Em 2024, ofensiva do Congresso Nacional contra direitos indígenas refletiu-se em violência contra povos e comunidades em seus territórios, aponta relatório anual do Cimi.
A reportagem é publicada por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 28-07-2025.
O ano de 2024 foi o primeiro a iniciar sob a vigência da Lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada nos últimos dias de dezembro de 2023. A expectativa dos povos indígenas e seus aliados era de que, dada a flagrante inconstitucionalidade e o evidente conflito com a recente decisão de repercussão geral sobre o tema, a chamada “Lei do Marco Temporal” fosse rapidamente derrubada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Não foi, contudo, o que aconteceu. A lei permaneceu em vigor durante todo o ano de 2024, fragilizando os direitos territoriais dos povos originários, gerando insegurança e fomentando conflitos e ataques contra comunidades indígenas em todas as regiões do país. Este foi o cenário registrado pelo relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2024, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A vigência da Lei 14.701 foi apontada pelo Poder Executivo, responsável pela demarcação das terras indígenas, como um impedimento para avançar com processos administrativos de reconhecimento e regularização de territórios indígenas. Apesar dos questionamentos imediatos à Lei junto à Suprema Corte, o relator dos pedidos optou por mantê-la em vigor e estabelecer uma “Câmara de Conciliação”, reabrindo discussões que já haviam sido superadas pelo próprio STF.
Como consequência, as demarcações avançaram em ritmo lento e terras indígenas, inclusive já regularizadas, registraram invasões e pressão de grileiros, fazendeiros, caçadores, madeireiros e garimpeiros – entre outros invasores, que se sentiram incentivados pelo contexto de desconfiguração de direitos territoriais. Os números de assassinatos e de suicídios de indígenas mantiveram-se elevados, assim como os casos de desassistência e omissão a povos e comunidades.
Este panorama foi agravado pela crise climática, com alagamentos e inundações sem precedentes no Rio Grande do Sul e secas com queimadas de grandes proporções nos biomas Pantanal, Cerrado e Amazônia. Os povos indígenas estiveram entre os mais afetados por estes eventos trágicos. No sul do país, as enchentes agravaram a situação de comunidades que já vivem em situação de vulnerabilidade e desterritorialização, em acampamentos e beiras de rodovias. Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a falta de efetivo e estrutura do Estado para a fiscalização e proteção de terras indígenas dificultou o combate às chamas que consumiram diversos territórios.
Se o ano de 2023 encerrou com ataques contra o povo Avá-Guarani no oeste do Paraná durante o Natal e a promulgação da lei que fragilizou os direitos constitucionais indígenas, o primeiro mês de 2024 foi marcado por um brutal evento, que deu a tônica do que seria o ano para os povos indígenas em luta pela demarcação de suas terras.
No dia 21 de janeiro, um grande grupo de fazendeiros armados atacou uma retomada dos povos Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó em Potiraguá, no sul da Bahia, com tiros e agressões. A liderança Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, foi assassinada com um disparo de arma de fogo, num ataque que deixou diversos indígenas feridos e outros três baleados.
O povo Avá-Guarani do Paraná seguiu sendo vítima constante de ataques em 2024, assim como os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul, especialmente entre julho e setembro.
Comunidades indígenas buscaram garantir, por meio de ocupações e retomadas, um mínimo espaço vital de subsistência em seus próprios territórios, em meio ao cenário de desesperança em relação ao avanço das demarcações. Em retaliação, sofreram violentos ataques em série de fazendeiros e jagunços, com a conivência – e, em muitos casos, a participação direta – de forças policiais.
As “Violências contra o Patrimônio” dos povos indígenas, reunidas no primeiro capítulo do relatório, totalizaram 1.241 casos em 2024. Esta seção é organizada em três categorias: omissão e morosidade na regularização de terras, que reúne a lista com todas as terras indígenas com alguma pendência ou sem providências para sua regularização, que totalizou 857 casos; conflitos relativos a direitos territoriais, que teve 154 registros em 114 Terras Indígenas em 19 estados; e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, com 230 casos, que atingiram 159 Terras Indígenas em 21 estados do Brasil.
Os casos registrados neste capítulo têm relação direta com a fragilização dos direitos indígenas ocasionada pela Lei 14.701, reconhecida pela própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Incitado a comentar o efeito da lei por meio de questionamento feito via Lei de Acesso à Informação (LAI), o órgão admite que a medida afeta potencialmente “todas as Terras Indígenas que se encontram em fase administrativa anterior à regularização”.
A tese do marco temporal, contida na Lei, restringe a demarcação apenas às terras que estivessem sob a posse dos indígenas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Sua implicação fundamental é que povos expulsos de seus territórios poderão ser impossibilitados de reaver suas terras.
Além de aplicar esta tese, a Lei prevê ainda mudanças significativas nos procedimentos administrativos de reconhecimento territorial. Algumas dessas mudanças são de difícil cumprimento e já incorrem, conforme a própria Funai, em um “um aumento da morosidade dos processos de demarcação de terras indígenas”. Outras “pecam por falta de clareza e por contradição” e chegam a ser “inexequíveis”.
Os impactos listados incluem as 857 terras indígenas com pendências administrativas para serem regularizadas, dentre as quais estão 555 que não contam com nenhuma providência para o início de sua demarcação. Os avanços tímidos registrados em 2024 – cinco homologações pelo presidente da República, 11 portarias declaratórias assinadas pelo ministro da Justiça e 16 Grupos Técnicos (GTs) para Identificação e Delimitação de Terras Indígenas criados pela Funai – foram insuficientes para contrapor este cenário. Embora o governo atual apresente marcas melhores que o seu predecessor, até aqui o terceiro mandato do presidente Lula não alcança as mesmas marcas de seus dois primeiros mandatos, de 2003 a 2010.
Um reflexo disso é o fato de que aproximadamente dois terços (78) das terras e territórios indígenas que registraram conflitos relativos a direitos territoriais em 2024 não estão regularizados. Essas áreas concentraram 101 dos 154 casos registrados pelo Cimi nesta categoria em 2024.
No caso das invasões, danos ao patrimônio e exploração ilegal de recursos naturais, a maioria dos casos (61%) atingiu TIs regularizadas (85), reservadas (10) ou dominiais (2). Pelo menos 48 TIs registraram casos ligados a incêndios ou queimadas em 2024, e muitas delas tiveram enormes extensões consumidas pelo fogo.
As operações de desintrusão realizadas em algumas terras indígenas marcaram um importante contraste do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o de seu antecessor, Jair Bolsonaro, cuja atitude permissiva e discurso antidemarcação acabaram por incentivar as invasões a terras indígenas. Os relatos e os dados, entretanto, indicam que mesmo as áreas que receberam atenção prioritária do governo federal não ficaram totalmente livres dos invasores – caso das Terras Indígenas (TIs) Apyterewa, no Pará, Karipuna, em Rondônia, e Yanomami, em Amazonas e Roraima, entre outras.
Em Mato Grosso, a TI Sararé, do povo Nambikwara, registrou um aumento sem precedentes na devastação causada pelo garimpo ilegal. A presença de garimpeiros vinha sendo denunciada pelos indígenas desde 2017, mas explodiu em 2024. No Maranhão, a pressão do agronegócio, de madeireiros e de grileiros foi registrada num grande número de territórios, muitos dos quais já demarcados.
Reunidos no segundo capítulo do relatório, os casos de “Violência contra a Pessoa” totalizaram 424 registros em 2024. As nove categorias nas quais é dividida esta seção registraram os seguintes dados: abuso de poder (19 casos); ameaça de morte (20); ameaças várias (35); assassinatos (211); homicídio culposo (20); lesões corporais (29); racismo e discriminação étnico-cultural (39); tentativa de assassinato (31); e violência sexual (20).
Os três estados com maior número de assassinatos têm se mantido constantes nos últimos anos. Em 2024, Roraima (57), Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33) registraram os números mais altos, com destaque também para a Bahia, onde 23 indígenas foram assassinados.
Os dados, que totalizaram 211 assassinatos, foram compilados a partir de consultas a bases do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e de secretarias estaduais de saúde, além de informações obtidas junto à Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (Sesai) via LAI.
Foram graves e numerosos os ataques armados a comunidades indígenas em luta pela demarcação de suas terras, e tiveram implicações e desdobramentos registrados em diferentes categorias desta seção. Os assassinatos de Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe e de Neri Ramos da Silva, morto durante uma operação policial contra uma retomada Guarani e Kaiowá na TI Ñande Ru Marangatu, destacam-se pela brutalidade e pela participação da Polícia Militar.
Além do terror, das ameaças e dos ferimentos por agressões e tiros nos diversos ataques que atingiram comunidades como as das TIs Tekoha Guasu Guavirá, no Paraná, e Panambi – Lagoa Rica, em Mato Grosso do Sul, muitos indígenas relataram casos de discriminação e preconceito ao buscar atendimento médico em hospitais, evidenciando um contexto de racismo e desumanização.
Mais de 30 ataques contra comunidades indígenas foram registrados no país, e ao menos dez pessoas ficaram com projéteis alojados em seus corpos: nove Avá-Guarani e um Guarani Kaiowá, que ficou com uma bala alojada em sua cabeça.
Acampamento Terra Livre 2024, em Brasília (DF). (Foto: Hellen Loures | Cimi)
As “Violências por Omissão do Poder Público”, organizadas em sete categorias, são reunidas no terceiro capítulo do relatório. Segundo os dados obtidos junto ao SIM, a secretarias estaduais e à Sesai, foram registrados 208 suicídios de indígenas em 2024. Como no ano anterior, Amazonas (75), Mato Grosso do Sul (42) e Roraima (26) registraram os números mais altos, que se concentraram, no país, majoritariamente entre indígenas de até 19 anos (32%) e entre 20 e 29 anos de idade (37%).
Dados obtidos junto às mesmas fontes registraram 922 óbitos de crianças de 0 a 4 anos de idade em 2024, com maior número de casos nos estados do Amazonas (274 óbitos), de Roraima (139) e de Mato Grosso (127). Novamente, a maioria dos óbitos de crianças indígenas de até quatro anos de idade foi provocada por causas consideradas evitáveis, entre as quais destacam-se as mortes ocasionadas por gripe e pneumonia (103); por diarreia, gastroenterite e doenças infecciosas intestinais (64); e por desnutrição (43). Ações adequadas de atenção à saúde, imunização, diagnóstico e tratamento poderiam evitar ou diminuir consideravelmente o desfecho fatal nestes casos.
Também foram registrados os seguintes dados nesta seção do relatório: desassistência geral (47 casos); desassistência na área de educação (87); desassistência na área de saúde (83); disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (10); e morte por desassistência à saúde (84), totalizando 311 casos.
Muitas das situações registradas neste capítulo são recorrentes e referem-se à falta generalizada, em aldeias do país inteiro, de infraestrutura escolar e de saúde, assim como à ausência de saneamento básico e de água potável. As inundações e acúmulo de chuvas, no Rio Grande do Sul, e a seca, no norte do país, agravaram estas circunstâncias e provocaram, em alguns casos, vulnerabilidade severa a comunidades inteiras.
A falta de acesso à terra também resulta em implicações para a saúde, registrada por diversos povos. O mesmo se passa com a poluição de cursos d’água pelo mercúrio utilizado em garimpos ilegais e pelo uso de agrotóxicos, que cresce em proporção à expansão das monoculturas em diversas regiões do país.
Tiveram destaque também, em 2024, os diversos casos de desassistência a indígenas do povo Warao. Em muitas cidades do país, os indígenas deste povo, procedentes da Venezuela, foram alocados em abrigos sem condições mínimas de dignidade. Casos do tipo foram registrados nos estados da Bahia, Mato Grosso, Pará, Paraíba e Roraima.
Em 2024, invasão de garimpeiros explodiu na TI Sararé, em Mato Grosso, do povo Nambikwara. (Foto: Foto: Fábio Bispo | Greenpeace)
A situação e as ameaças aos povos indígenas em isolamento voluntário são analisadas no quarto capítulo do relatório. As invasões e a falta de proteção aos territórios de indígenas isolados que permanecem sem reconhecimento estatal são os principais riscos à vida destes povos, que totalizam 119 registros na Amazônia Legal brasileira, segundo a Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil) do Cimi.
Deste conjunto, 37 registros estão em áreas que permanecem sem providência da Funai para a demarcação ou proteção. Em dezembro, a Funai emitiu a Portaria de Restrição de Uso para garantir a proteção ao território dos isolados do Rio Mamoriá, nos municípios de Lábrea e Tapauá, no Amazonas. No mesmo estado, porém, os isolados do Rio Caribi, no município de Itapiranga, continuam sem nenhuma proteção, apesar da farta documentação e dos relatos atestando sua presença numa região pressionada pela exploração de madeira e gás natural.
Mesmo os indígenas em isolamento voluntário que vivem em territórios com algum grau de reconhecimento estatal, contudo, estiveram sob ameaça em 2024. Ao menos 22 Terras Indígenas, que reúnem 48 registros de indígenas isolados, tiveram casos de invasões, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio em 2024.
Voltado à reflexão sobre o tema da Memória e Justiça, o quinto capítulo do relatório traz, neste ano, um balanço recente dos avanços na luta por reparação, não repetição de violações e justiça para os povos indígenas e pela criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade no Brasil.
O texto apresenta os avanços e os desafios enfrentados no período posterior ao falecimento do pesquisador Marcelo Zelic (1963-2023), que dedicou sua vida ao tema, e aponta os caminhos percorridos e almejados na luta pela preservação da memória e pela reparação das violações de direitos humanos dos povos indígenas no Brasil.
A publicação reúne, além dos capítulos destinados à sistematização de dados, um conjunto de textos analíticos. A permanência de visões estereotipadas e preconceituosas acerca dos povos indígenas no Brasil é abordada em dois artigos: um deles analisa as dificuldades para garantir o respeito aos direitos específicos destes povos no Poder Judiciário criminal e outro examina os casos de racismo e discriminação étnico-racial contra pessoas e coletividades indígenas no país.
A execução orçamentária relativa à política indigenista no segundo ano do governo Lula 3 e os efeitos da Lei 14.701 e da mesa de conciliação do STF para os direitos territoriais indígenas são tema de outros dois textos. Uma retrospectiva dos impactos das enchentes e da crise climática para os povos originários no Rio Grande do Sul é apresentada em outro artigo.
Por fim, dois textos detalham a situação de territórios sob ataque em 2024: a TI Tekoha Guasu Guavirá, do povo Avá-Guarani, no oeste do Paraná, e a TI Panambi – Lagoa Rica, dos Kaiowá e Guarani, em Mato Grosso do Sul.
A plataforma Caci, mapa digital que reúne as informações sobre os assassinatos de indígenas no Brasil, foi atualizada com as informações do Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2023. Caci, sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas, também significa “dor” em Guarani. Com a inclusão dos dados de 2024, a plataforma agora passa a abranger informações georreferenciadas sobre 1.525 assassinatos de indígenas, reunindo dados compilados desde 1985.
Acesse em caci.cimi.org.br.
Foto da capa: O tekoha Yvy Ajere foi uma das retomadas estabelecidas pelos Guarani e Kaiowá dentro da Terra Indígena Panambi – Lagoa Rica, em Douradina (MS). A retomada foi realizada para garantir um pequeno espaço de plantio para a comunidade e evitar a destruição de uma das poucas áreas de mata que restam em sua terra. Em represália, fazendeiros mantiveram um acampamento a poucos metros da retomada. Ataques armados, ameaças e intimidações fizeram parte do cotidiano dos indígenas, que, no entanto, resistiram, determinados a reaver seu território. A foto, tirada em 30 de julho de 2024, é de Gabriel Schlickmann.