08 Agosto 2025
"A memória dos 80 anos das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki e a atual situação geopolítica mundial parecem sinalizar que os aprendizados do passado não conseguem ser assimilados pelas novas gerações e pelos que têm criado novas e mais perversas formas de conflito, ameaçando o futuro da vida no planeta", escreve Geraldo Luiz De Mori, professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, enviada diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
“A paz esteja convosco” (Jo 20,19)
No calendário litúrgico da Igreja católica, celebra-se no dia 6 de agosto a festa da Transfiguração do Senhor, episódio relatado pelos evangelhos de Marcos (9,2-8), Mateus (17,1-9) e Lucas (9,28-36). Esta festa já era celebrada pelas Igrejas do Oriente cristão desde o século V e ela foi introduzida no Ocidente a partir do século IX. Nos evangelhos sinópticos, a transfiguração de Jesus acontece no momento em que os conflitos com as autoridades apontavam para o desfecho da cruz. Ela é o anúncio da glória da ressurreição ou o convite a ver na paixão o caminho que leva à glorificação.
Numa perspectiva totalmente oposta ao que é celebrado no dia 6 de agosto nas Igrejas cristãs, há exatos 80 anos, ou seja, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, as forças “aliadas”, capitaneadas por soldados norte-americanos, lançaram respectivamente sobre as cidades de Hiroshima e Nagazaki bombas atômicas que mataram 166 mil pessoas na primeira e 90 mil na segunda. Tratava-se de outro tipo de “transfiguração”, que não anunciava a glória de uma humanidade mais reconciliada, mas a ameaça de destruição da própria civilização, que, durante a Guerra Fria, determinou grande parte da geopolítica mundial. Mesmo recentemente, quando o presidente dos USA lançou bombas sobre usinas de enriquecimento de urânio no Irã, sua intenção era impedir que mais um ator da geopolítica do Oriente Médio dominasse o poder atômico. No início de agosto, ao enviar submarinos atômicos para a costa russa, ele quis mostrar que o poder de suas ogivas asseguraria uma suposta paz nos conflitos criados pela potência russa.
A memória dos 80 anos das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagazaki e a atual situação geopolítica mundial parecem sinalizar que os aprendizados do passado não conseguem ser assimilados pelas novas gerações e pelos que têm criado novas e mais perversas formas de conflito, ameaçando o futuro da vida no planeta. A sedução pela guerra e a ilusão de que pela força se consegue a paz continuam presentes num mundo que parece ensandecido, aproximando-se cada vez mais de uma guerra de todos contra todos e já não mais “aos pedaços”, como dizia o Papa Francisco na Encíclica Fratelli tutti. E a guerra tem vários tipos de armas.
Além das novas tecnologias da indústria armamentista, os “senhores da guerra” patrocinam a desinformação e ainda alimentam a ideologia da extrema direita mundial. Para isso, recorrem a justificativas religiosas, muitas delas de matriz cristã, numa suposta guerra de civilizações. Como se isso não bastasse, outras armas são utilizadas, como a da guerra comercial, taxando produtos de países que supostamente ameaçariam os interesses que impedem que a América seja grande de novo. As iniciativas que sinalizavam para um mundo multipolar são objeto de suspeita e de punição. E contam para isso com o apoio de grupos nos próprios países que comungam da nova ideologia, como tem sido o caso do Brasil, que vem sendo chantageado pelo mandatário norte-americano, numa clara intervenção contra decisões jurídicas nacionais e contra interesses de setores econômicos brasileiros.
Aproximar a festa da transfiguração da memória dos 80 anos da entrada da humanidade na era da possibilidade real de uma destruição que não conduz a nenhuma glória, mas à completa desfiguração, apesar de parecer inusitado, lembra a oposição entre guerra e paz, que existe desde que existe a humanidade. O paradoxal e a novidade da fé cristã, segundo o evangelho de João, é que à desfiguração da cruz, o Ressuscitado responde com o dom da paz e uma paz que é “perdão dos pecados” (Jo 20,19). O Papa Leão XIV, consciente disso, propôs sua primeira bênção Urbi et Orbi com as palavras de Jesus ressuscitado: “A paz esteja convosco!”. É difícil promover a paz num tempo em que se acirram os conflitos, tanto em nível mundial, como nos mais mediatizados dos últimos tempos, a saber, o da Ucrânia e o de Gaza, quanto em nível nacional, como os que opõem os apoiadores da “guerra” de Trump contra os interesses do país, com a patética ocupação nos últimos dias das duas casas do legislativo nacional, em nome de uma anistia que justifica a impunidade, e os que denunciam esse tipo de atentado à soberania nacional. Como o mundo bíblico já tinha compreendido, a paz é fruto da justiça. Para se chegar a ela, é necessário um caminho de reconciliação, que, como em várias experiências de “justiça restaurativa”, implica o reconhecimento do mal feito, o pedido de perdão e, na medida do possível, a reparação dos danos causados às vítimas.
Nos processos em curso em nível mundial, protagonizados sobretudo pelo atual presidente dos Estados Unidos, e em nível nacional, protagonizados pelos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro, está em jogo não só o futuro da democracia, como tem sido muito bem evidenciado por vários analistas, mas também o futuro da convivência humana que dá base aos consensos mínimos da sociedade, figurados, entre outros, pela noção de direitos humanos. Quando se busca assegurar o domínio do mais forte sobre o mais fraco, em benefício próprio, como é o caso de vários discursos e projetos da ideologia da extrema direita internacional e nacional, o próprio conceito de humanidade é relativizado, colocando em xeque a noção de dignidade inalienável do ser humano.
A fé cristã não pode certamente compactuar com esse tipo de orientação presente na política em nível mundial e nacional. Muitas pessoas que se dizem cristãs afirmam que não gostam de política. No entanto, quando vão votar, deixam-se muitas vezes manipular pelos discursos anti-política que, na verdade, levam a política a tornar-se contrária ao bem comum. Para justificar seu “apolitismo” elas ainda dizem que religião não se mistura com política. Com efeito, a religião pretende, em geral, oferecer o sentido radical para a existência, que está além de todos os sentidos parciais dados pela vida pessoal, social, econômica e política. Estar além não significa, porém, prescindir. O próprio Jesus, em sua pregação e ação se considerava arauto do “reino de Deus”. Ora, a categoria reino de Deus é tirada da esfera política, ultrapassando-a, com certeza, pois o “reino” já está presente na pregação e na ação de Jesus, mas também é “advento”, ou seja, nenhuma realização humana o esgota. Mas isso não significa que as ações que o tornam próximo devam ser ignoradas. Pelo contrário. A Igreja sempre buscou ser “sinal” e servidora do reino, como mostra sua ação de defesa dos mais vulneráveis, através de tantas iniciativas samaritanas. Qualquer político ou proposta política que atentem contra a dignidade humana ou contra os direitos fundamentais de cada pessoa não pode seguramente ser identificado como “sinal” ou “servidor” do reino.
As agressões em curso, contra a soberania do país e contra os interesses nacionais, mais que suscitar adesão aos que se colocam do lado dos “donos da guerra”, devem suscitar gestos firmes que promovam a paz, mas não a qualquer preço, pois a paz verdadeira só pode brotar da justiça, sobretudo da justiça feita a quem foi e é lesado.