"De posse de uma melhor compreensão do fenômeno político da desobediência civil, nos cabe agora ver em que medida estes protestos em curso no EUA contra a política anti-imigrantes de Trump podem ou não ser tomados como atos de desobediência civil".
O artigo é de Denis Coitinho, eticista, professor do PPG em Filosofia da Unisinos e bolsista Produtividade do CNPq.
Tem me chamado atenção nos últimos dias os protestos que estão ocorrendo nos EUA contra a política anti-imigração do presidente Donald Trump. Esses protestos tiveram início em Los Angeles, no estado da Califórnia, e agora já se espalharam para diversas cidades norte-americanas, tais como Nova York, Chicago, Atlanta, Boston, Seattle, Las Vegas, Minneapolis, Santa Fé, Dallas e Washington, entre outras. Meu interesse central é pensar como devemos classificar esses protestos. São atos de vandalismo, como dito por Trump, feitos por baderneiros profissionais, ou são protestos políticos legítimos frente a uma injustiça?
Antes de continuar, vejamos as características e a cronologia dos protestos.
Os protestos contra a política anti-imigratória do presidente Donald Trump entraram no oitavo dia nesta sexta-feira, dia 13/06/2025. Nos últimos dias, os atos deixaram de ocorrer apenas em Los Angeles, se espalhando para outras cidades norte-americanas. Em Los Angeles, 380 pessoas já foram presas nos protestos.
No dia 06 de junho de 2025, começaram a circular nas redes sociais notícias de que o Centro de Imigração e Alfândega (ICE – U.S Immigration and Customs Enforcement) estava perseguindo imigrantes no sul da Califórnia, incluindo Los Angeles, fazendo batidas dentro de empresas enquanto os imigrantes estavam trabalhando. As batidas em Los Angeles ocorreram sobre o pano de fundo de uma tentativa agressiva de aumentar o número de prisões e deportações, por um governo decepcionado com a velocidade atual do processo. A agência ICE prendeu 2,2 mil pessoas no dia 04 de junho, segundo a NBC News, sendo considerado um recorde para um único dia, considerando a média de 660 detenções diárias (EPSTEIN; DEBUSMANN; HAYES, 2025). A partir disso, grupos de pessoas passaram a se reunir no centro de Los Angeles para se manifestarem contra os agentes de imigração e contra a política anti-imigração de Trump.
Nos dias seguintes, os protestos foram ganhando adesão popular e houve confronto com a polícia e registro de vandalismo, como colocar fogo em carros que estavam nas ruas. Como revide, os policiais dispararam bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral contra a multidão que protestava contra a referida política imigratória do presidente republicano. Diante dos protestos que foram ganhando escala, Trump assinou um memorando autorizando o envio de 700 fuzileiros navais e 4 mil soldados da Guarda Nacional para Los Angeles. Desde terça-feira, dia 10/06, parte do centro de Los Angeles está sob toque de recolher, com restrição de circulação entre 20h e 6h. Apenas neste dia, 225 pessoas foram detidas nas manifestações de Los Angeles (BISCHOFF, 2025).
A partir daí, os protestos se espalharam para outras cidades norte-americanos, como Nova York, Boston, Chicago, Atlanta, entre muitas outras. Agora a pauta não se restringe apenas a ser contra a política anti-imigrantes, mas, também, contra a repressão autoritária aos protestos. Mais de 1.800 manifestações contra Trump estão marcadas para ocorrerem no sábado, dia 14/06, em todos os 50 estados norte-americanos. Com o crescimento das manifestações, vários grupos de direitos civis e outras organizações políticas criaram a organização “No Kings” – “Sem Reis”, em português – que passou a organizar protestos pacíficos contra Trump (BISCHOFF, 2025). Segundo o New York Times, os organizadores do “No Kings” incluem os grupos “Indivisible, “The American Civil Liberties Union” e o “50501”, entre outros. Alguns desses grupos protestaram durante o primeiro mandato presidencial de Trump a favor do direito ao aborto e contra a violência das armas, bem como alertaram sobre a ameaça do governo republicano em relação à saúde, educação e seguridade social (HIPPENSTEEL, 2025). Além da criação da organização “No Kings”, é importante comentar que muitos atores, cantores e influenciadores estão usando as redes sociais para se manifestar contra as ações do ICE, apoiando os protestos (BISCHOFF, 2025).
Mas então, como devemos classificar esses protestos? Eles seriam atos de vandalismo como afirmado por Trump e apoiadores, ou eles teriam legitimidade política por se contraporem a uma política injusta? Creio que o conceito de desobediência civil nos ajuda a compreender o que está ocorrendo nestes protestos, que são atos políticos públicos, que têm uma ilegalidade pontual, mas que respeitam a moldura do estado democrático e pedem a mudança de uma política que consideram injusta. Mas, para avançar na tentativa de classificação, vejamos mais detalhadamente as características do fenômeno da desobediência civil.
No seminal texto "Civil disobedience and personal responsibility for injustice", Hugo Adam Bedau explora os aspectos morais e práticos da desobediência civil, com foco especial na distinção entre resistência direta e indireta a leis injustas. Bedau argumenta que a responsabilidade pessoal pela injustiça pode ser um fator significativo na justificação da desobediência civil, mesmo quando o indivíduo desobediente não é diretamente afetado pela injustiça. Ele define a desobediência civil como os atos políticos que são ilegais, cometidos abertamente, de forma não-violenta e consciente, que respeitam a moldura do Estado de Direito, mas possuem a intenção de protestar contra alguma lei, política ou decisão de governo que se considera injusta (BEDAU, 1970, p. 51). É um ato que desobedece a lei em razão de uma causa justa. Exemplos já canônicos de desobediência civil são os movimentos pelos direitos civis dos afro-americanos nos EUA, como os liderados por M. L. King nas décadas de 1950 e 1960, os protestos conduzidos por M. Gandhi contra a dominação colonial dos britânicos na Índia, a rejeição de parte da população norte-americana à convocação de alistamento na Guerra do Vietnã na década de 1960, ou mesmo a recusa de muitos europeus a entregar judeus durante a perseguição realizada pelos nazistas no contexto da Segunda Guerra Mundial.
Com estes exemplos em mente, podemos compreender que a desobediência civil é resumidamente uma ação popular que consiste na desobediência expressa a uma determinada lei. E isso se dá mais comumente quando um grupo de cidadãos entende que determinada lei produz injustiça, como foi o caso das leis segregacionistas norte-americanas, que proibiam que os negros estudassem em escolas e universidade para brancos ou que comessem em seus restaurantes, proibindo, também, que eles se sentassem nos lugares reservados aos brancos nos ônibus, exigindo, até mesmo, a cedência de seus lugares a eles no caso dos ônibus estarem lotados (SCHEUERMAN, 2018).
Em termos históricos, podemos fazer referência ao texto Antígona de Sófocles, em que Antígona desobedece a ordem legal de Creonte para enterrar seu irmão, reivindicando uma distinção entre leis positivas, que são relativas, e leis não escritas, que seriam naturalmente justas. Nessa tragédia, Antígona descumpre o ordenamento legal positivo, reivindicando ser esta uma lei injustiça por impedir que se fizesse os ritos fúnebres a um familiar. Outra referência importante é o texto de Henry David Thoreau, ‟Resistência ao governo civil”, de 1849. Nesse texto, que é resultado de duas palestras proferidas em 1848, Thoreau explica a causa de sua prisão em decorrência do não pagamento de tributo, como sendo um ato de protesto contra a escravidão e contra a expansão territorial americana por meio de guerras de conquistas, nos choques com o México (BUDIB, 2024, p. 17-25; 30-36). E os casos paradigmáticos do fenômeno são os movimentos pelos direitos civis do afro-americanos, liderados por M. L. King e os protestos liderados por Gandhi contra a dominação colonial na Índia, bem como o movimento contra a Guerra do Vietnã (BUDIB, 2024, p. 36-45).
Com esses exemplos em mente, podemos ver que a desobediência civil é uma forma de protesto político feito pacificamente e que se opõe a alguma ordem que possui um comportamento de injustiça ou contra um governo visto como opressor pelos desobedientes. Assim, ela é um ato político, não-violento e consciente, contrário à lei, cometido publicamente e respeitando o estado de direito, com objetivo de protestar contra a injustiça de certas leis ou políticas. Esse fenômeno deve estar conectado com o senso de justiça da comunidade, uma vez que faz um apelo para os agentes reconsiderarem sua posição de injustiça.
Me permitam fazer referência à concepção de desobediência civil como a apresentada por John Rawls em A Theory of Justice e isso em razão dele destacar um aspecto que vejo como fundamental para a compreensão do fenômeno, a saber, a desobediência em tela deve estar conectada com o senso de justiça da maioria da comunidade, tendo o papel de declarar que os princípios da cooperação social entre pessoas livres e iguais não estão sendo respeitados. Por isso, os casos de desobediência civil estariam limitados às circunstâncias de clara e substancial injustiça, como seria a situação de se negar o direito de votar a certas minorias, ou negar que elas possuam propriedade. A ideia geral é que esta desobediência seria um apelo aos agentes para reconsiderarem sua posição, para se colocarem no lugar dos outros e reconhecerem que eles não podem esperar que se aceite indefinidamente os termos impostos por serem injustos. Nesse sentido, é importante identificar que esta desobediência é diferente de um ato de objeção de consciência, que apenas apela para princípios morais e convicções religiosas pessoais, como seria o caso de recusar em servir às forças armadas para não lutar em uma dada guerra por acreditar no pacificismo. Para Rawls, este fenômeno estaria restrito aos princípios políticos que expressam uma concepção pública de justiça de uma sociedade democrática. E, por isso, a desobediência em tela dependeria de uma fidelidade à lei que é expressa pela natureza pública e não-violenta do ato, exigindo uma disposição para aceitar as consequências legais da conduta, bem como exigindo que todos os meios legais já tenham sido tentados anteriormente (RAWLS, 1999, p. 319-343).
Em A Theory of Justice, Rawls apresenta uma profunda reflexão sobre a desobediência civil, abordando sua definição e distinção da objeção de consciência (seções 55 e 56), justificação (seções 57 e 58) e o seu papel específico (seção 59), pensando especificamente nos casos da guerra do Vietnã, independência da Índia e movimentos por direitos civis dos afroamericanos e similares. Para ele, este fenômeno surge apenas em uma sociedade mais ou menos justa e democrática, em que os cidadãos reconhecem a aceitam a legitimidade da Constituição, mas, por outro lado, tem um forte compromisso com a justiça. Seria um fenômeno em que ocorre um conflito de deveres entre o dever de cumprir as leis e o dever de se opor às injustiças (RAWLS, 1999, p. 319).
Ele define a desobediência civil como: ‟[...] um ato político público, não-violento, consciente, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas do governo. Agindo dessa forma, alguém se dirige ao senso de justiça da maioria da comunidade e declara que, em sua opinião ponderada, os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estao sendo respeitados” (RAWLS, 1999, p. 404). A sua justificação está baseada em três critérios: a ação é restrita a eventos de injustiças significativas, em que ferem o primeiro princípio de justiça e a primeira parte do segundo princípio; é o último recurso a ser adotado; deve-se considerar o bem-estar de terceiros. Por fim, o seu papel é a estabilidade. Em suas palavras “[...] a desobediência civil (e também a objeção de consciência) é um dos recursos estabilizadores de um sistema constitucional, embora por definição seja ilegal” (RAWLS, 1999, p. 424).
Assim, os requisitos da desobediência para Rawls são: a publicidade; a não-violência; o respeito à lei apesar da ilegalidade pontual; a aceitação da punição; o apelo à mudança de parte da legislação ou determinada política; ter esgotado todos os recursos convencionais para as mudanças institucionais (RAWLS, 1999, p. 319-323).
De posse de uma melhor compreensão do fenômeno político da desobediência civil, nos cabe agora ver em que medida estes protestos que estão em curso no EUA contra a política anti-imigratória de Trump podem ou não serem tomados como atos de desobediência civil.
Tomando as características elencadas tanto por Bedau quanto por Rawls, creio que a resposta a questão é positiva, e isso porque estes protestos são atos políticos que desobedecem a lei, ao fechar as ruas para protestarem, mas o fazem em razão de uma causa justa, que é defesa da população de imigrantes que reside nos EUA e que estão sendo duramente perseguidos pelo governo federal norte-americano. Mas vejamos isso em maior detalhe.
Em primeiro lugar, estes protestos, em alguns casos são atos ilegais ao fecharem certas ruas e irem contra o toque de recolher, mas que respeitam a moldura do Estado democrático de direito, e denunciam uma injustiça. Claramente, não são atos de vandalismo ou atos revolucionários.
Em segundo lugar, são atos públicos, isto é, são atos abertos ao conhecimento de todos. Em razão disso, eles aceitam as consequências legais dos atos, aceitando a punição.
Em terceiro lugar, são atos hegemonicamente não-violentos, com uma violência apenas residual. Os atos ocorrem ou na forma de protestos em um dado local ou na forma de marchas. Nos casos dos atos iniciais ocorridos em Los Angeles, os atos de protestos ocorreram nas ruas da cidade e próximos ao centro de detenção dos imigrantes. Isso gerou confronto com a polícia e incêndio em alguns carros. Mas, de forma geral, os protestos ocorridos nas outas cidades têm sido pacíficos.
Por último, os atos possuem a intenção central de protestar contra a política imigratória injusta do governo federal, que está perseguindo e prendendo os imigrantes que residem e trabalham nos EUA em um país que é formado hegemonicamente por imigrantes.
Vamos acompanhar o desenrolar destes protestos, para ver se se confirma a classificação inicial feita. Mas, em princípio, estes atos parecem conectados com o senso de justiça da maior parte da comunidade, sendo um forte apelo para os agentes reconsiderarem sua posição de injustiça.
BEDAU, H. A. Civil disobedience and personal responsibility for injustice. In: BEDAU, H. A. (Ed.). Civil Disobedience in Focus, London: Routledge, 19991, p. 49-67.
BISCHOFF, Wesley. “Sem Reis”: como protestos contra Trump se espalharam para além de Los Angeles e ganharam a atenção de famosos. Portal G1, 12/05/2025.
BUDIB, Alexandre C. Teoria Liberal da Desobediência Civil. Curitiba: Appris, 2024.
EPSTEIN, Kayla; DEBUSMANN, Bernard; HAYES, Christal. Los Angeles: a tempestade perfeita criada por batidas de Trump contra imigrantes em cidade de estrangeiros. BBC News Brasil, 11/06/2025.
HIPPENSTEEL, Chris. What We Know About the “No Kings” Protests on Saturday. The New York Times, 13/06/2025.
RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge, MAS: Harvard University Press, 1999.
THOREAU, Henry David. Desobediência civil. São Paulo: Edipro, 2016.