06 Agosto 2025
Cientistas veteranos alertam o El País sobre o desmantelamento do poder científico dos EUA e o risco à democracia: "A coisa mais próxima que vi foi o regime de Hitler."
A reportagem é de Nuño Domínguez, publicada por El País, 06-08-2025.
Nas últimas semanas, o El País contatou a maioria dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física, Química e Medicina dos Estados Unidos nos últimos 20 anos com um questionário sobre as políticas de Donald Trump para ciência, pesquisa e saúde. A grande maioria são pesquisadores experientes — alguns até aposentados — que não devem temer retaliações; mas apenas alguns deles concordaram em responder.
“O que mais me dói?”, escreve Roald Hoffmann, vencedor do Prêmio de Química de 1981. “Minha família veio para os Estados Unidos quando eu tinha 11 anos. Embora meus pais não tenham conseguido empregos compatíveis com suas qualificações, o país deu aos seus filhos (minha irmã e eu) a oportunidade de obter educação e conduzir pesquisas interessantes com colegas do mundo todo. Se as políticas de Trump se concretizarem, o que vivi será muito difícil para a geração dos meus netos alcançar”, lamenta.
Hoffmann nasceu na Polônia em 1937 e leva o sobrenome do padrasto. Seu pai, Hillel Safran, era um judeu polonês assassinado pelos nazistas em 1943 por organizar uma rebelião no campo de concentração onde estava preso. A maior parte de sua família também pereceu no Holocausto. Em 1949, após vários anos vivendo em campos de refugiados na Áustria e na Alemanha, Hoffmann, sua mãe e seu padrasto conseguiram emigrar para os Estados Unidos.
Este químico teórico ganhou o Prêmio Nobel por esclarecer como ocorrem as reações químicas enquanto já era pesquisador na Universidade Cornell, que, juntamente com Harvard e outras instituições de elite, enfrenta cortes multimilionários impostos por Trump. "Além do impacto na ciência", explica ele, "estamos assistindo a um ataque à democracia vindo de cima; uma defesa da intimidação, da incivilidade e da ilegalidade; e também a rejeição da imigração e das minorias, que sempre foram bem-vindas".
Joachim Frank diz que uma de suas primeiras lembranças é ver sua casa pegar fogo devido às bombas dos Aliados em Siegen, o epicentro da produção de aço na Alemanha nazista.
Frank foi para os Estados Unidos trabalhar na década de 1970. Em 2017, ganhou o Prêmio Nobel de Química pelo desenvolvimento da microscopia crioeletrônica, fundamental para o estudo da função de moléculas essenciais à vida. Aos 85 anos, agora aposentado, ele escreve: "Nunca vi uma situação como essa em toda a minha vida, mas a coisa mais próxima disso é a ditadura de [Adolf] Hitler." "Este regime forçou muitos cientistas a emigrar devido às suas políticas raciais, o que significou o fim do domínio alemão na ciência global", alerta. "Tendo nascido na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, é horrível ver que minha vida foi marcada por dois regimes fascistas", lamenta.
Rich Roberts, nascido há 81 anos no Reino Unido, passou grande parte de sua carreira científica nos Estados Unidos. Ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1993, quando já era diretor da New England Biolabs, com sede em Massachusetts. O bioquímico alerta para o impacto econômico dos ataques de Trump. "Minha empresa fabrica reagentes para biologia molecular, e as políticas atuais já estão nos fazendo vender menos. As vendas provavelmente continuarão caindo, mas esperamos que a empresa não quebre, porque também exportamos muito e há outras empresas que dependem dos nossos produtos." O bioquímico acredita que não só a ciência está em perigo, mas também a saúde, o setor de biotecnologia "e qualquer outra profissão que dependa do conhecimento, e as carreiras dos jovens que trabalham nessas áreas".
Roberts confessa: “É terrível ver a ciência que defendi e amei por 60 anos ameaçada por políticos que nada sabem sobre ela. Eles nem sequer entendem os benefícios que a pesquisa básica traz para a sociedade. Empresas que contribuem para a economia, em geral, fazem pouca pesquisa; dependem da pesquisa básica e, se ela parar, muitas dessas empresas também pararão.”
Hoffman, Frank e Roberts não são casos isolados. Trinta e cinco por cento de todos os Prêmios Nobel acadêmicos nos Estados Unidos desde 1901 foram conquistados por imigrantes, segundo a Universidade George Mason.
Um estudo recente estimou que, mesmo que os cortes propostos por Trump continuem sendo uma versão reduzida, o Produto Interno Bruto dos EUA a longo prazo cairá 3,8%, algo semelhante à recessão de 2009. Grandes agências de pesquisa e promoção da saúde enfrentam cortes sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial e milhares de demissões . A comunidade científica do país reagiu com vários manifestos assinados por centenas de pesquisadores , incluindo os envolvidos neste artigo, mas tem sido raro ver indivíduos proeminentes assumirem uma posição aberta devido às prováveis represálias que o governo Trump pode impor a eles, suas equipes ou seus centros de pesquisa.
Barry Barish, vencedor do Prêmio Nobel de Física em 2017 pela descoberta das ondas gravitacionais, fala de um rompimento completo entre a Casa Branca e a universidade. “O experimento Ligo [pelo qual ganhou o Prêmio Nobel], um dos projetos mais bem-sucedidos da National Science Foundation, está enfrentando um grande corte de financiamento”, explica. “Nos Estados Unidos, desde a Segunda Guerra Mundial, há um acordo entre universidades e o Governo Federal que fornece fundos essenciais para cobrir parte do custo da pesquisa, e agora passará de cobrir 60% para 15%. Esse modelo, que permitiu ao nosso país ser líder mundial e atrair as melhores mentes do mundo, está prestes a desaparecer”, opina. O físico americano acredita que o país está diante do fim de um ciclo. “Vivemos uma era de ouro da ciência, tanto em descobertas fundamentais quanto em aplicações práticas. Isso continuará, mas não com os Estados Unidos no comando. A China, e até certo ponto a Europa, serão os novos líderes em ciência e tecnologia”, prevê Barish.
As políticas de Trump para eliminar programas de igualdade impedirão que americanos de baixa renda recebam uma educação decente ou mesmo se envolvam em pesquisas científicas de alto nível , alertam. As políticas de imigração do novo governo também estão colocando em risco a carreira de milhares de jovens de outros países que vêm para os Estados Unidos em busca de uma carreira. "Além dos efeitos de curto prazo dos cortes", escreve Harold Varmus, Prêmio Nobel de Medicina em 1989, "há os terríveis efeitos de longo prazo que farão com que os Estados Unidos deixem de ser o local de referência para pesquisas". "Levará décadas para se recuperar", acrescenta.
A maioria dos entrevistados tem alguma esperança no que pode acontecer no Congresso. O orçamento de Trump para 2026 está sendo debatido atualmente, e eles afirmam que é provável que alguns dos enormes cortes propostos sejam diluídos. "Se este orçamento for aprovado, será uma catástrofe", afirma Carl Wieman, professor emérito da Universidade Stanford e ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2001. "No passado, inclusive durante a primeira presidência de Trump, grandes cortes na ciência foram propostos, mas o Congresso não os aprovou. O mesmo pode acontecer agora", acrescenta. O debate orçamentário termina em 30 de setembro.