24 Julho 2025
O médico de origem cubana nomeado por Donald Trump defendeu o líder de extrema-direita e pediu que Cristina "pague o que deve".
A reportagem é publicada por Página|12, 23-07-2025.
Como se fosse um vice-rei, falou sobre seu futuro trabalho na Argentina, onde pretende chegar não apenas para apoiar o governo de Javier Milei, mas também anunciou que visitará as províncias (onde Milei nunca esteve) para "garantir que não façam acordos com os chineses". A intromissão descarada do aspirante a embaixador americano na Argentina, Peter Lamelas, não parou por aí; ele chegou a antecipar o lobby que realizará no judiciário para "garantir que Cristina receba a justiça que merece". Dedicou vários minutos à ex-presidente para destacar a posição do governo Donald Trump sobre sua situação jurídica. Não apenas reclamou de sua prisão domiciliar, como ousou insinuar responsabilidade pela morte do promotor Alberto Nisman e pelo encobrimento do atentado à AMIA. O repúdio foi rápido; legisladores e governadores peronistas rejeitaram essas declarações, e até mesmo a própria embaixada chinesa na Argentina, que em um comunicado aconselhou Lamelas a não "ver na China um espelho que reflita apenas sua própria lógica hegemônica".
O governo Trump demonstrou imperialismo praticamente desde o momento em que retornou à Casa Branca. Primeiro, perseguiu migrantes com práticas repressivas e supremacistas, independentemente de serem legais ou ilegais. Depois, começou a impor tarifas a países que não obedecem ao seu mandato e, agora, como aconteceu recentemente com o Brasil, busca interferir direta e abertamente na política argentina.
Durante sua apresentação perante o Congresso dos EUA, buscando aprovação para sua nomeação como representante diplomático, Lamelas detalhou a política que seguirá na Argentina. Ele deixou claro que apoiar o governo de Milei e vencer em outubro são objetivos prioritários. "Trump me pediu para trabalhar com seu amigo Javier para construir uma grandeza sem precedentes", afirmou, para dissipar quaisquer dúvidas.
Se a vitória nas eleições de outubro é um objetivo, a outra prioridade é a China. O futuro embaixador afirmou que visitará as 23 províncias "para conversar com os governadores" e literalmente "garantir que eles não façam acordos com os chineses". "Isso pode levar à corrupção, corrupção por parte dos chineses", repetiu.
"O desafio", disse ele, "é que cada província tem seu próprio governo e pode assinar acordos com a China. Quero me envolver não apenas com o presidente (ministro das Relações Exteriores) Gerardo Werthein, Luis Caputo ou Santiago Caputo, mas também com os governos provinciais. Devemos continuar apoiando Javier Milei para construir um relacionamento melhor entre nossos países", disse Lamelas.
A decisão óbvia de evitar a presença de interesses chineses na Argentina motivou um comunicado da Embaixada da República Popular da China. A respeito das declarações do diplomata, a embaixada afirmou que "elas estão impregnadas de preconceitos ideológicos e de uma mentalidade de Guerra Fria baseada em um jogo de soma zero, o que apenas provoca um sentimento de desconforto quanto ao possível ressurgimento da Doutrina Monroe. Isso contradiz e se opõe aos 'valores democráticos' que eles proclamam", afirmou o comunicado.
Em outra seção, a delegação diplomática chinesa afirmou que o país "mantém intercâmbios e cooperação com os países latino-americanos, incluindo a Argentina, sempre baseados nos princípios de respeito mútuo, tratamento igualitário, benefício mútuo e resultados mutuamente benéficos, sem buscar esferas de influência ou interesses geopolíticos, nem mirar terceiros". Por isso, enfatizaram, em uma mensagem clara não apenas a Trump, mas também a Milei, que "a Argentina não deve se tornar um 'campo de batalha' para disputas entre grandes potências, mas sim um 'campo por excelência' para a cooperação internacional em busca de desenvolvimento, reforma e promoção". Por fim, aconselharam Lamelas, sem nomeá-lo, "a não ver na China um espelho que reflita apenas sua própria lógica hegemônica".
As declarações de Lamelas sobre a condenação e prisão de Cristina Fernández de Kirchner foram ouvidas como uma confirmação tardia do que o então presidente havia dito: "Se algo me acontecer, olhe para o norte". Nesse sentido, o futuro embaixador dos EUA não escondeu sua satisfação com o fato de ela estar presa. "Ela foi processada e considerada culpada de fraude", afirmou, e ousou afirmar que "se não fosse política, estaria presa. Ela está em prisão domiciliar devido a um certo favoritismo político que existe lá", disse, sem apresentar qualquer prova para tal declaração ofensiva.
Determinado a continuar manchando o nome da ex-presidente, Lamelas se referiu ao atentado à AMIA: "Obviamente, até onde sabemos, ela não esteve envolvida no atentado à AMIA, mas definitivamente esteve envolvida de alguma forma em encobri-lo", afirmou, sem a menor prova dessa afirmação imprudente. Em seguida, recorreu à figura de Deus para apontar que somente a divindade saberia "se ela esteve envolvida na morte do promotor (Alberto) Nisman".
Por fim, ele disse que aplaudiu "os esforços de Milei para chegar ao fundo disso", como se o presidente tivesse desenvolvido alguma política para esclarecer o ataque.
Pouco depois, setores democráticos da política expressaram sua condenação à interferência do Spruille Braden do século XXI. Por exemplo, o governador de La Pampa, Sergio Ziliotto, declarou que, em sua província, "não aceitamos, nem aceitaremos, interferências externas que busquem nos disciplinar. Os únicos que nos comandam são os habitantes de La Pampa".
O governador da Terra do Fogo, Gustavo Melella, fez eco ao seu homólogo pampa, afirmando que em sua província "não permitimos que ninguém nos discipline e tomamos nossas próprias decisões", e afirmou que "é inaceitável que um funcionário diplomático adote uma postura que beira o intervencionismo e desrespeite a soberania de nossa província". Além disso, recomendou que Lamelas permaneça em seu país "para resolver seus problemas de corrupção. Pare de ser cúmplice dos usurpadores britânicos. A Argentina e nossa província não precisam de você nem de suas ambições intervencionistas".
A senadora Juliana di Tullio, do UxP, perguntou ao presidente se ele "é o chefe do Estado argentino, não o chefe de uma colônia. Não aceite interferência de nenhum país. A Argentina é a pátria de todos, defenda-a". Para o deputado Leopoldo Moreau, do UxP, as declarações de Lamelas sobre CFK confirmam "de onde partiu a ordem de prisão". Portanto, ele acredita que o embaixador agora se sente livre para "dizer aos governadores o que eles podem ou não fazer e com quem devem ou não negociar". Além disso, enfatiza o deputado, Lamelas anuncia descaradamente que pretende interferir no julgamento relacionado ao Memorando do Irã para garantir outra condenação para Cristina.
Por sua vez, a ex-deputada da FIT, Myriam Bregman, disse ser "difícil identificar o que há de mais grave em tudo o que ele diz". Ela considerou inaceitável sua interferência nos assuntos internos da Argentina, bem como "sua opinião sobre a distribuição de poder estabelecida pela Constituição de 1994 e seu desejo de receber investimentos de um terceiro país". Ela também condenou seus comentários sobre Cristina Kirchner e, acima de tudo, sua abertura para apoiar a campanha de Milei.