04 Julho 2025
Uma carta aberta aos bispos da Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam), divulgada em junho pelo padre Clodovis Boff, gerou polêmica entre clérigos e teólogos no Brasil.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux Now, 02-07-2025.
No documento, Clodovis Boff — que já foi um dos principais líderes do movimento da Teologia da Libertação na América Latina, junto com seu irmão Leonardo Boff, e agora é um crítico frequente dessa escola teológica — acusa os bispos de priorizarem questões sociais em detrimento das boas novas de Jesus.
Os bispos da Igreja da América Latina e do Caribe se reuniram no fim de maio no Rio de Janeiro para sua assembleia geral. Em sua mensagem final, enfatizaram a necessidade de construir uma Igreja sinodal, que possa dar um testemunho de unidade em meio às sociedades politicamente polarizadas da região.
A carta do Celam também mencionou os principais desafios da América Latina, como violência, pobreza, desigualdade social, corrupção, enfraquecimento da democracia e secularização. Logo no início de sua carta, divulgada em 13 de junho, Clodovis Boff destacou sua discordância com a mensagem do Celam.
“Que boas notícias eu li aí? Perdoem-me a franqueza: Nenhuma. Os senhores, bispos do Celam, repetem sempre a mesma velha história: social, social e social. E já fazem isso há 50 anos. Caros irmãos superiores, não percebem que essa cantiga está ficando velha?”, perguntou ele no documento.
Clodovis Boff então perguntou aos bispos quando “darão a boa nova de Deus, de Cristo e do Seu Espírito”, a boa nova da “graça e da salvação”, da “conversão do coração e da meditação da palavra”, da “oração e adoração, da piedade com a Mãe do Senhor” e outros temas semelhantes.
“Quando nos enviarão uma mensagem verdadeiramente religiosa e espiritual?”, acrescentou.
Clodovis Boff argumentou que o mundo secular está cansado da secularização e anseia por espiritualidade, mas tudo o que os bispos latino-americanos fazem é falar sobre questões sociais. Enquanto os fiéis leigos carregam alegremente os sinais de sua identidade católica, vestindo camisas com estampas religiosas e crucifixos, padres e freiras "aparecem sem nenhum tipo de sinal distintivo".
“Governos e ONGs estão aí para responder aos 'clamores sociais'. A Igreja, sem dúvida, não pode ficar de fora desse jogo. Mas ela não é protagonista nesse campo. Seu campo de ação é outro e mais elevado: responder precisamente ao 'clamor por Deus'”, continuou, acrescentando que a Igreja é “sacramento de salvação” e não uma simples instituição social.
Clodovis Boff argumentou que, ao ler a carta do Celam, pode-se pensar que a principal preocupação da Igreja hoje em nossa região “não é a causa de Cristo e da salvação, mas as causas sociais, como a justiça, a paz e a ecologia”.
Ele enfatizou que o Papa Leão XIV enviou uma mensagem ao Celam na qual menciona a “urgente necessidade de lembrar que é o Ressuscitado que protege e guia a Igreja, reanimando-a na esperança” e que a missão da Igreja é “alcançar tantos irmãos e irmãs para anunciar a mensagem da salvação de Jesus Cristo”.
Ele mencionou a crise da Igreja latino-americana, na qual "sete ou oito países não têm mais a maioria dos católicos" e criticou o Celam por não abordar tal problema. Clodovis Boff disse que, ao mesmo tempo, há sementes de esperança na Igreja latino-americana e elas não estão ligadas ao ativismo social, mas aos novos "movimentos e comunidades... dos quais a Renovação Católica Carismática é a forma mais notória".
“Embora essas expressões de espiritualidade e evangelização constituam o grupo eclesial que mais preenche nossas igrejas (e os corações dos fiéis), elas não mereceram um único 'olá' na Mensagem Episcopal”, dizia a carta.
Ele acrescentou que só se veem “cabeças de cabelos brancos” lidando com questões sociais na Igreja, mas quando se trata da dimensão espiritual, há uma “participação massiva dos jovens”.
Clodovis Boff instou o episcopado latino-americano a "retomar com fervor a opção por Cristo", tirando-O das sombras e restaurando Sua primazia total na Igreja. Ele a definiu como um "cristocentrismo que tudo fermenta e transforma: as pessoas, a Igreja e a sociedade".
“Depois de ler sua mensagem, aconteceu-me algo semelhante ao que senti há quase 20 anos, quando, não suportando mais os repetidos erros da Teologia da Libertação, tal ímpeto surgiu do fundo da minha alma que bati na mesa e disse: 'Chega! Preciso falar'”, dizia o documento.
A carta de Clodovis Boff foi reproduzida e discutida por vários padres e leigos católicos de origens tradicionalistas e conservadoras, sendo saudada por alguns como um aviso necessário e óbvio à Igreja “hegemonicamente progressista” da região.
O texto também repercutiu entre os estudiosos, especialmente aqueles que estudaram ou colaboraram com Clodovis Boff no passado.
Foi o caso de Romero Venâncio, professor do Departamento de Filosofia e Estudos da Religião da Universidade Federal de Sergipe. Ele foi um dos alunos de um curso de verão ministrado por Clodovis Boff em São Paulo no início da década de 1990 e acompanha seu trabalho há décadas.
“Clodovis tem uma inteligência admirável e é um teólogo extraordinário. Mas ele vem claramente deixando a Teologia da Libertação para trás nas últimas décadas e se tornando um teólogo conservador com uma visão de mundo muito mais estreita”, disse Venâncio ao Crux.
Pouco depois que a carta de Clodovis Boff começou a circular nas redes sociais, Venâncio divulgou um pequeno ensaio com duras críticas às suas ideias, que também teve ampla circulação na internet. Em seu texto, Venâncio mencionou a transformação de Clodovis Boff na década de 1990, quando passou a questionar o uso da categoria “pobre” na teologia latino-americana, chegando a afirmar que a Teologia da Libertação “substituiu Jesus pela figura do pobre”.
Em um livro publicado em 2014, Clodovis Boff adotou "uma nova guinada metafísica", segundo Venâncio, adotando noções idealistas sobre humanidade e espiritualidade. Antes leitor do pensador marxista Louis Althusser, agora ele jamais mencionaria Marx e preferiria abordar temas ligados ao pós-modernismo, disse Venâncio.
“A carta parece ser dirigida a um novo rebanho: um grupo seleto de extremistas de direita que atuam nas redes sociais e nas dioceses, vociferando contra o comunismo, o Concílio Vaticano II, o Papa Francisco e qualquer projeto de sinodalidade”, argumentou.
Na opinião de Venâncio, Clodovis Boff parece ter uma visão ultrapassada da Renovação Carismática Católica (RCC), que “não é mais aquele movimento massivo dos anos 1990 voltado para a espiritualidade, mas agora é um segmento dividido por divergências teológicas e até mesmo sobre administração de patrimônio”, uma alusão às disputas judiciais que impactam um grande grupo da RCC no Brasil, a Canção Nova.
A visão de Clodovis Boff sobre os atuais líderes do Celam também é aparentemente equivocada, disse Venâncio. Dom Jaime Spengler, cardeal-arcebispo de Porto Alegre, que atualmente preside a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Celam, é amplamente visto como um homem moderado, sem qualquer ligação visível com a Teologia da Libertação.
Na opinião de Venâncio, Clodovis Boff está “claramente preocupado com o tema da espiritualidade e da mística, que ele tem todo o direito de buscar em outras escolas, e não na Teologia da Libertação”. “Mas, na minha opinião, não é justo dizer que tal dimensão esteja fora da Teologia da Libertação”, argumentou.
Venâncio enfatizou que Clodovis Boff publicou na década de 1980 um livro em colaboração com o teólogo norte-americano George Pixley, um pensador batista que passou décadas na América Latina e “tinha uma profunda visão mística do mundo”.
Na opinião do sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-chefe do Centro de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Clodovis Boff é um “homem naturalmente místico que quer restaurar a visão mística na Igreja”.
“A Igreja perdeu essa visão. O tradicionalismo a perdeu devido ao seu formalismo, e a Igreja progressista a perdeu devido ao seu foco em questões sociopolíticas”, disse Ribeiro Neto ao Crux.
Ele argumentou que o Papa Francisco foi igualmente incompreendido em sua dimensão mística, dado que “a maioria das pessoas associaria sua mensagem a questões políticas — tanto dentro quanto fora da Igreja”. “Isso significa que mesmo no mundo católico as pessoas não estão mais acostumadas à mística”, disse Ribeiro Neto.
Ele argumentou que as críticas de Clodovis Boff ao Celam se devem à sua “incapacidade de avançar além das questões sociais”.
“Ele não está exigindo que os bispos falem menos sobre questões sociais. O que ele quer é que eles reconheçam a presença de Deus no mundo. Ele não está dizendo que eles são muito sociológicos, está dizendo que lhes falta a dimensão mística”, disse Ribeiro Neto.
Em sua opinião, Clodovis Boff é agora um “completo estranho e tem uma percepção angustiada de que Francisco tentou por dez anos corrigir tais problemas e a Igreja não conseguiu entender isso”.