02 Agosto 2025
Na reflexão a seguir Geraldo De Mori retoma sua analise apresentada na live: “Censo 2022 e a questão religiosa: primeiras impressões críticas”, dia 23/06/2025, com a participação da professora Brenda Carranza (Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNICAMP; coordenadora do Laboratório de Antropologia da Religião – UNICAMP), do professor Robson Sávio Reis Souza (Ciências da Religião da PUC Minas, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE e membro da Equipe de Análise de Conjuntura Eclesial da CNBB) e do professor Geraldo Luiz De Mori (Teólogo, professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, membro da Comissão Teológica do CELAM e da Equipe de Análise de Conjuntura Eclesial da CNBB)[1] e com a mediação da professora Cleusa Maria Andreatta (Instituto Humanitas Unisinos).
No dia 12 de junho publiquei um pequeno artigo no Palavra & Presença, da FAJE, que foi republicado no IHU no dia 16 de junho com o seguinte título “O que os números do Censo de 2022 dizem sobre a pertença religiosa no Brasil?”[2] Minha reflexão retoma alguns elementos daquele artigo, aprofundando-as, além de propor outros elementos.
Começo com um breve comentário sobre o significado dos “números” numa reflexão teológica, comparado com o de outras ciências. A estatística, ciência que busca oferecer dados numéricos sobre distintos aspectos da realidade é, certamente, muito importante, não só porque indica a recorrência de um determinado fenômeno, traduzido em dados numéricos, mas também porque aponta tendências. Desde o íntimo da matéria e de um ser vivo, como no caso dos átomos e das moléculas, até os objetos maiores do espaço, como no caso das galáxias, ou a quantidade de um organismo vivo ou a de seguidores numa numa rede social, tudo ou quase tudo o que tem a pretensão de exatidão é traduzido ou pretensamente traduzível em números. No caso aqui discutido, o da pertença religiosa, que é algo da ordem da convicção, portando, do mais íntimo das consciências, os números dizem respeito a ser membro de uma determinada denominação religiosa ou a não ser membro de nenhuma.
Eles podem se prestar a vários tipos de interpretação e serem utilizados com diferentes finalidades, como, por exemplo, no caso da Alemanha, para saber qual porcentagem de imposto religioso ser transferida para uma igreja ou outra, ou, no caso do Brasil, para determinar se uma região de forte presença evangélica vai votar num candidato ou noutro nas eleições de 2026. Os resultados do Censo podem iluminar a pastoral das igrejas, como em 2010, em que estudos de Cesar Romero Jacob e Dora Rodrigues Hees, da PUC Rio, e Philippe Waniwz, da Université de Bordeaux, foram utilizados em muitas dioceses para esse fim.
As duas primeiras formas de utilização dos números acima evocadas podem ser aproximadas da racionalidade instrumental, pois, no primeiro caso, servem para fins econômicos, e, no segundo, para fins políticos. A terceira forma, embora mais voltada para pensar a pastoral, pode provocar certa exasperação nos agentes pastorais, que, no artigo que publiquei em Palavra & Presença, identifiquei como “alívio e desânimo”. De fato, os números exasperam no sentido de desanimar, quando, como no caso da redução de 8,4% de queda do número de católicos, apontam para uma progressiva “descatolicização” de um país até então tido como o “mais católico” do mundo em termos numéricos. Eles podem também provocar alívio, se lidos em relação à queda de 9% da década anterior, podendo sinalizar que a queda está se estabilizando. Isso no campo católico. No mundo evangélico, a redução do crescimento pode também provocar certa exasperação, pois a presumida “virada” do número dos evangélicos sobre o dos católicos não se dará tão cedo quanto previsto pelas análises do Censo 2010.
A racionalidade que preside a esses tipos de leitura não é, em minha opinião, propriamente teológica, embora possa servir para se pensar as mudanças no campo religioso nacional e para se levar em conta em processos de planejamento pastoral. O que está em jogo, e os números confirmam, é algo mais profundo, que tem a ver com o que na Conferência do CELAM, em Aparecida, se chamou de “mudança de época”, expressão utilizada várias vezes pelo Papa Francisco e que foi retomada no processo sinodal. Muitas chaves de leitura têm sido propostas para se pensar essa mudança de época. Duas delas, nascidas no contexto da teologia europeia, mas com releituras originais na América Latina e nos demais continentes do Sul Global, privilegiam as categorias da “significância” e da “relevância”. Trata-se, no primeiro caso, de mostrar que a fé cristã não só é racional e razoável, mas que ela é fonte de significado para a razão liberada da tutela de todo discurso heterônomo, herdado da tradição, tanto no âmbito moral quanto no religioso. O paradigma da secularização, elaborado nesse contexto, primeiro para explicar a separação entre Igreja e Estado, e, em seguida para mostrar qual o lugar da religião nas sociedades marcadas pela razão moderna, está na origem de muitos projetos teológicos preocupados em mostrar a significância da fé para a subjetividade moderna. No segundo caso, tratava-se de mostrar a relevância social e política da convicção religiosa, que não se reduzia à esfera do indivíduo, mas tinha repercussão nas diversas instâncias em que se desdobravam suas relações na sociedade.
Muitas leituras das mudanças religiosas no contexto brasileiro recorrem ao paradigma da secularização para se pensar o que está em curso no campo religioso nacional. Em meu texto de Palavra & Presença sustento que, embora instigante, esse paradigma é insuficiente para se pensar a religião numa sociedade ainda religiosa e, segundo o Censo de 2022, 83,6% identificada com alguma das confissões cristãs. Não se pode certamente fechar os olhos para o crescente número dos que se dizem sem religião, que saltou de 7,9% a 9,3%, ou seja, um crescimento de 1,4% em relação à década anterior, mas ser sem religião no Brasil não significa necessariamente não crer, mas, em boa parte dos casos, em “crer sem pertencer”. Essa tendência, do ponto de vista das ciências sociais e também da teologia, merece uma atenção particular, mas articulada com as mudanças que afetam o conjunto das religiões na sociedade brasileira.
Para ilustrar o que acabo de afirmar, ou seja, que o paradigma da secularização é insuficiente para se pensar os números do Censo de 2022 e o conjunto das mudanças religiosas em curso no país, gostaria de trazer três análises de conjuntura eclesial realizadas pelo INAPAZ entre 2022-2024: a que refletiu sobre os pentecostalismos no Brasil, que busca pensar o fenômeno pentecostal como um dos efeitos da fragmentação cultural e religiosa em curso no país; a que tratou da polarização no seio do catolicismo, que mostra os impactos do pluralismo e o retorno de tendências tradicionalistas fundadas em leituras fundamentalistas do catolicismo; a que abordou a questão das novas comunidades, que adotou o paradigma da secularização para propor o modelo das novas comunidades como um dos caminhos pastorais para o atual contexto religioso do Brasil. Não sou contra o uso do paradigma da secularização, mas acredito que ele é insuficiente.
Nesse sentido, o caminho proposto pelo sociólogo argentino Gustavo Morello, em sua obra Uma modernidade encantada. Religião e modernidade na América Latina [3], parece iluminador. Segundo o autor, para se pensar a religião em nosso continente é preciso reconhecer que o imaginário de grande parte de sua população ainda é “encantado”, ou seja, religioso. Toda leitura que ignora isso é insuficiente para compreender a religião nesse contexto. Não por acaso, foi na Argentina que surgiu a teologia do povo, que, sem ignorar o caminho que a razão moderna trilhava na cultura latino-americana, buscou também dialogar com a religiosidade popular. Não por acaso também, em todo seu pontificado, o Papa Francisco valorizou a religiosidade popular.
Ao afirmar a insuficiência do paradigma da secularização para se pensar a religião e os resultados do Censo de 2022, não quero dizer que é preciso negar o que ele ajudou a pensar, tanto em termos de significância da fé para a subjetividade, quanto em termos de relevância do crer para a sociedade. No caso da América Latina, não haveria uma teologia própria do continente sem o que permitiu esse paradigma. Essa insuficiência foi percebida por muitos teólogos e teólogas que investiram na pesquisa e na reflexão sobre a religiosidade popular, que, como acima observei, fecundou várias correntes teológicas no continente e o pontificado de Francisco.
O que, talvez, os resultados do Censo de 2022 demandam da reflexão teológica é, por um lado, uma compreensão ainda mais profunda do significado da “modernidade encantada” em nosso país, e, por outro lado, como trabalhar evangelicamente essa “modernidade encantada”. Para entender o que quero dizer, é bom lembrar não só a relação que a modernidade manteve com a religião, mas o que a teologia nesse contexto pensou da religião. O exemplo mais emblemático, que surgiu na Europa no contexto protestante, é o de Karl Barth, que opôs religião e fé. Segundo o célebre teólogo suíço, a religião é da ordem das instituições humanas e tendem à idolatria. É o que afirmam os profetas da bíblia hebraica, que denunciam a religião que constrói os próprios ídolos e é baseada em sacrifícios, mas que esquecem o que mais importa, o cuidado da viúva, do órfão e do estrangeiro. Muitos projetos teológicos nascidos dessa crítica de Barth trabalharam a insuficiência da religião e propuseram uma leitura da fé cristã de caráter existencial e ético, mostrando, por um lado, o significado de um Deus que não pede sacrifícios, mas um coração fiel à aliança, e, por outro, a relevância desta fé que se traduz em serviço.
Muitas foram as traduções desse caminho na teologia feita em diálogo com a razão moderna. E o resultado foi importante, pois deu sentido às buscas de uma razão inquieta, que procura sentido, como também transformou a fé em caminho de serviço às grandes causas da humanidade sofredora. O que se vive na religião e na fé cristã não se reduz, porém, ao significado que elas possam ter para as subjetividades nem à relevância que elas possam ter para a sociedade. Paul Ricoeur, em vários de seus textos sobre os símbolos, mostra que eles possuem um excesso de sentido que não podem nunca ser reduzidos ao que é explicado pela razão[4]. Isso é verdade para a simbólica do mal, que perde sua riqueza ao ser tematizada na doutrina do pecado original. Isso é verdade para a simbólica erótica, que nunca pode ser tematizada inteiramente pelo logos. Podemos ampliar isso ainda para o campo religioso, que o mesmo filósofo francês pensou como que “polarizado” entre duas lógicas: a da “manifestação” e a da “proclamação”[5].
A primeira lógica, segundo o que aqui estamos propondo, é a que subjaz ao âmbito religioso, que, segundo Rudolf Otto, nasce do “temor e do tremor” diante do que é experimentado como maravilhoso. Para ilustrar isso, a imagem da sarça ardente de Ex 3,2 é emblemática. Uma sarça que arde sem se consumir, o extraordinário que irrompe no ordinário. Trata-se da consciência de encontrar-se diante do “sagrado” ou, como diz Gustavo Morello, diante do mundo “encantado”, no qual Deus, os anjos, a Virgem Maria, o Espírito Santo, os santos, as almas intervêm e estabelecem contatos com as pessoas, através de mensagens, curas, exorcismos, experiências de unção. Isso que está na origem das religiões e que se encontra também no início da religião bíblica, é marcado pela visão e pode facilmente enganar ou desviar. Por isso, a bíblia hebraica manifesta desconfiança com toda religião da manifestação, como aparece no mesmo relato de Ex 3, que, assim que Moisés se aproxima, é interrompido pela voz que fala. E a voz é uma mensagem de salvação, um chamado e um envio. Essa lógica, segundo Ricoeur, é a da proclamação. Ela preside também o início da fé cristã, que nasce de uma proclamação, a do querigma, que anuncia o mistério da morte e ressurreição de Jesus.
Trazendo essa reflexão para o que aqui nos interessa, que é a leitura teológica do resultado do Censo sobre religião no Brasil, é importante, como aparece no título do livro de Gustavo Morello, Modernidade encantada, pensar esse resultado à luz desses dois termos que a modernidade europeia dissociou. Com efeito, a razão moderna, e o paradigma que buscou interpretar nela o destino da religião, o da secularização, quis expulsar a religião do horizonte de sentido das subjetividades. Quando este horizonte emergia, para entendê-lo, a teologia ofereceu as chaves de leitura da “significância” e da “relevância”. Porém, um outro tipo de modernidade emergiu fora do contexto europeu, ao mesmo tempo em relação e em ruptura com ele.
Em relação, porque as sociedades latino-americanas se organizaram a partir dos princípios da razão moderna. Em ruptura, porque esses princípios não expulsaram o “encantado”, o maravilhoso das consciências das subjetividades que emergiam nessas sociedades. Mais que opor essa religião da manifestação à religião da proclamação, como parece ter sido feito por vários projetos teológicos e pastorais em nosso contexto, acredito que é necessário fazê-los trabalhar juntos. E isso não é tão simples como possa parecer, pois, como bem viu todo o profetismo bíblico, também denunciado por Jesus, a religião da manifestação é muitas vezes fonte de desvios, lugar de manipulação do nome de Deus, utilizado para fins espúrios, como infelizmente temos visto não só no Brasil, mas também em outros contextos. Mas querer que todo o excesso de sentido da religião se reduza à religião “pura e imaculada, aceita por Deus Pai, que é cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”, ou seja, à religião da proclamação, como parece ser proposto por Tg 1,27, parece ignorar que o campo do que a fé cristã entende como sentido escatológico e definitivo, só é apreensível pela razão simbólica.
Dito isso, penso que tanto o mundo pentecostal e neopentecostal, quanto boa parte das práticas do catolicismo brasileiro desses 25 anos do século XXI são marcados pela religião da manifestação, ou seja, pelos recursos simbólicos do maravilhoso ou do encantado e por um recuo da religião da proclamação. Como alguns sociólogos da religião mostraram, o retorno do “sagrado” em contextos secularizados ou seus novos desdobramentos, nos contextos religiosos, tem conhecido um forte processo de fragmentação e desregulação. Em parte, isso é determinado pelo lugar que ocupa hoje nas sociedades secularizadas e religiosas o indivíduo e na desconstrução que nelas tem sido feita de toda “grande narrativa”. A tradição profética da teologia latino-americana manifesta grande desconfiança com todas as expressões da religião da manifestação. Ela desempenha, nesse sentido, um papel importante, pois, como os profetas bíblicos, ajuda a discernir, no excesso de religião presente nesses contextos, o que é compatível ou não com a revelação cristã. Falta, talvez, a esta tradição, deixar-se enriquecer mais com o que na bíblia foi o papel dos sábios, que, sem esquecer a radicalidade do apelo profético, se esforçam por valorizar o que de bom existe em toda manifestação humana.
Para o que se percebe das evoluções do catolicismo no Brasil, o que se nota é, por um lado, o apoio nem sempre discernido da hierarquia às muitas expressões da religião da manifestação, e, por outro, a suspeita dos discursos proféticos com relação a toda expressão da religião da manifestação. O que os sábios fizeram na bíblia, ou seja, estabelecer uma ponte entre a manifestação e a proclamação, é, talvez, o que é necessário buscar realizar no presente momento, para que, além da vertigem dos números, a Igreja e a teologia sejam serviço para o encontro com o Totalmente Outro, e serviço incansável a todos aqueles que veem sua dignidade ignorada, e muitas vezes por discursos de pessoas que supostamente estão ao serviço da igreja ou da teologia.
[1] Cf. Censo 2022 e a questão religiosa: primeiras impressões críticas.
[2] Cf. Geraldo Luiz De Mori. O que os números do Censo de 2022 dizem sobre a pertença religiosa no Brasil? Disponível: https://faculdadejesuita.edu.br/o-que-os-numeros-do-censo-de-2022-dizem-sobre-a-pertenca-religiosa-no-brasil/; https://ihu.unisinos.br/653366-o-que-os-numeros-do-censo-de-2022-dizem-sobre-a-pertenca-religiosa-no-brasil-artigo-de-geraldo-luiz-de-mori-sj
[3] Gustavo Morello. Una modernidad encantada. Religión vivida en América Latina. Córdoba: Editorial Universidad Católica de Córdoba, 2020.
[4] Cf. Paul Ricoeur. La symbolique du mal. Paris: Aubier, 1988; La symbolique du mal interprétée. In Paul Ricoeur. Le conflit des interprétations. Essais d’herméneutique. Paris: Seuil, 1969, p. 265-369.
[5] Cf. Paul Ricoeur. Manifestation et proclamation. In Paul Ricoeur. La religion pour penser. Écrits et conférences 5. Paris: Seuil, 2021, p.191-226.