motivo elementar já chega para justificar a atenção que damos ao fenômeno.
IHU – O que significa falar em literatura hoje?
Luís Augusto Fischer – Também essa questão está abordada na apresentação do projeto, no volume I: “literatura” não é mais o que costumava ser até os anos 1980, quando não havia entrado em cena a internet, nem havia os novos suportes como o mundo digital, nem se havia enunciado com clareza a produção literária de pessoas negras, ou periféricas, e nem se havia construído a compreensão de que a tradução era parte ativa da formação de um sistema literário. Tudo isso agora tem de estar no horizonte de quem quiser se aventurar nesse campo.
IHU – Considerando que não há nada de essencial na “Comarca do Pampa”, como descreve Ángel Rama, o que há de particular que sustente uma história da literatura no RS?
Luís Augusto Fischer – O que há de particular é a prática vivida, a existência de um circuito de produção e fruição de literatura que se ancora fortemente nos limites do estado, como talvez em nenhum outro exista. Não é que não se possa postular uma história da literatura em Pernambuco, ou no Piauí; pode-se sim, mas é bem provável que nesses dois casos a gente tenha dimensões regionais supraestaduais muito claras, coisa que aqui não existe. Se formos comparar com um estado que seja ou tenha sido centro do país, especialmente Rio e São Paulo, a coisa muda de figura para outro lado – a literatura desses lugares é um pouco a literatura do Brasil todo, mediada por pessoas que vão para lá ou publicam lá. Nada disso ocorre no RS, em regra.
De outro lado, no RS há uma história objetivamente compartilhada, ao menos em parte, com o Uruguai e a Argentina, uma vez que o RS foi e é uma fronteira viva (por uns dois séculos a única fronteira viva do império português com o espanhol, e depois do Brasil com os países hispânicos), fronteira que oscilou com o tempo, e essas três unidades, os dois países e uma província de um terceiro país, compartilham um modo de vida – é inegável que somos uma região homogeneamente fria (e dividindo entre si um bioma, o Pampa, que só aqui existe, na América do Sul), e o RS é notoriamente mais frio que o restante do nosso país, por um lado, e por outro há a história econômica ligada ao gado e ao charque, igualmente compartilhada, com desdobramentos também objetivos como a existência do tipo social do gaúcho original, mestiço hábil no trato com o gado e o cavalo, etc. Essas similaridades não são inventadas: são reais e impuseram ao longo do tempo uma série de traços culturais (no sentido amplo dessa palavra) presentes em toda essa região supranacional.
IHU – Pode nos falar de alguns nomes importantes da literatura gaúcha, como Apolinário Porto Alegre, Alcides Maya, João Pinto da Silva, Augusto Meyer? Quem foram esses personagens e que outros merecem destaque?
Luís Augusto Fischer – Cada um deles merece muito ser objeto de atenção, e é o que fazemos nos vários volumes da História. Há mesmo um capítulo que aproxima esses pensadores (e também criadores, como poetas e contistas) mostrando como entre eles há uma construção lenta e forte de interpretações acerca do modo de ser do RS. Eles vivem em três gerações sucessivas, formando uma tradição entre si, cada um herdando dos anteriores uma série de debates, que cada um trata de levar adiante criticando e submetendo essa herança ao crivo dos novos tempos.
IHU – Levando em conta o quadro conceitual de outro livro do senhor, Duas formações, uma história (2021), a literatura produzida aqui responde a qual dessas formações ou a nenhuma delas?
Luís Augusto Fischer – Pois é, questão longa e complexa. O RS pertence mais ao mundo do “sertão” do que ao mundo do “litoral”, desculpada a generalização que vai nesses nomes. Ao longo do tempo, esse “sertão” se mostrou como um mundo patriarcal, feito à base da palavra empenhada e não à base do contrato explícito, em que o cavalo é um elemento essencial e a população é marcada fortemente pela presença indígena, particularmente na figura de mestiços, como o gaúcho original. Por outro lado, a experiência social do RS tem também semelhanças com o mundo do “litoral”, da plantation, por exemplo em Pelotas e em Porto Alegre, cidades em que houve intensa escravidão urbana, tal como nas principais cidades litorâneas brasileiras, como Salvador e Rio de Janeiro, guardadas as proporções. O RS tem ainda outra experiência forte e muito diferente dessas duas formações, que é a da pequena propriedade colonial imigrante, que igualmente tem força entre nós, inclusive no sentido da produção cultural, literária em particular. Nesse livro que tu mencionas, em tentei de fato foi pensar no conjunto do Brasil, não no caso particular do RS, que tem essas peculiaridades que mencionei.
IHU – Este ano completam-se 190 anos do início da Guerra dos Farrapos. Qual a importância de conhecermos a nossa história literária para trazer contornos, talvez menos claramente demarcados, mais plurais, diversos e menos românticos sobre o que é a identidade gaúcha?
Luís Augusto Fischer – A importância está em não comprar como verdadeiro qualquer discurso, politico ou historiográfico, só por ser muito veiculado. O apagamento da dimensão indígena e afrodescendente em grande parte dos relatos historiográficos, dedicados apenas a exaltar heroísmos de chefes militares e/ou estancieiros, como ocorre muito em torno da Revolução Farroupilha, mostra como devemos prestar atenção às várias outras vozes que a literatura dá a ver.