“Sem justiça social não haverá justiça ecológica”. Entrevista especial com Alberto Acosta

“Não podemos continuar na lógica da economia verde ou da economia azul, do capitalismo verde, porque essa prática brutal de mercantilismo ambiental está aumentando a destruição da própria natureza”, argumenta o economista equatoriano

Foto: rohit byju/Unsplash

Por: Edição: Patricia Fachin | 27 Agosto 2025

A garantia da vida digna a todos os seres, incluindo os não humanos, é uma das motivações que impulsiona teóricos de diferentes áreas do saber na elaboração de teorias que favoreçam outros modos de vida. No fundo, trata-se de um desejo de superar as ideias modernas de progresso e desenvolvimento econômico permanente que, segundo os teóricos, estão por trás das injustiças socioambientais, da destruição do planeta e da perpetuação das desigualdades sociais.

Uma dessas teorias, defendida pelo economista equatoriano Alberto Acosta, é a dos Direitos da Natureza, que são, segundo ele, “uma espécie de ferramenta para ver o mundo de uma forma diferente e transformá-lo”. Os Direitos da Natureza, explica, “são uma bandeira de luta de muitas comunidades em todo o planeta que estão empenhadas em defender a própria vida e propor alternativas”. A defesa dessa bandeira, pontua, implica uma transformação jurídica, política, econômica e cultural.

Acosta foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador, a primeira do mundo a incorporar os Direitos da Natureza numa constituição nacional. Apesar de reconhecer os avanços na área em mais de 40 países que estão reconhecendo a natureza como sujeito de direitos, o reconhecimento desses direitos em muitos lugares, afirma o entrevistado, “foi simplesmente um pretexto, como aconteceu no Equador, para expulsar a mineração ilegal e permitir a entrada da mineração legal. Este é um fato que também deve ficar muito claro”.

Defensor dos Direitos da Natureza como alternativa ao desenvolvimento econômico, Acosta defende a necessidade de rompermos com o mercantilismo ambiental, com a economia verde e azul e com a armadilha do desenvolvimento sustentável. Em suma, com a defesa de uma justiça ecológica que não leva em conta a justiça social. “Sem justiça social não haverá justiça ecológica. Se apenas protegermos a natureza e esquecermos os seres humanos, estaremos fazendo um exercício de jardinagem. Não é isso que estamos propondo. Portanto, não podemos continuar na armadilha do desenvolvimento sustentável”, adverte.

As principais propostas dos Direitos da Natureza e as críticas ao atual modelo econômico foram apresentadas por Alberto Acosta no Ciclo de estudos: Direitos da Natureza e a proteção do não humano na crise epocal, em maio deste ano. A seguir, reproduzimos a videoconferência no formato de entrevista.

O Ciclo de estudos: Direitos da Natureza e a proteção do não humano na crise epocal é uma promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A próxima videoconferência do evento será ministrada pela Profa. Dra. Fernanda Bragato, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na próxima terça-feira, 26-08-2025, às 10h. O evento é gratuito, aberto ao público e será transmitido na página eletrônica do IHU, no YouTube e nas redes sociais. Mais informações estão disponíveis aqui

Alberto Acosta (Foto: Brasil de Fato)

Alberto Acosta é graduado em Economia pela Universidade de Colônia, na Alemanha, onde também se especializou em Comércio Exterior, Marketing, Geografia Econômica e Economia Energética. Participou da fundação do Instituto de Estudios Ecologistas del Tercer Mundo e do partido Alianza País, que ascendeu à Presidência da República em janeiro de 2007 com Rafael Correa. Foi ministro de Energia e Minas por cinco meses, mas saiu do governo por causa de divergências com Rafael Correa. Posteriormente, ajudou a fundar o movimento Montecristi Vive, que reivindica o bem viver, os Direitos da Natureza e a plurinacionalidade expressos na Constituição equatoriana. Em 2013, foi candidato à Presidência da República pela Unidad Plurinacional de las Izquierdas. É professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais, no Equador.

É autor de, entre outros, La naturaleza sí tiene derechos: aunque algunos no lo crean (2024), com Enrique Viale, Pluriverso: dicionário do pós-desenvolvimento (2021), Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista (2018), com Ulrich Brand, O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos (2016), La maldición de la abundancia (2009) e Breve história econômica do Equador (2006).

Confira a entrevista.

IHU – Por que dar ênfase aos Direitos da Natureza?

Alberto Acosta – É importante buscar outras formas de aproximação a temas como desenvolvimento, pós-extrativismo e pós-crescimento, que abrem a porta para discussões que coloquem em questão a modernidade e permitam, paulatinamente, avançar até grandes mudanças civilizatórias.

O Direito é um terreno sempre em disputa. Normalmente, o âmbito do Direito é controlado por grandes grupos de poder. No entanto, precisamos ter clareza de que na história da humanidade o direito a ter direitos é sempre exigido e exige um esforço político. Não é que os avanços no campo do Direito e da jurisprudência apareçam simplesmente por uma reflexão de uma assembleia constituinte, ou de um congresso nacional ou por alguma iniciativa cidadã. Ao contrário, isso faz parte de processos políticos, os quais demonstram que nunca foi fácil mudar as normas e instituições que fecham a porta a novos direitos.

Pensem, por exemplo, no quão difícil foi permitir que os escravos e as populações indígenas tivessem direitos, ou que as mulheres ou crianças conquistassem direitos. Isso demonstra o quão complexo é pensar que a natureza tenha direitos e seja sujeito de direitos. É uma opção que a natureza seja sujeito de direitos. Mas é isso que vai permitir uma transformação estrutural da sociedade e, por que não dizer, da civilização.

Os Direitos da Natureza nos permitem ver o mundo de outros ângulos: já não é o ser humano quem domina a natureza; ao contrário, o ser humano faz parte da natureza porque somos natureza. Se aceitamos essa realidade, já não estamos falando figurativamente da natureza para controlá-la, para explorá-la e destruí-la, mas dizendo que precisamos encontrar caminhos de relacionamento harmônico com a natureza.

IHU – Qual é a consequência disso?

Alberto Acosta – Isso nos leva a muitas aproximações que abrem a porta ao que poderíamos chamar não só de pós-desenvolvimento, mas de pluriverso, ou seja, um mundo onde cabem muitos mundos, como dizem os zapatistas, no México. Um mundo que garanta a vida digna a seres humanos e seres não humanos. Esses outros mundos põem em dúvida, criticam e pretendem superar as ideias da modernidade, como o progresso e o desenvolvimento, e nos levam a refletir sobre temas importantes, como a necessidade de nos liberarmos da religião do crescimento econômico permanente.

Então, dito isso, não podemos permanecer no labirinto da jurisprudência, mas devemos usar os Direitos da Natureza como ferramenta para ver o mundo de outra maneira e transformá-lo.

IHU – Como a natureza tem sido pensada desde a modernidade?

Alberto Acosta – A lógica da modernidade vê a natureza como um objeto de exploração, um objeto a ser dominado. Ou seja, a natureza como mercadoria. Chegamos a essa visão a partir da própria história da humanidade, onde esteve presente o medo da natureza porque a erupção de um vulcão, uma tempestade ou qualquer manifestação natural é imprevisível. Isso foi dando, pouco a pouco, lugar a uma luta ancestral pela sobrevivência e pelo esforço desesperado de controlar e dominar a natureza. Essa tem sido a história da humanidade até não muito pouco tempo atrás.

Há duzentos anos, quando houve um terremoto em Caracas, o libertador Simón Bolívar disse que a natureza se opõe e, portanto, é preciso vencê-la. Ou seja, sempre houve o afã de dominar a natureza. Paulatinamente, os seres humanos, com sua forma de organização social antropocêntrica, foram pensando a separação entre civilização, cultura, natureza e primitivismo. Essa foi uma das ações ideológicas mais brutais da humanidade e da modernidade.

Nesse contexto, necessitamos partir da necessidade de compreender o que significou esse trânsito da história da humanidade, iniciado com a dominação empenhada em manipular a natureza, algo que se acelera e se globaliza na civilização capitalista. Isso foi compreendido perfeitamente pelo filósofo francês, Bruno Latour, que disse: “Ao querer desviar a exploração do homem pelo homem sobre uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente ambas: a exploração do homem e a exploração da natureza”.

Ou seja, as multidões que deveriam ser salvas da morte caem novamente na miséria às centenas de milhões. As naturezas que deveriam ser completamente dominadas também nos dominam globalmente, ameaçando-nos a todos. Aqui temos uma interessantíssima aproximação: vemos que a exploração do ser humano e a exploração da natureza estão emolduradas numa civilização do capital – e essa é a lógica que precisamos superar.

Eu retomo aqui o pensamento de um mexicano, Gustavo Esteban. Ele dizia que o mundo cai aos pedaços ao nosso redor porque estão caindo as ideias que formaram a mentalidade moderna dos últimos duzentos anos. Estamos confrontados com um cenário muito complicado e difícil. É evidente que temos gravíssimos problemas ambientais e sociais, e o preocupante e inevitável disso tudo é que, neste contexto, as elites dominantes, sejam políticas, sejam econômicas, acadêmicas ou jornalísticas, não querem escutar a mensagem da natureza e tampouco as reivindicações das crescentes massas de empobrecidos e marginalizados.

Isso acontece porque os privilegiados defendem sua posição de privilégio, de dominação, defendem os benefícios para si mesmos, suas famílias e as futuras gerações de suas famílias. Reproduzem-se sempre as mesmas lógicas econômicas: tem que investir mais, produzir mais, exportar mais porque isso vai garantir o crescimento econômico e resolver os problemas. Entretanto, mais do mesmo será mais do pior.

Aqui podemos chegar a um par de conclusões evidentes, que têm a ver com a deterioração ambiental e a destruição da natureza, geradoras de uma série de colapsos ecológicos. Por outro lado, existem crescentes problemas sociais tanto em termos de pobreza crescente como de iniquidades que aumentam aceleradamente.

IHU – Como compreende o colapso climático? O senhor se associa aos teóricos que relacionam as mudanças climáticas ao Antropoceno ou aos que relacionam estas alterações do clima ao Capitaloceno?

Alberto Acosta – O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) nos dá uma informação contundente: nenhuma região, nenhuma população estará livre dos danos provocados pelo colapso climático. O IPCC também informa que o capitalismo é insustentável. É uma mensagem de absoluta clareza que se pode comprovar com uma série de dados concretos: a subida do nível do mar, as zonas de calor, tempestades que estão associadas às atividades humanas que causam aquecimento global.

Aí se fala do Antropoceno. Na realidade, não podemos ficar na visão do Antropoceno porque o que estamos vivendo é a época do Capitaloceno, ou seja, o capitalismo é o responsável por todos esses impactos. Não falaria nem sequer de aquecimento global ou mudança climática, porque é insuficiente. Se revisarmos a história geológica da terra, perceberemos que houve épocas de aquecimento e de esfriamento. A partir disso, seria possível que esses períodos são próprios do complexo sistema do planeta Terra. Mas, na prática, nas últimas décadas, estamos vendo uma aceleração massiva de todos esses processos, que nos levam a uma conclusão preocupante: o ser humano está mudando a relação que tinha de equilíbrio com a natureza. Portanto, já não é simplesmente o Antropoceno, mas o Capitaloceno o responsável por essa realidade.

Temos visto que as colheitas pioraram por causa das inundações, dos incêndios e da destruição da biodiversidade. As ondas de calor estão matando milhões de pessoas e os incêndios florestais estão cada vez mais acelerados e em latitudes inimagináveis. A concentração de CO2 na atmosfera, que tem sido gerado pela queima de combustíveis fósseis particularmente, não exclusivamente, tem aumentado a temperatura da superfície mais rapidamente nos últimos 50 anos do que em qualquer outro período nos últimos dois milênios.

A superfície do Ártico entre 2011 e 2020 alcançou a menor média desde 1850. Ou seja, a superfície gelada está se reduzindo. Na Antártica começam a aparecer lagos azuis, que são uma demonstração dos processos de perda da massa de água congelada. Os glaciares terrestres também estão retrocedendo numa velocidade que não havia sido registrada nos últimos dois mil anos. Os glaciares no Equador, que são essas grandes massas de neve, que conheci quando criança, começam a deixar espaços negros; as rochas começam a aparecer por causa do processo de descongelamento. O nível do mar foi elevado mais velozmente desde 1900 do que em qualquer outro século nos últimos três milênios. As emissões de gases de efeito estufa são responsáveis por grande parte do aquecimento global. Sabemos que, continuando no ritmo atual, em pouco tempo superaremos a meta de 2ºC de aquecimento. Falava-se que a meta não deveria passar de 1,5ºC, mas isso está sendo superado.

Colapso ecológico e social

O colapso ecológico está nos mandando a conta. Recordemos que mais de 70% dos vírus que vêm atingindo a humanidade há 30 anos são de origem zoonótica. Um exemplo é o coronavírus, que certamente foi transmitido de animais a seres humanos devido à destruição do habitat, seja pelo desmatamento, seja pela perda de biodiversidade. Ou ainda transmitiu-se aos seres humanos porque os seres humanos impulsionaram mudanças nos ciclos vitais de algum vírus.

Estamos diante de uma situação na qual somos obrigados a encontrar respostas estruturais urgentes para mudar o curso de um processo que, cada vez mais, se perfila como suicídio coletivo. E aqui temos outra cara da mesma moeda: o colapso social. Os crescentes problemas sociais andam de mãos dadas com os problemas ambientais. A pobreza não desapareceu. Em alguns lugares, aumentou. As desigualdades entre ricos e pobres seguem crescendo de forma acelerada. A fome e as enfermidades seguem sendo uma realidade.

Somos cerca de 8 bilhões de habitantes no planeta e são produzidos alimentos para 10 ou 11 bilhões de pessoas. No entanto, milhões dentre nós passam. Isso tem a ver não só com a má distribuição econômica ou com o mal manejo dos recursos disponíveis, mas também com a perda da biodiversidade. Aumentam nesse contexto as violências, as iniquidades, o consumismo, o individualismo e as guerras em toda parte.

Um dos genocídios que assistimos todos os dias é o palestino e tudo isso num ambiente com claras mostras de debilidade das frágeis instituições políticas. As democracias estão sendo hackeadas, atropeladas. Poderíamos falar dos efeitos políticos derivados do segundo mandato do presidente Trump: os graves impactos que têm não só nos EUA e no mundo, mas também nas mensagens negacionistas que se expandem por todas as partes. Nesse cenário, não nos surpreende que aumentem a violência e a corrupção, e que a democracia seja vítima de tanta cobiça.

IHU – Não se caminha na superação do capitalismo?

Alberto Acosta – O capitalismo vai mudando e segue víbora, como as serpentes quando trocam de pele. Não creio que estamos avançando para a superação do capitalismo, como diz Yanis Varoufakis, economista grego, para quem o capitalismo está sendo superado por uma tecnocrática. Ele fala de uma Idade Média tecnológica. Mas eu diria que estamos numa Idade Média do capitalismo tecnológico, com resultados que estão à vista. Essa situação tem se deteriorado há sete décadas.

Em 1949, o presidente americano Harry Truman levantou a necessidade de superar o subdesenvolvimento e a humanidade se organizou em uma espécie de grande cruzada para tratar de superar essa situação. Em meio desta corrida desesperada por desenvolvimento – que é, em última análise, fútil –, estamos vendo como os problemas aceleraram o desenvolvimento. Começamos, então, a nos sintonizar com a chave do pós-desenvolvimento, que se transformou em um fantasma inalcançável, cuja sombra segue esmagando uma grande parte da humanidade. Em suma, estamos confrontados, de maneira brutal e global, com a possibilidade do fim da existência. Agora, nos toca superar essa irresponsabilidade organizada, como dizia Ulrich Beck, o sistema do capital que vive de sufocar a vida de seres humanos e seres não humanos.

Neste cenário, o grande desafio é como nos reencontramos com a natureza. Como estabelecemos que é possível que os seres humanos assumam, na prática, algo que somos de fato, natureza? Não somos só parte da natureza; somos natureza. Ao nos reencontrarmos com essa reagrupação de ser natureza e conviver com ela, unidos à natureza, à civilização, vamos ter a possibilidade de que a vida política assuma uma relevância renovada. O desafio transformador é reconhecer a natureza como sujeito de direitos, reconhecer os Direitos da Natureza.

IHU – Isso demanda que tipo de mudança de mentalidade e de compreensão da realidade?

Alberto Acosta – Passar de um enfoque antropocêntrico para um enfoque biocêntrico, sociobiocêntrico, que reconheça a indivisibilidade e a interdependência de toda forma de vida e, ao reconhecer os direitos da natureza, mantermos a força própria dos direitos humanos. Dessa maneira, o que precisamos fazer e ampliar são os direitos à vida. Como disse Enrique Leff, pensador mexicano, necessitamos colocar em prática os direitos existenciais, os direitos à vida.

A tarefa não é fácil, apesar de que há muitos direitos da natureza em curso. A tarefa não é fácil porque é mais fácil escapar de nossa própria sombra, de entendermos que a natureza tem que ter direitos. Reconheçamos que no mundo atual é tolerado reconhecer direitos quase humanos a pessoas jurídicas, empresas, companhias e fundações, mas é muito difícil aceitar que a vida não humana tenha direitos.

Lutas por direitos

Essa complicação não é nova. Ela se repetiu ao longo da história. Os processos de emancipação dos seres humanos têm sido sempre parte de lutas políticas complicadíssimas. Cada ampliação de direitos, em seu momento histórico, foi impensável. Pensemos o que foi a luta para que os povos indígenas tivessem direitos. Quando chegaram os europeus à América, sobretudo os espanhóis, num primeiro momento se dizia que os indígenas não tinham alma. Passou um tempo para que se aceitasse que os indígenas tinham alma e eram seres humanos. Mas seres humanos inferiores porque, na prática, tudo tinha a ver com o racismo – uma das forças mais poderosas para controlar a humanidade e estruturar mecanismos de dominação de uns sobre os outros.

Quanto tempo passou e quantas lutas foram necessárias para a emancipação dos escravos? Recordemos que em países como o Equador os escravos não foram libertados. A liberdade deles foi comprada para que os donos não perdessem suas intervenções. Esta é uma realidade muito complicada que segue presente em nossos países: o racismo como uma forma de dominação que não foi superada.

Quantas lutas foram feitas pelos grupos feministas, pelas mulheres, para conseguirem seus direitos, que agora vemos como justos, indispensáveis e necessários? Direitos que necessitam ser defendidos permanentemente, mas foram considerados absurdos. Em suma, o direito a ter direitos tem se conseguido sempre com lutas políticas que servem para mudar as visões e os costumes, para mudar as leis e as estruturas que negam a ampliação de direitos.

IHU – Como passar da compreensão de uma natureza objeto à compreensão de uma natureza sujeito?

Alberto Acosta – A natureza como sujeito de direitos vive em muitos povos indígenas e afro-americanos desde tempos imemoriáveis. Assim, quando os indígenas falam da Pachamama, da Mãe Terra, não estão usando uma metáfora; é uma realidade cotidiana.

A colonização não terminou quando expulsaram as potências europeias da América. Com governos neoliberais ou com governos progressistas, seguem avançando os esquemas de extrativismo, de exploração dos recursos naturais marginalizados e de desaparecimento dos povos originais. Nesse contexto, é preciso recuperar os saberes dos povos originários: seus saberes, suas experiências, suas práticas.

Além do aporte desses povos, a transição se nutre de outras lutas para proteger a natureza e aí chegamos a algo mais fundamental: para falar dos direitos da natureza temos várias entradas que provêm dos âmbitos científico, jurídico, teológico, literário e, sobretudo, de quem está defendendo seus territórios a partir de diversas comunidades no mundo inteiro. Aqui há uma primeira aproximação com o tema de fundo dos Direitos da Natureza.

IHU – Pode dar alguns exemplos de aproximações entre os Direitos da Natureza e outras áreas do conhecimento?

Alberto Acosta – Recomendo a leitura do livro “La naturaliza sí tiene derechos aunque algunos no lo crean”, de Enrique Viale, advogado e jurista argentino, lutador e defensor das comunidades e da natureza.

Tive a honra de ser o presidente da Assembleia Constituinte do Equador em 2007-2008, que incorporou os direitos da natureza. É a primeira Constituição no mundo que tem os direitos da natureza incorporados no texto constitucional. De onde surgiram esses direitos? Sobretudo do mundo indígena, da Pachamama, da Mãe Terra, e da luta de defesa dos territórios por parte de múltiplas comunidades em todo o país. Mas há outras aproximações, que vêm de juristas, advogados, que estão trabalhando o tema há muitos anos.

Na Suíça, juristas já falavam dos direitos da natureza nos anos 80, assim como cientistas, que falavam que a natureza é um sujeito que merece respeito. Há aproximações na teologia. Pensem na linha que há entre Francisco de Assis, que falava da irmã lua, até a encíclica Laudato si’ e os aportes teológicos de Leonardo Boff. Poderíamos buscar reflexões na filosofia, como os textos de Spinoza, que falava da “mãe natura”, da “natura naturanda” e não da “natura naturada”.

A “natura naturanda” é a natureza que se faz a si mesma, comparando-a assim com a força de Deus. Por isso, ele foi expulso da sinagoga. Nesse cenário de pensamento de Spinoza, incluo Hans Carl von Carlovic, que em 1713 escreve um livro fantástico: Silvicultura econômica. Ele é o primeiro a cunhar a ideia de sustentabilidade, que, na prática vem sendo realizada cotidianamente pelos povos originários em todo o planeta. Uma aproximação pela literatura é o livro O barão nas árvores, de Italo Calvino, publicado em 1957.

IHU – Na prática, há avanços no reconhecimento dos Direitos da Natureza?

Alberto Acosta – Este empenho está frutificando de maneira acelerada. No momento, quase 40 países em todos os continentes caminham para o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, graças ao impulso que demos no Equador em 2008 ao constitucionalizar a natureza como sujeito de direitos.

Eu resgato o exemplo da Colômbia, país vizinho do Equador, onde se incorporou o rio Atrato como sujeito de direitos. Mais de 20 rios colombianos são sujeitos de direitos. No Brasil tem casos em que começam a aparecer ecossistemas como sujeitos de direitos.

Exemplo interessante é a lei nacional no Panamá, que estabelece que a natureza é sujeito de direitos. Há países onde os exemplos são notáveis, como na Nova Zelândia, onde o rio Whanganui é motivo de reflexão e análise. Na Índia, o rio Ganges também é sujeito de direito. Na Espanha, o Mar Menor, uma grande laguna de sal, que faz fronteira com o Mediterrâneo, é sujeito de direitos. Na Alemanha estão sendo coletadas assinaturas para mudar o artigo 101 da Constituição e introduzir os direitos da natureza na Baviera.

Nesse contexto também há múltiplas iniciativas na mudança de quatro artigos da Constituição da República Federal da Alemanha. Há ainda duas sentenças do ano passado, envolvendo o escândalo do diesel no estado de Erfurt, a leste do país, que, seguindo a jurisprudência europeia e alemã, estabelece que a natureza é um sujeito de direitos.

Portanto, estamos vendo como esses direitos estão avançando gradualmente. Lamentamos o caso do Chile, onde a nova Constituição não foi aprovada em 4 de setembro de 2022. No entanto, convido aqueles que desejam trabalhar nessas questões a lerem aquela Constituição, que não foi aprovada, mas cujo texto é inspirador em muitos aspectos.

Precisamos de um mundo reencantado em torno da vida, um mundo que comece pelo estabelecimento de diálogos e reencontros entre seres humanos, indivíduos e comunidades com a natureza, entendendo que somos um todo. Não somos uma parte isolada, muito menos a espécie dominante.

IHU – A aplicação dos Direitos da Natureza tem sido efetiva?

Alberto Acosta – Os tempos que virão serão muito difíceis e complexos. O fato de ter direitos não garante seu cumprimento. Vemos o caso da Colômbia, por exemplo, onde existem mais de 20 rios como sujeitos de direitos, mas, na prática, a tentativa de cristalizar os direitos é complicada porque muitas vezes acontece que os direitos são concedidos, mas não são efetivados.

No caso do rio Atrato, as comunidades afro-colombianas são encarregadas de protegê-lo, entretanto, o Estado não apoia esses grupos na proteção do rio diante do avanço da mineração ilegal de ouro. Reconhecer os direitos da natureza em muitos lugares foi simplesmente um pretexto, como aconteceu no Equador, para expulsar a mineração ilegal e permitir a entrada da mineração legal. Este é um fato que também deve ficar muito claro.

A situação é difícil e complexa, mas isso realmente nos leva a concluir que, apesar das dificuldades e complicações, precisamos assumir que a necessidade de mudança está presente. É hora de reatar a vida a partir das mais diversas aplicações possíveis, como Bruno Latour já dizia. Ou seja, compreender novamente que somos natureza, que não estamos aqui para dominá-la, mas para viver em harmonia com ela.

IHU – Quais são as reflexões fundamentais sobre este ponto?

Alberto Acosta – Incorporar a natureza como sujeito de direitos em uma Constituição, em uma lei, é fundamental. Ser sujeito de direitos implica essencialmente uma obrigação de caminhar em direção a visões e práticas biocêntricas. E aqui é necessário pensar em mudanças em todos os aspectos da vida. Defender a natureza, a Mãe Terra, a Pachamama, é defender a nós próprios, porque somos natureza; sem a natureza, não podemos existir. Aqui entra um ponto fundamental para mim, a chave para tudo o que temos discutido: nós concedemos direitos à natureza em uma Constituição, em uma lei, em uma portaria. Mas o que realmente nos dá o direito de existir é a natureza, a Mãe Terra, a Pachamama. E aqui reside a origem de todos os direitos.

Sob esta perspectiva, devemos começar a questionar a ideia de desenvolvimento que se baseia na visão de progresso vista acima de tudo como crescimento econômico permanente e acumulação de bens materiais infinitos. Temos que considerar o pluriverso, um mundo onde cabem muitos mundos, reconhecendo que existe uma enorme multiplicidade de alternativas ao desenvolvimento. O bem viver não é uma alternativa de desenvolvimento, mas uma alternativa ao desenvolvimento.

Precisamos reconhecer que é essencial mudar o ritmo de acumulação e destruição em que nós estamos envolvidos. No ritmo em que estamos crescendo, que estamos consumindo, que estamos destruindo, não há planeta que resista. O número de consumo de cimento na China, a maior economia do planeta e o segundo país mais populoso do mundo depois da Índia, em três anos – 2011, 2012 e 2013 – foi de 6,615 milhões de toneladas de cimento. Os EUA consumiram muito menos. Em três anos, a China consumiu 1,5 vez mais cimento do que os EUA ao longo do século XX. Não há planeta suficiente para tanta ganância, para tanta destruição. Se todos os cidadãos do mundo consumissem no mesmo nível que um habitante médio dos EUA, precisaríamos de cerca de seis planetas. Se tomarmos a União Europeia como referência, que não é tão destruidora, precisaríamos de cerca de quatro planetas. Pensemos ainda nos níveis brutais de destruição causados pela civilização do plástico. No Pacífico existe a maior ilha de plástico de todo o planeta. A parte dura dessa ilha tem uma área maior que a República do Peru.

Fenômenos climáticos extremos

Falo da destruição ambiental que está atingindo os limites e as respostas da Mãe Terra, que reage e protesta com inundações, tufões, secas e impactos que nos atingem simultaneamente. Ano passado, na mesma época, ocorreu uma seca na Amazônia, causada, entre outras coisas, por enormes incêndios florestais que visam à expansão de plantações de soja. No mesmo período, vimos uma seca crescente nos Andes por vários meses, causando enormes problemas para essas sociedades e, simultaneamente, inundações brutais na Espanha, em Valência e chuvas de granizo e gelo nos desertos da Arábia Saudita. Essa conjunção de problemas é o que nos permite falar de um colapso ecológico que sempre tem um impacto social.

Concentração de riqueza

Para ilustrar o que estou dizendo, vou mencionar o caso da Alemanha. A Alemanha é uma das economias mais vigorosas da Europa, com uma das sociedades mais equitativas, mas os níveis de concentração de riqueza no país estão crescendo. Em 1998, os 10% mais ricos da população detinham 48% da riqueza nacional, e 50% detinham 3% da riqueza nacional.

Os números mais recentes mostram algo assustador: 10% detêm 53% da riqueza nacional e 50% detêm 1% da riqueza nacional. Esses níveis de desigualdade são muito mais agudos em muitos outros países europeus e nos EUA. Na própria Alemanha, 21% das crianças menores de cinco anos vivem permanentemente em situação de pobreza e outros 9% entram e saem constantemente dessa situação.

Naturalmente, poderíamos discutir aqui o que significa ser pobre na Alemanha e o que significa ser pobre no Brasil, mas esses são números concretos que nos levam a questionar a ideia de desenvolvimento. O desenvolvimento é um fantasma, é uma miragem que já causou muitos danos. É necessário começar a repensar o mundo. Neste caso específico, há muitas outras opções, recuperando a natureza como sujeito de direitos.

IHU – Por exemplo?

Alberto Acosta – Pensemos em três elementos: o que significa em termos jurídicos, políticos e econômicos os direitos da natureza? Em termos jurídicos, os Direitos da Natureza provocam uma transformação profunda ou exigem uma profunda transformação. Os direitos da natureza devem ser assumidos como direitos ecológicos. Ao contrário dos direitos ambientais, que surgem dos direitos humanos, os direitos da natureza têm uma origem e uma lógica de funcionamento diferentes. Os direitos ecológicos protegem os ciclos de vida e os processos evolutivos da Mãe Terra, não apenas espécies ameaçadas de extinção ou áreas naturais. Os Direitos da Natureza, por sua vez, se concentram em toda a comunidade, nos ecossistemas e não apenas nos indivíduos.

Justiça ecológica

A justiça ecológica aspira à persistência, à sobrevivência das espécies e dos ecossistemas como grupos, como redes de vida. Os direitos existenciais são uma justiça que exige, ao mesmo tempo, posições éticas para erradicar qualquer forma de tortura de animais, sejam rinhas de galos ou touradas. Não podemos continuar a nos distrair com base na tortura dos seres vivos. Este é um tema que me convoca à luta e à reflexão. Quando criança, assistia a touradas e rinhas de galo e, de alguma forma, gostava, mas isso era uma aberração.

A justiça ecológica busca a restauração dos ecossistemas afetados e, na prática, justiça jurídica significa que, a partir da validade dos direitos da natureza, não pode mais haver qualquer direito para destruir e explorar a Mãe Terra. Em vez disso, deve haver direitos para o uso ecologicamente sustentável. As leis humanas e as ações dos humanos enquadradas nessas leis devem estar de acordo com as leis da natureza. Sua validade, então, responde às condições materiais que permitem sua cristalização e não a um mero reconhecimento formal no sistema jurídico.

Direitos da Natureza como transformação política

Os Direitos da Natureza não ficam apenas no campo da jurisprudência. Eles devem ser trabalhados nesse campo, mas são uma espécie de ferramenta para ver o mundo de uma forma diferente e transformá-lo. Os Direitos da Natureza são uma bandeira de luta de muitas comunidades em todo o planeta que estão empenhadas em defender a própria vida e propor alternativas. Isso implica não apenas uma transformação jurídica, mas também uma transformação política, e isso nos obriga a sintonizar com o que Vandana Shiva chama de democracia da Terra. Ou seja, a democracia da Terra que reside na relação harmoniosa com a natureza, com comunidades baseadas na justiça social, na democracia descentralizada e na sustentabilidade econômica. Assim, passamos da cidadania individual – que é fundamental para os direitos individuais –, para uma cidadania coletiva, com direitos coletivos, direitos comunitários, e estamos caminhando em direção a uma cidadania ecológica.

Convido vocês a lerem o Artigo 71 da Constituição equatoriana, que é muito claro a esse respeito: os povos indígenas representam os direitos da natureza, como uma pessoa, um pai ou uma mãe que representa os direitos de seu filho ou filha recém-nascidos, ou como alguém que representa os direitos de uma pessoa com deficiência no hospital ou que está morrendo. Quem representa os direitos da vida, então, são os filhos e filhas da própria vida.

Em síntese, os direitos da natureza não se opõem aos direitos humanos. Os direitos ecológicos não se opõem aos direitos ambientais. Ambos se complementam e se aprimoram mutuamente. Uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza é urgente, mas eles devem ser estabelecidos em relação aos direitos da humanidade. Transformações jurídica, política e econômica são urgentes.

Portanto, se a natureza é objeto de direitos, os objetivos de qualquer sociedade, começando pela sua gestão econômica, devem se subordinar às leis dos sistemas naturais, sem esquecer o respeito pela dignidade da vida humana e não humana. Uma nova economia é o que precisamos para uma nova civilização. É preciso derrubarmos aquele arcabouço teórico que corrompeu completamente o raciocínio econômico do mundo biofísico, como diz o economista espanhol José Manuel Naredo.

Esse processo representou a ruptura epistemológica que deslocou a vida do sistema econômico, com seu carrossel de produção e crescimento, do mero campo do valor, para garantir a acumulação de capital. Natureza de um lado, civilização de outro. Isso deu origem a essa visão, figurativamente falando, de que o ser humano está fora da natureza para dominá-la. Não esqueçamos que o ser humano não é a coroa da criação. Deixemos de lado essas visões religiosas respeitáveis. O ser humano é, atualmente, a coroa da destruição.

Se destruímos a natureza, estamos destruindo os fundamentos da própria economia. Isso deve nos levar a evitar a eliminação da biodiversidade e a substituição pela uniformidade, a qual gera, por exemplo, as monoculturas, os transgênicos e a megamineração. Escrever essa mudança histórica é um dos maiores desafios da humanidade se não quisermos colocar em risco a existência na Terra. Em vez de considerar a natureza como um estoque infinito de matérias-primas e um receptor permanente de resíduos, outra economia deve estabelecer como metas mínimas a sustentabilidade e a autossuficiência dos processos econômicos naturais, entendidos como composta de múltiplas interações e lógicas complexas que se retroalimentam de forma cíclica.

IHU – Trata-se de imaginar uma nova economia?

Alberto Acosta – Precisamos acabar com a religião do crescimento econômico permanente. O fetiche do crescimento econômico infinito em um mundo finito precisa desaparecer, precisa morrer. Precisamos dar lugar a processos que combinam o decrescimento econômico nos países capitalistas centrais, enquanto na periferia precisamos garantir esquemas pós-extrativistas, pós-crescimento. Mas atenção: em nenhum momento isso pode assumir os níveis de opulência de alguns segmentos da população no Norte Global.

No Sul Global, a justiça ecológica anda necessariamente de mãos dadas com a justiça social. Sem justiça social não haverá justiça ecológica. Se apenas protegermos a natureza e esquecermos os seres humanos, estamos fazendo um exercício de jardinagem. Não é isso que estamos propondo. Portanto, não podemos continuar na armadilha do desenvolvimento sustentável ou insustentável. Não podemos continuar na lógica da economia verde ou da economia azul, do capitalismo verde, porque essa prática brutal de mercantilismo ambiental está aumentando a destruição da própria natureza.

Mercados de carbono

Os mercados de carbono, essas plantações florestais, são verdadeiras catacumbas florestais que destruíram a diversidade, capturando enormes quantidades de água, que são espaços onde podem ocorrer incêndios, como aconteceu no Brasil, na Argentina e no Chile. Incêndios desse porte são mecanismos para continuar a acumular capital. Portanto, a tarefa, se pensarmos na perspectiva dos Direitos da Natureza, não é tornar verdes o capital e a economia, mas superar, isto sim, o capital e esta economia da morte. Não podemos cair numa fé cega na ciência e na tecnologia. Temos de reformulá-las para garantir o respeito pelos direitos existenciais, pelos direitos humanos, pelos direitos da natureza.

Em síntese, a ciência e a tecnologia, junto com uma nova economia, devem estar subordinadas ao respeito pela harmonia entre os humanos e a natureza. Compreender estes pontos exige uma mudança copernicana em todas as facetas da vida: nas esferas jurídica, econômica, política, social e cultural. Isto é fundamental.

Os Direitos da Natureza permitem-nos, em última análise, interpretar de forma diferente a dura realidade que vivemos, ao mesmo tempo que nos dá ferramentas para mudá-la desde suas raízes. É uma espécie de grande cristal ou prisma para ver o mundo de outra perspectiva. É para isso que servem os Direitos da Natureza. Convido vocês a continuarem refletindo, analisando e discutindo. Mudar o planeta é a grande tarefa daqueles que, acima de tudo, são avós e têm netos e netas.

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