26 Abril 2024
"Após caracterizarmos as virtudes ecológicas, podemos concluir que apenas apostar na aquisição de certos traços de caráter ecológicos não resolveria a nossa grave crise ambiental, mas penso que pode nos ajudar a na busca de vidas ambientalmente decentes e na construção de sociedades realmente sustentáveis", escreve Denis Coitinho, eticista, professor do PPG em Filosofia da Unisinos e pesquisador do CNPq.
Vivemos um período da história da humanidade caracterizada por uma série de ameaças, tais como o impacto da inteligência artificial em nosso modo de vida, que pode ter impactos negativos no emprego, por exemplo, com desemprego em massa, ameaça ao sistema democrático ao redor do mundo e, não menos importante, a crise ambiental sem proporção que já ameaça a vida humana no planeta Terra. Nesse ensaio, quero tratar desta última ameaça, pensando, especialmente, em como podemos lidar com essa preocupante situação.
Note-se que as mudanças climáticas são uma realidade incontestável atualmente, mudanças estas decorrente da crise ambiental que se gestou ao longo do processo de industrialização dos últimos dois séculos, em especial, a partir da lógica da ampliação da produção e consumo que foi característica marcante do século XX em todo o mundo. As mudanças climáticas são transformações a longo prazo nos padrões de temperatura e clima. Essas mudanças podem ser naturais, como por meio de variações no ciclo solar, mas, desde o ano de 1800, as atividades humanas têm sido o principal impulsionador destas mudanças no clima, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás. A queima de combustíveis fósseis gera emissões de gases de efeito estufa que agem como um grande cobertor em torno da Terra, retendo o calor e aumentando as temperaturas.
Sobre o aumento de temperatura no planeta, o ano de 2023 foi especialmente significativo. Considerando as ocorrências ao redor do mundo, o último verão no Hemisfério Norte foi extremamente quente, com as temperaturas atingindo recordes, inclusive no mar, de forma que as discussões já giram em termos dos limites da sobrevivência humana. O Observatório Europeu, por exemplo, afirma que as temperaturas no Hemisfério Norte médias foram as mais altas já registradas durante o verão de 2023. Estudo da Organização Metereológica Mundial, a OMM, revela que a temperatura de 2023 deve ficar 1,4º C acima dos níveis pré-industriais. Ondas de calor, secas, inundações e incêndios afetaram a Ásia, a Europa e a América do Norte durante o verão boreal, em proporções dramáticas e, em certos casos, sem precedentes, com mortes e danos significativos para as economias e o ambiente como um todo.
A partir da identificação deste problema, surge a urgente questão de saber o que devemos fazer para evitar ou mesmo para mitigar essa situação catastrófica que foi criada pelas nossas próprias ações e modo de vida?
A resposta usual é que a crise ambiental é tamanha que ações individuais não resolveriam o problema, e, dessa forma, a única solução seria apostar em ações políticas coletivas. É o que vemos ocorrendo nos acordos sobre o clima, como a CPO 28 (Conferência da ONU sobre as mudanças climáticas), ocorrida no ano de 2023 em Dubai, nos Emirados Árabes. Nessas conferências, os países, mediados pela Organização das Nações Unidas (ONU), discutem e definem ações concretas para limitar a elevação da temperatura do planeta a 1,5º C até 2030, ações tais como a redução de emissões de gases de efeito estufa, a pesquisa e desenvolvimento de tecnologia que visam a transição energética, com o resultado da energia renovável, e até mesmo o financiamento climático, que é uma medida em que países ricos se comprometem em ajudar os países mais vulneráveis. Esses acordos regem medidas de redução de emissão de dióxido de carbono e têm por objetivos fortalecer a resposta à ameaça da mudança do clima e reforçar a capacidade dos países para lidar com os impactos gerados por essa mudança.
Mesmo considerando como importantes esses acordos sobre o clima, de forma que os países do mundo se comprometam com certas medidas visando a sustentabilidade planetária, bem como todas as medidas públicas que estabelecem políticas específicas para a saída da crise, creio que isto ainda seja insuficiente. E, dada a urgência em que nos encontramos, penso que uma possibilidade adicional seria refletir sobre a nossa responsabilidade individual com essa crise ambiental. Por exemplo, será que individualmente não seria necessário nos comprometermos com outro tipo de vida? Os agentes não teriam uma responsabilidade moral por poluir menos, por exemplo, reduzindo as emissões de carbono ou mesmo consumindo de forma mais equilibrada?
No restante deste ensaio, vamos contrariar a posição padrão, e defender que podemos e devemos desenvolver certas virtudes ecológicas que nos ajudariam a lidar com esse problema, tais como a virtude da benevolência, humildade e, sobretudo, a virtude da frugalidade. Iniciamos, então, definindo o que seriam mesmo as virtudes ecológicas, para depois apresentá-las em maior detalhamento.
Virtudes são traços comportamentais que levam as pessoas a agir de forma desejável. Em outras palavras, a virtude é um traço de caráter permanente manifestado nas ações habituais, que é algo bom para a pessoa possuir em razão de pensarmos que isto garantirá a sua felicidade ou o seu sucesso. Por exemplo, uma pessoa prudente é aquela que regularmente age com bom senso, equilíbrio, tendo a capacidade de tomar decisões sensatas e uma pessoa justa é a que tem a disposição para dar ao outro o que é o seu direito, tanto no sentido distributivo como retributivo, sendo o oposto da ganância. Por outro lado, a pessoa moderada tem a habilidade do autodomínio, podendo controlar os desejos e apetites, de forma similar que o corajoso é aquele que demonstra uma disposição para enfrentar os desafios, confrontando seus medos.
O ponto é que tomamos este comportamento como desejável porque imaginamos que uma pessoa sem estas qualidades dificilmente obterá sucesso em sua vida. Seria possível imaginar alguém que é imprudente, covarde, intemperante e injusto tendo uma vida bem-sucedida? Seria desejável viver em uma sociedade onde os cidadãos apenas demostrassem falta de generosidade, desonestidade, deslealdade, arrogância e vaidade, entre outros vícios? Penso que não e isto talvez revele que tomamos estes padrões normativos como essenciais na orientação de nossas vidas, bem como que atribuímos valor ao esforço dos indivíduos para serem pessoas melhores, considerando que são as ações repetidas que formam o caráter.
Agora, as virtudes que são aplicadas no domínio ambiental podem ser consideradas como “virtudes ecológicas” ou “virtudes ambientais”, sendo os traços de caráter manifestados pelo agente na sua relação com os entes naturais, como animais não-humanos, rios, mares, florestas, ar, entre outros, sendo disposições apropriadas com o ambiente. Sandler, em Character and Environment (2007), por exemplo, define as virtudes ambientais como virtudes que respondem a entidades ambientais, justificadas por considerações ambientais e/ou que apoiam bens ou valores ambientais. Por exemplo, as virtudes do ativismo ambiental, promovem bens e valores ambientais porque auxiliam no “sucesso nos domínios sociais e políticos na garantia de bens ambientais”. Entre essas virtudes estão traços de caráter como “compromisso, astúcia, disciplina, atenção, discernimento, coragem, criatividade, coragem, autocontrole, cooperação, paciência, solidariedade, perseverança e otimismo” (Sandler, 2007, p. 49). Outro exemplo seriam as virtudes da comunhão com a natureza, que inclui a admiração, respondendo às entidades ambientais. A admiração fornece os benefícios eudaimonísticos da alegria e satisfação (Sandler, 2007, p. 54).
Com essa definição em mãos, vamos agora considerar algumas virtudes ecológicas que parecem relevantes quando falamos das mudanças climáticas, a saber, a benevolência, a humildade e, especialmente, a frugalidade.
A benevolência, por exemplo, entendida tradicionalmente, é uma disposição para fazer ou desejar o bem ao outro por motivos não egoístas. Como uma virtude ecológica, é uma disposição expandida para fazer ou desejar o bem aos descendentes e animais não-humanos, pensando no futuro das novas gerações e na natureza como um todo. Assim, ela pode produzir um comportamento proativo em criar iniciativas para melhorar a qualidade ambiental. Com a posse dessa virtude, se poderia facilmente substituir o automóvel pela bicicleta como meio de transporte habitual, por exemplo, contribuindo para a diminuição das emissões de carbono, tendo em mente o futuro da humanidade.
Rosalind Hursthouse, por exemplo, em Environmental Virtue Ethics (2007), diz que uma lista das virtudes ambientais deve incluir dois tipos de itens, a saber, (i) deve incluir virtudes antigas integradas com a teoria ambientalista, como prudência, benevolência, humildade etc. e (ii) deve desenvolver novas virtudes que não foram identificadas ainda. Em relação à estas últimas, Hursthouse aponta duas novas virtudes. A primeira seria a admiração (wonder), que consiste em uma disposição para sentir admiração pela natureza e agir de acordo, sendo uma disposição para defender a natureza da destruição e exploração. A segunda seria a virtude de ser corretamente orientado pela natureza, que seria uma disposição para corretamente respeitar e proteger não apenas a vida, mas a natureza em todos os seus aspectos (Hursthouse, 2007, p. 161-167).
De forma similar, a humildade parece ser uma aliada nessa tarefa, pois ela é uma disposição para reconhecer as próprias limitações e fraquezas e agir a partir dessa consciência. É tomada geralmente como uma contraposição à vaidade e arrogância. Do ponto de vista ambiental, esta disposição pode ser um poderoso antídoto contra a arrogância em relação à natureza. Assim, o agente humilde poderia ver a natureza não como um recurso a ser utilizado em seu proveito, não se vendo como senhor da natureza. A esse respeito, é pertinente fazer referência ao conhecido exemplo dado por Thomas Hill, em Ideals of Human Excellence and Preserving Natural Environments (1983), a saber, o do rico excêntrico que destrói o jardim, com suas plantas, flores e árvore e recobre o pátio com asfalto. O traço comportamental principal que ele demostra é de falta de humildade para compreender o valor da natureza. Assim, a humildade pode ser entendida como uma importante virtude ecológica, de forma a possibilitar uma relação de respeito entre seres humanos e entes naturais. Para Hill (1983, p. 211),
“O significado moral da preservação dos ambientes naturais não é inteiramente uma questão de direitos e de utilidade social, pois a atitude de uma pessoa em relação à natureza pode estar ligada de forma importante às virtudes ou às excelências humanas. A questão é: “Que tipo de pessoa destruiria o ambiente natural – ou mesmo veria o seu valor apenas em termos de custo/benefício?” A resposta que sugiro é que a disposição para fazê-lo pode muito bem revelar a ausência de características que sejam uma base natural para uma humildade adequada, auto-aceitação, gratidão e apreciação do que há de bom nos outros”.
Por fim, a frugalidade ou simplicidade, que seria uma forma de temperança, seria uma disposição para consumir moderadamente, de forma a pensar no impacto ambiental de forma séria. Com essa virtude, o agente teria um antídoto tanto ao consumismo como à ganância, identificando que certos produtos ou serviços não são essenciais para a felicidade individual, o que contribuiria para a vida harmônica do ambiente natural. Para Galvani, por exemplo, em Climate Change and Virtue Ethics (2023), a frugalidade ou simplicidade, seria uma virtude similar à virtude tradicional da temperança ou moderação, sendo uma disposição para evitar excessos, sendo uma mediana entre a intemperança e a insensibilidade. Como virtude ambiental, é um traço de caráter que contribui para a felicidade individual e a vida harmônica com o ambiente natural. Para ele, “a simplicidade neste contexto é famosamente defendida por Henry David Thoreau, um crente convicto de que a maioria dos luxos, e muitos dos chamados confortos da vida, não só não são indispensáveis, mas também são obstáculos positivos à elevação da humanidade (Galvani, 2023, p. 13-14).
Ainda sobre a virtude da frugalidade, James Nash, em seu seminal ensaio Toward the Revival and Reform of the Subversive Virtue: Frugality (1995), destaca a conexão entre frugalidade-amor que foi enfatizada pelos primeiros teólogos cristãos como João Crisóstomo, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Ambrósio, de Milão. Para todos estes teóricos, a frugalidade deve ser praticada em prol de uma partilha justa e generosa. Na ausência dessa partilha, a frugalidade é outra coisa: avareza ou acumulação. O ponto central a ser destacado é que se o amor – pelos seres vivos, presentes e futuros, humanos e outros – é o sentimento em tela, a frugalidade é a ação central que deve operar e, para ser eficaz, argumenta Nash, precisa se estender para além da prática pessoal, indo até às normas sociais. Assim, segundo Nash, a produção e o consumo perdulários são abusos antropocêntricos do que existe para uso justo e frugal num pacto universal de justiça. Aconselhando o uso cuidadoso e, portanto, o dano mínimo a outras formas de vida, a frugalidade seria o instrumento de justiça distributiva que afirma a Terra para garantir bens suficientes para todas as espécies.
Após caracterizarmos as virtudes ecológicas, podemos concluir que apenas apostar na aquisição de certos traços de caráter ecológicos não resolveria a nossa grave crise ambiental, mas penso que pode nos ajudar a na busca de vidas ambientalmente decentes e na construção de sociedades realmente sustentáveis.
GALVANI, E. Climate Change and Virtue Ethics. In: PELLEGRINO, Gianfranco; DI PAOLA, Marcello (Editors). Handbook of the Philosophy of Climate Change. Switzerland: Springer Nature, 2023.
HILL, T. Ideals of Human Excellence and Preserving Natural Environments. Environmental Ethics, v. 5, 1983, p. 211-224.
HURSTHOUSE, R. Environmental Virtue Ethics. In: WALKER, R.; IVANHOE, P. (eds.). Working Virtue: Virtue Ethics and Contemporary Moral Problems. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 155-171.
NASH, J. Toward the Revival and Reform of the Subversive Virtue: Frugality. The Annual of the Society of Christian Ethics, v. 15, 1995, p. 137-160.
SANDLER, R. 2007. Character and Environment: A Virtue-Oriented Approach to Environmental Ethics. New York: Columbia University Press, 2007.